Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 09.07.2019


Uma peça sobre a sinceridade do amor, encenada “em português, libras e silêncios”

O Rouxinol e a Rosa, baseado no lindo e triste conto de Oscar Wilde, é mais um trabalho de “acessibilidade estética” do Coletivo Grão

Trata-se, a meu ver, de um dos textos mais lindos e tristes da história da literatura universal. Estou falando do conto de Oscar Wilde, O Rouxinol e a Rosa, em que um rouxinol se sacrifica (morre) para ajudar um estudante a levar sua amada ao baile – e, ao final, descobrimos que essa moça fútil, caprichosa e materialista não merecia nem o sacrifício do pássaro nem o amor do estudante. Ver isso encenado sempre é belo e forte, extremamente pungente. Imagine quando isso vai parar nas mãos do coletivo Grão, que – muito mais do que se preocupar com a acessibilidade de surdos e cegos, o que já seria suficientemente nobre e muito necessário – além disso ainda pesquisa a fundo o que se classifica como “acessibilidade estética”, ou seja, a acessibilidade está em cena, está no palco. Basta ler como eles classificam a montagem no material de divulgação: “Espetáculo teatral em português, libras e silêncios.”

Eles buscam uma linguagem que englobe diferentes identidades sensoriais. Em cena, desta vez, estão Edgar Jacques (ator cego), Mariana Ayelen (atriz surda) e Eduardo Bartolomeu (ator ouvinte e vidente, isto é, nem surdo nem cego). É muito curioso e emocionante constatar por trás de cada cena todas as preocupações em atingir na plateia quem não ouve nada, ou quem não enxerga nada. É bem tocante ver um ator cego com tamanho desembaraço de locomoção no palco, interpretando um papel de protagonismo, assim como uma atriz surda se comunicando expressivamente na língua de sinais. Como eu escrevi na crítica da peça anterior do Coletivo Grão (Feio, baseando em Andersen), é mais do que uma peça, é um projeto cênico social. Eles incorporam as libras à interpretação dos atores e substituem audiodescrição por audionarrativa.

Tudo – absolutamente tudo – é contado ao público, narrado, descrito. Quem é cego ouve o narrador contando com riqueza de detalhes como é cada peça de roupa (botões, pregas, bordados, cores, listas, apliques), como é cada objeto no palco. Para o público vidente, ou seja, que não é deficiente visual, vira um exercício interessantíssimo, uma aula de cidadania e, ao mesmo tempo, vira uma outra forma de ver teatro, uma experiência inusitada. As crianças, acomodadas em almofadões quase na boca de cena, bem próximas dos atores, são levadas a participar em vários momentos – e os atores são bem treinados para saber como lidar com perguntas fora de hora, curiosidades típicas de quem vivencia ali, por uma hora, o saudável estranhamento proposto pelo espetáculo. É incrível, por exemplo, observar o quanto essas crianças mais falantes, perguntadeiras e participativas vão gradativamente ficando quietas e introspectivas, à medida que a trama avança na direção da morte assentida pelo rouxinol. Na sessão em que eu estive, um garoto até se manifestou: “Não acredito que vocês vão deixar o rouxinol morrer só por causa de uma rosa?” O próprio texto da peça já tem essa fala, dita de outra forma: “O coração de um pássaro vale menos que o coração dos homens?”

Ao lado de tudo isso, a peça ainda não abandona as cartilhas básicas do bom teatro infantil: é um estímulo à poesia e à imaginação da plateia, sugerindo, por exemplo, às crianças que pensem em outro final para a história. Há também o momento em que os três atores querem ser o estudante – o que evidencia o jogo de se fazer teatro, com suas múltiplas possibilidades. Na cenografia, há uma escada – objeto muito simbólico do fazer teatral. Trata-se de uma escada com aplicações de tecidos e espumas. A composição do cenário, aliás, foi toda inspirada na obra da artista mineira Sonia Gomes, com seus trabalhos que evocam a memória e a ação do tempo sobre as coisas.

Depois dos aplausos finais, o grupo ainda estimula na plateia uma conversa rápida sobre o espetáculo que todos acabaram de “experenciar”. É quando a gente ouve depoimentos muito sinceros de pais e filhos, encantados pela proposta de encenação tão abrangente e inclusiva. O Rouxinol e a Rosa foi criado para o 23.º Cultura Inglesa Festival. Que fique muito tempo em cartaz.

Ficha Técnica

Direção: Leticia Soares
Elenco: Edgar Jacques, Eduardo Bartolomeu e Mariana Ayelen
Direção de Arte: Jeff Celophane e Sylvia Sato
Direção Musical: Juliana Keiko
Iluminação: Fernanda Guedella
Assistente de direção: Suellen Leal
Apoio metodológico: Silvia de Paula e Thais Soares Lucena
Costura: Julio Fialho
Cenotecnia: Renato Ribeiro /Cenografia Sustentável
Concepção e Dramaturgismo: Cintia Alves
Realização: GRÃO – Arte e Cidadania

Serviço

Local: Sesc Pinheiros – Auditório
Endereço: Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo
Telefone: 11 3095-9400
Capacidade: 98 lugares
Quando: Hoje, feriado, terça (9 de julho de 2019), às 15h e às 17h
Classificação etária: Livre
Duração: 60 minutos
Ingressos: Grátis