Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 25.09.1981
Um Tablado onde se aprende a voar na cacunda do vento
Quem olhasse para o teto, na festa de comemoração dos 30 anos do Tablado, veria girando o tempo todo uma miniatura de Vicente e seu Cavalinho Azul. Como se, além das fotos de antigas montagens e dos grupos formados por ex-alunos do Tablado, além dos cartazes de montagens estrangeiras de suas peças, Maria Clara quisesse chamar a atenção especialmente para um de seus personagens: o do menino que, contrariando toda gente, sai em busca de um pangaré velho que, aos seus olhos, é um cavalinho. De um menino que não se contenta em comprar um cavalo de brinquedo ou em esperar por cavalinhos no circo. Não se contenta com o papel de espectador e corre em busca da sua fantasia. Vicente inventa um cavalinho azul e obriga todos aqueles que alguma vez já assistiram a O Cavalinho Azul a inventá-lo com ele. Dessa maneira, parece sacudir os espectadores para a expectativa de que, de repente, seja possível a irrupção do inesperado no seu cotidiano sem cor, como o pangaré velho que se torna azul. E não é à toa que logo Vicente sobrevoe o Tablado na comemoração dos seus 30 anos. Logo Vicente que como Pluft, Maria Clara sempre desejou ver representado por atrizes mulheres. Logo Vicente que, como os criadores de ficção, dá vida à sua história e colore de azul o pangaré. Logo Vicente, criança que ousa romper os bons conselhos familiares. E se pensa: “Mamãe disse que este mundo está cheio de perigos”, é para fugir logo em seguida. Para as Antilhas Holandesas, para a ilha de Crocoió, cercada de água por todos os lados, ou para a serra da Mantiqueira. Para qualquer lugar que pertença à sua geografia imaginária, misto de fantasia e de nomes ouvidos na escola. Não é à toa que se coloca justamente o Cavalinho Azul no centro do Tablado, no centro do universo ficcional de Maria Clara Machado. Ele fica girando no teto do teatro e parece avisar que fantasia, infância e memória sobrevoam não apenas a comemoração, mas toda a dramaturgia de Maria Clara Machado. No seu teatro, como no de um Jorge Andrade ou nos Boitempos, de Drummond, parece haver um Vicente que, de telescópio, olha de longe para a família de onde saiu. E, porque de longe, porque criança, consegue misturar criticamente memória e infância.
Não é gratuita a presença de uma miniatura do cavalinho azul no teto do teatro, como não é certamente gratuita a opção de Maria Clara Machado pelo teatro para crianças. Qualquer um que já tenha lido Peter Pan deve lembrar como este tem em baixa conta o mundo adulto. Como Peter Pan chora ao perceber que Wendy cresceu. Porque ele, do seu lado, escolhe não crescer, permanecendo aberta assim, para ele ao menos, a possibilidade de ver sempre de longe o universo adulto. Escolha semelhante à daqueles que optam por um público e uma visão de mundo infantis quando escrevem. Colocar uma criança em cena é obrigar a sociedade em que se vive a deixar à mostra seus sustentáculos. É vê-la com os olhos de alguém não de todo aculturado. De alguém, como a personagem central de A Menina e o Vento, que ainda deseja fugir e voar na cacunda do vento. E “fazer umas desordens por aí”.
A dramaturgia de Maria Clara Machado parece agir no mesmo sentido dos desejos de Maria, em A Menina e o Vento: “Desmanchar uma paradas, ventar Tia Adelaide do piano. Desarrumar tudo que é arrumadinho. Só pra ver a cara de todo mundo. ” Nos seus textos quase sempre que ocupa a cena é algum personagem, por algum motivo afastado do espaço familiar. Por vontade própria, como Vicente ou Maria, por desvios quaisquer como a Chapeuzinho Vermelho da adaptação de Maria Clara, ou porque de alguma maneira estranhos com O Patinho Feio ou A Gata Borralheira. E esse afastamento da família ou da escola, como é o caso da bruxinha Ângela em A Bruxinha que Era Boa, nunca inocente. Cria-se um imediato pacto entre os espectadores e essas ovelhas mais ou menos negras e passa-se a rir um pouco do espaço familiar e das regras escolares.
