Crítica publicada na Revista O Cruzeiro
Por A. Accioly Neto – Rio de Janeiro – 15.01.1949
O Teatro Infantil
Dois aspectos sumamente importantes entre outros, apresentou a temporada de 1948, além da rotina propriamente dita do drama, da comédia e da revista – quero me referir ao teatro grego e ao teatro infantil. Sobre teatro grego tive oportunidade de escrever na última crônica, procurando fixar o significado da apresentação de Hipólito, ao ar livre, pelos universitários, e em outras ocasiões, quando foi da encenação de Medeia também de Eurípides (embora em versão modernizada) pelos Artistas Unidos. Sobre o teatro infantil, completando considerações, que tracei há algumas semanas atrás, a propósito de O Casaco Encantado de Lúcia Benedetti, tenho em mente considerar, não só o gênero em si, como as duas outras peças apresentadas em dezembro, que são: O Picapau Amarelo de Fernando Jacques e O Anel Encantado de Alberto Rebelo de Almeida.
Interessante se me afigura assinalar, antes de mais nada, a similitude desses extremos que se tocam, o primeiro que representa a sublimação do espírito humano, e o segundo que é a fase caótica de sua construção. Essa similitude explica: para mim existe no mundo especial onde se desenvolvem, mundo ideal, isento de censura, onde de um lado apreciamos o desencadear de paixões, que fazem submersas na alma em maturidade e de outro, o tropel desenfreado da imaginação, que representa a própria substância da alma infantil. Em ambos os casos o que se apresenta no palco, é uma construção ideal, uma fixação em plano físico apenas do imponderável, onde leis e proporções se mostram inteiramente diversas das proporções e leis que regem a nossa vida real.
No teatro grego, porém o clima da tragédia é complexo e condensado, enquanto que no teatro infantil, a simplicidade das coisas nascentes, é essencial para a compreensão das mentalidades elementares, que ainda evoluem no campo das imagens.
Compreendendo a imensa dificuldade que existe em se obter essa simplicidade indispensável, em apresentar uma história cenarizada para crianças muito maior do que desenvolver um tema dramático para adultos, é que a inflação do teatro infantil,que se ameaça em nosso meio artístico, me parece assustadora. Isso porque, peças infantis desapropriadas, serão capazes de afugentar definitivamente as crianças do teatro ao invés de atraí-las e em última instância, inutilizarão futuras gerações de espectadores para o dia de amanhã.
Aplicando o raciocínio ao nosso meio, não tenho encontrado, nas três obras brasileiras que nos foram montadas em 1948, no Rio de Janeiro, o tom maravilhosamente dosado por muitos séculos de civilização que apresentou por exemplo, aquela história de Juca a Chico que nos deu a Companhia Vienense, aparentemente ingênua e vazia de substância, mas que possui todos os ingredientes necessários a uma verdadeira fábula para crianças.
Das três evidentemente a primeira me pareceu a melhor muito embora O Casaco Encantado, tenha sido acusada de antipedagógica, por não conter uma base moral. Discordo de tal critica, uma vez que nela, o crime encontra castigo e a bondade triunfa da maldade. A narrativa de Lúcia Benedetti, também se mostra multo fluente, e no caráter cênico se desenvolve sem fazer apelos demasiados ao raciocínio, usando toda ela de fatos visíveis dentro de um ritmo dinâmico. As objeções que se podem fazer, residem somente em determinados detalhes horripilantes da casa do bruxo, menos do texto que da apresentação de aranhas monstruosas, esqueletos e caldeirões fumegantes. Tive cuidado de observar sempre os pequenos assistentes de O Casaco Encantado e notei que em geral se mostravam impressionados com o ambiente do segundo ato, os esgares do bruxo e os gritos da bruxa, sensações desagradáveis que mais tarde, em casa se ampliavam no medo conforme soube de vários pais a quem tive ocasião de inquirir. De qualquer forma porém mostrou Lúcia Benedetti ser uma escritora capaz de realizar muito pelo teatro infantil.
Já com relação ao Anel Mágico, a tendência poética de Rebelo de Almeida, compôs uma aventura maravilhosa mais interessante para adultos do que para crianças. Sem atingir a ironia de um Cocteau, em Lês Chevalier de la Table Ronde, onde existe os mesmos encantamentos de um mágico tão portentoso quanto Merlim, abusa do detalhe subjetivo, incompreensível para quem possui quinze anos.
A pedra pequenina que pesa tanto como o mundo,e as faculdades do anel que causa malefícios ou tudo transforma em rosas, são exemplos frisantes. O episódio da floresta além de assustar, necessita de mentalidades mais formadas para compreender-lhe a beleza e simbolismo. Sem compreender a criança como explica RiIke, isola-se no seu mundo do interior, desinteressada pelo que se desenrola diante de seus olhos e com isso frustra-se a intenção do escritor.
Em campo oposto situa-se Fernando Jacques, quando tenta transpor para o palco, O Picapau Amarelo, uma das histórias de Monteiro Lobato. Diante de uma literatura infantil somente na aparência demasiado complexa nos seus numerosos personagens, e de um humorismo difícil como aquele “milho de sangue azul”, somente um talento excepcional conseguiria compor uma peça que não necessitasse a assistência do adulto para explicar-Ihe o significado. Multo ao contrario, Fernando Jacques, para respeitar o texto que tinha em mão realizou um trabalho onde muita coisa é contada e quase nada acontece, com exceção de algumas passagens do segundo ato. Estou certo que nem todos os pais saberiam explicar exatamente a origem de figuras como Peter Pan ou a significação íntima de D. Quixote – como obrigar que seus filhinhos possam saber qual o motivo de sua intromissão junto de Branca de Neve e do Capitão Gancho, principalmente quando agem tão pouco em cena?
Cenários e interpretação salvaram, de certo modo estes espetáculos açodadamente levados ao palco, além de Nilson Penna, o grande Santa Rosa e Pernambuco de Oliveira, responsáveis pelo encanto dos ambientes, Henriette Morineau, Flora May, Maria Dela Costa, Itália Fausta, Maria Matos, Cora Costa, Graça Melo, Augusto Aníbal e mesmo novos como Graziella Ramalho, Licia Magna e Edgard Vasconcelos fazendo viver os personagens. Mas, com a exceção de Lúcia Benedetti, que compôs sua peça para crianças de Valery Larbaud que são Infantines como as que todos conhecemos em nossas casas , os outros dois, pensaram em escrever para os Enfants Sages de Anatole France tão longe da realidade quanto um sapo de uma estrela.
Para 1949, desejo que o teatro infantil se apresente não em três somente, mas em todas as nossas companhias, mas embora sem acreditar que tal suceda, desejaria que para tais espetáculos fosse criada uma censura especializada (com educadores e sacerdotes) para evitar que não venha matar coisa tão importante, que apenas surge balbuciado no Brasil.