Boas atuações – Maurício Grecco vive o personagem-título e Carolina Kasting, a sua zelosa mãe: doçura

Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Ricardo Schöpke – Rio de Janeiro – 14.11.2009

Um Conto de fadas consistente

Adaptação de Karen Acioly para texto da canadense Suzane Lebeau aposta nas diferenças. 

Desde a Ilíada e da Odisseia de Homero – consideradas as primeiras obras da literatura mundial – escritores narram os feitos de grandes heróis que triunfam não apenas sobre outros homens, monstros e demônios, mas também sobre si mesmos, sobre suas vontades e desejos. O não menos clássico Os 12 Trabalhos de Hércules (que enfrentou o Leão de Neméia, a Hidra de Lema, a Corça de Cerínia e o javali de Eurimanto, entre outros, até atingir a imortalidade) é outro exemplo deste enfrentamento. Já os contos de fada (variação das histórias populares que há muito povoam o nosso imaginário coletivo) apresentam também a figura de um herói que precisa superar inúmeros percalços. Escritos de forma esquemática é possível separar claramente nestes contos os bons (Chapeuzinho Vermelho) dos maus (o Lobo Mau), os fortes (o gigante) dos fracos (Guliver), os belos (Branca de Neve) dos feios (a Madrasta). E para vencer estes desafios, os heróis usam todo tipo de armas: magia, encantamento e até metamorfoses. Não é rara a presença de animais falantes também.

Perda é inevitável 

Historicamente, os contos de fadas não foram escritos para crianças. Ao contrário, eram concebidos para distraírem os adultos. Por esta razão, suas temáticas eram pesadas e apresentavam traição, incesto, canibalismo, voyeurismo, entre outras deformações de caráter. Bebendo nestas fontes, a premiada escritora canadense Suzane Lebeau construiu a sua carpintaria cênica. A peça conta a história de Ogroleto, um menino aparentemente normal, que está iniciando sua vida escolar. O menino, no entanto, começa aos poucos a manifestar um comportamento um tanto estranho. Apesar de dócil e carinhoso, sente-se, inexplicavelmente, atraído pela cor vermelha, pelo cheiro de sangue, e tem ímpetos de devorar animaizinhos da floresta. A inevitável força da natureza começa a mostrar-se, revelando que o menino é um ogro (gigantes que vivem nas florestas e se alimentam de carne humana). Este é um segredo que sua mãe vinha guardando desde o seu nascimento.

É partindo deste simples enredo, que Suzane constrói uma rica dramaturgia, sólida e consistente, onde a relação íntima e estreita entre seres humanos (a mãe) e seres fantásticos (Ogroleto) nos revela um mundo múltiplo, calcado nas diferenças. E, cada um se diz em sua própria diferença. É assim que o Ogroleto, de Lebeau, vai em busca do preenchimento de seu espaço no mundo, buscando integrar a sua essência partida, meio homem e meio Ogro. Como um herói dos grandes clássicos da literatura, ele precisa vencer três provas, normalmente invencíveis para um ogro. E aí é que vem um dos grandes méritos do texto: na vitória ou na derrota, a perda é inevitável. Ainda que ela seja bem pequenina; não se ganha por inteiro.

Quanto à direção de Karen Acioly, ela afirma cada vez mais o talento de uma profissional que busca se superar a cada espetáculo. É muito gratificante acompanhar a evolução de uma artista que respira o universo infantil e que está sempre elaborando projetos que venham enriquecer, não apenas o espetáculo no palco, mas também quebrar todos os paradigmas da quarta parede invisível – aquela que separa o palco da plateia. Esta quebra gera uma ampliação do espaço cênico através de pontos de treliças, que iluminadas de seu interior, aumentam a densidade do drama, integra o público, que é transportado para aquele universo, dando volume à encenação. A mata, representada em fortes tons de verde, funciona como uma personagem ativa.

A cenografia de Derô Martín, Maíra Knox, Maurício Grecco e Karen Acioly demonstra- nos claramente a grande unidade que apresenta todo o projeto. Realizado literalmente em equipe, é apropriado organicamente pelos atores, em vista que todas as áreas são encaixadas; além dos figurinos adequados de Maira Knox, o cenário feito de tábuas de madeira – suspensos em cordas, cheio de surpresas, de vãos, e de escapes – é valorizado pelo dinâmico e expressivo trabalho de preparação acrobática dos craques do picadeiro Beto Silva (o primeiro brasileiro a integrar o Cirque du Soleil) e Bruma Saboya, que estimulam a exploração da cenografia e a sublime luz de Jorginho de Carvalho, que atua numa função reveladora do estado emocional das personagens e dos momentos de tensão de cada cena.

O vermelho, a cor essencial do espetáculo, é apresentado como mais uma personagem, assim como a lua, e a representação do sangue. Os refinados desenhos de luz de Jorginho de Carvalho constroem e desconstroem os espaços cênicos, na rapidez do acender e apagar das luzes, inclusive com a utilização de um refletor especial que se move em cena. A trilha sonora de Tato Taborda também é composta por inúmeros sons incidentais: assobios, barulhos de grilos, sapos coaxando, remetendo-nos sensorialmente ao universo de uma mata, acentuando os seus mistérios e deixando nossa alma em estado de alerta e suspensão. Dividindo o palco temos o elaborado trabalho de Maurício Grecco, que constrói o seu Ogroleto, uma criança de 6 anos, apropriando-se de um sincero tom vocal da primeira infância e uma postura corporal arqueada. Transmitindo com sinceridade e precisão acrobática às nuances de sua personagem, Carolina Kasting interpreta a mãe do pequeno Ogro com refinadas nuances de interpretação, mesclando doçura e determinação, com momentos de tensão e alívio de uma mãe protetora.