Estão sempre em pauta roubos, como nas diversas peças onde surge o Camaleão Alface; raptos, quando se trata de heroínas que pretendem casar-se com personagens indesejáveis como em O Diamante do Grão Mogol; ou heranças como em Pluft. Estão sempre em pauta ameaças ao espaço familiar e ao lugar nele destinado a seus herdeiros, capazes de fugir para a cova do vento ou para a serra da Mantiqueira. Ou de descobrir como o patinho feio “que a gente não é pato, nem cobra, nem sapo”. “Quando a gente não é pato, nem gato, nem cobra, nem sapo”. “Quando a gente vê que pode ser pássaro ou flor, ou gente ou pedra, cisne ou condor”, quando se abre o olhar infantil a possibilidade de voar com o vento, montar um cavalo azul ou virar papel celofane, fica difícil aceitar falas como as da tia Adelaide de A Menina e o Vento: “Lugar de criança é dentro de casa! ”, “Lugar de moça é no piano, quem vive na rua não tem tutano! ” Fica difícil compactuar com o coro de tias quase sempre presentes nas peças de Maria Clara Machado. Sejam elas D. Lota, D. Dedé e D. Pureza como em Os Cigarras e Os Formigas; as famosas Adelaide, Adalgisa e Aurélia de A Menina e o Vento; ou Florisbela, Florentina e Florzinha de Maroquinhas Fru-Fru, quase sempre as tias funcionam como porta-vozes dos valores familiares tradicionais. E estão tanto mais caricaturais, quanto maior for o desejo de desarrumar tais valores. De tirar a menina do plano, de ver azul um cavalo, de desobedecer à Bruxa Instrutora.
“Tal pai, tal Pluft”, exclama orgulhosa a mãe do fantasminha quando pensa que ele perdeu o medo. Só que, um segundo depois ele perdeu o medo. Só que, um segundo depois ele está de volta, apavorado. E contrariando o orgulho materno, as simetrias e semelhanças familiares. Parece circular por todo o universo dramatúrgico de Maria Clara, um prazer todo especial em reviver e assassinar de alguma maneira os valores tradicionais da família brasileira. Como Jorge Andrade, Maria Clara Machado volta-se para sua própria classe, sua própria herança, e passa a virá-la do avesso. E não são apenas tias e conselhos maternos que desfilam pelo palco do Tablado, mas personagens como o Capitão Quartel de Maria Minhoca ou o prefeito-ladrão de Tribobó City. E histórias como as da Gata Borralheira, Chapeuzinho Vermelho, o Patinho Feio e João e Maria. Misturam-se os conselhos mais ouvidos em casa com as histórias mais lidas e tudo passa pelo crivo de um olhar crítico e de longe, de alguém que não consegue deixar de falar do espaço familiar, mas que dele já está fora dele. Talvez na serra da Mantiqueira, talvez numa vassoura mágica, talvez nas costas do vento. Talvez no teto do Tablado olhando meio triste para os que já passaram por lá como alunos, atores ou espectadores. E cresceram. Às vezes tanto que nem viram o cavalinho azul no teto, que nem podem mais voar para as capitanias hereditárias, para a Terra do Nunca,
Observando-se, no entanto, os cartazes e fotos antigos e recentes, pregados nas pareces do teatro, dá para ver que Vicente fez escola. E do Tablado saiu gente do Asdrúbal, do Pessoal do Despertar do Cabaré, do Manhas e Manias… Do Tablado saíram pelo menos três dos melhores espetáculos infantis desse ano: Brincando com Fogo, Sonhe com os Ratinhos e Vira Avesso. Além do próprio espetáculo comemorativo dos 30 anos de fundação do Tablado Os Cigarras e Os Formigas, que ainda não fora montado sob a direção de Maria Clara Machado. E, belíssimo, coloca em cena algumas marcas registradas “tabladianas”. Não faltam as tias, pais autoritários, referências A Cigarra e a Formiga e Romeu e Julieta. Não falta uma irreverência meio infantil que vai dos figurinos à interpretação. Lá está a eterna caricatura da família, misturada sempre a um certo carinho de que se sabe, ao menos no plano da memória, para sempre condenado a ela. E para sempre condenando-a. Nesse estranho jogo de que ousa fugir para a serra da Mantiqueira, mas manda continuamente recados para casa. De quem parece escrever em cima do muro. Entre a infância e o mundo adulto. Entre um cavalo azul e um pangaré marrom. Entre os ventos e as tias. Entre uma visão crítica da família e da sociedade brasileira e um carinho meio sem graça por elas. E parece repetir como Pluft: “Que medo. Que coragem. Nem sei…” Oscilação que permite à dramaturgia de Maria Clara Machado aproximar-se de um memorialismo crítico, e fazer da criança personagem oscilante por excelência, o seu eixo ficcional.
Dramaturgia, encenação característica, escola: também é difícil escolher um dos eixos para caracterizar o Tablado. Fica-se oscilando e percebe-se que falta alguma coisa. Falta, sobretudo, olhar para o cavalinho de Vicente rodando no teto e pensar no número de vezes em que já se entrou no Tablado como espectador. Na emoção do olhar as fotos e lembrar as montagens a que se assistiu. Escola de profissionais de teatro os mais diversos, talvez se possa pensar no Tablado fundamentalmente como formador de uma plateia teatral que, se não foi “fazer teatro”, se não virou “brisa do mar”, gosta às vezes de viajar no cavalinho azul ou nos ventos alheios. E se do Tablado saíram alguns para inventar a própria geografia mágica, saíram outros para assisti-los. Outros capazes até de, como não quer nada, virar para cima e piscar de maneira cúmplice, o olho para Vicente e o cavalinho azul.