Critica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 09.10.2015
O rei que não sabia ser rei porque mandava demais
Texto de Ruth Rocha ganha uma feliz adaptação no teatro, com força no respeito às diferenças e na inclusão social
No ano em que se dão as comemorações por seus 50 anos de carreira, Ruth Rocha ganha no teatro uma incrível adaptação de seu livro O Reizinho Mandão, com dramaturgia de Ricardo Gamba e direção de Roberto Lage. A peça é um encanto, para dizer o mínimo. As escolhas dos realizadores foram acertadíssimas em tudo. O público sai do teatro feliz, com uma euforia estimulante, com a emoção à flor da pele, com a deliciosa sensação de ter visto um belo espetáculo.
Para começar, há uma escolha pela ‘brasilidade’ à frente de toda a estética e da adaptação. Ritmos nordestinos nas canções, sandálias de couro em todos os atores, panos de chita colorida iluminando cada personagem, sanfona e triângulo marcando a trilha, cenografia colorida e envolvente. Antes de o espetáculo ter início, o palco já está com as cortinas abertas, todo iluminado, de uma forma magnética, que puxa nossos olhos para cada detalhe.
Aliás, o desenho de luz, a cargo do premiado Fran Barros, é um dos itens responsáveis pelos acertos do espetáculo, que é solar a não mais poder. Os figurinos de Luciano Ferrari são outro grande destaque. Não me lembro de nada tão criativo na atual temporada, no que diz respeito às roupas dos personagens. Apliques, babados, rendas, chapéus, golas, botões – cada vez que um novo personagem entra em cena enchemos nossos olhos com seu figurino detalhista. Paula De Paoli, na cenografia, preenche o visual de referências coerentes com a fábula que está sendo contada.
Ruth Rocha sempre soube contar histórias sem lançar mão de ranços excessivamente didáticos. Se ela quer transmitir uma lição ou uma mensagem, ela o faz de um jeito brincalhão, divertido, irreverente, irônico. Gamba, na adaptação, e Lage, na direção, souberam manter essa ‘pegada leve’ no espetáculo, ao tratarem, afinal, de temas que são muito delicados e sérios: o poder, o autoritarismo, a teimosia, a truculência, a repressão, a censura. O público entende tudo, sem precisar de dedo em riste e palavras catequéticas.
O recurso brechtiano de fazer os atores disputarem ‘par ou ímpar’ para saber quem vai interpretar o protagonista foi uma sacada excelente da direção, que descortina ao público mirim as infinitas possibilidades do jogo teatral. Ao mesmo tempo em que há um estímulo ao mergulho na imaginação, temos essa preocupação louvável em revelar os truques do teatro. As escolas não podem perder essa chance de levar seus alunos.
O elenco é também um grande trunfo do espetáculo. São nove atores que cantam, dançam e se divertem o tempo todo, contagiando o público com carisma e talento. Ariel Goldenberg está sensacional com seu tom de fala autoritário e mandão, como pede o personagem. Rita Pokk, como um papagaio que repete todos os finais das frases do rei, consegue ser graciosa e hilária, cativando a todos desde o começo. Joana Mocarzel, como a doce menina vestida de rosa, que ‘surge’ da plateia e vira uma espécie de comentarista do espetáculo, grudada o tempo todo na narradora (Stella Tobar), enriquece a fábula com sua empolgação e sua concentração. Ela representa a menina comum da plateia, que sonha em subir ao palco com os artistas – e esse foi outro achado importante e inclusivo da dupla diretor-adaptador.
Cito especificamente o talento desses três, pois se trata de um trio de atores portadores de síndrome de Down e isso, longe de ser limitador, enriquece e valoriza a peça, que os inclui, não os diferencia. A diversidade e a inclusão ficam evidentes na proposta e casam bem com o texto escolhido, que reforça a importância de se conviver com as diferenças.
“É imprescindível romper com a ideia da homogeneização, da uniformização, para que assim possamos compreender as pessoas em sua totalidade”, escreveu Bia Rocha no programa (ela foi a profissional que deu consultoria psicopedagógica ao elenco heterogêneo). Seu cuidado foi fazer Ariel, Rita e Joana construírem seus personagens a partir de suas subjetividades muito especiais e suas espontaneidades intrínsecas. Missão cumprida. Deu tudo maravilhosamente certo. O Reizinho Mandão é o máximo. Alegria e diversão garantidas.
Serviço
Teatro Augusta – Sala Paulo Goulart
Rua Augusta, 943 – Cerqueira César
Tel. 11 3151-4141
Sábados e domingos, às 16h
Ingressos: R$ 40,00 (inteira) R$ 20,00 (meia)
Neste fim de semana (10 e 11), todo mundo paga meia, em homenagem ao Dia das Crianças
Em cartaz até 22 de novembro