Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 13.03.1977
A política dos príncipes e a defesa do feminismo
Para as investidas das feministas, O Príncipe Feliz de Washington Guilherme, é um prato feito. Mas, na realidade, não é preciso ser feminista para perceber nesta peça todo o ranço de uma cultura machista e tudo aquilo que se passa no íntimo deste autor que só consegue ver a mulher participando desta sociedade como um objeto sem vontade. E quando uma mulher tem a ousadia de demonstrar personalidade própria e de ter iniciativas, o autor faz dela, inicialmente a figura negativa da peça: e, posteriormente, faz com que ela se transforme através da mágica e se torne dócil, sem vontade própria, passiva, conformada. Enfim, pronta para casar.
Todo o desenvolvimento da trama do casamento é um verdadeiro hino à imbecilidade feminina. Em nenhum momento a camponesa escolhida pelo príncipe para ser sua esposa demonstra que também escolheu. A mãe mostra sua satisfação (simplesmente porque vai ingressar na família real e nunca porque sua família vai se casar com quem ama), mas a noiva do príncipe é desenhada como um ser (ser?) dependente que tanto é “escolhida” para casar choraminga para não ir ao castelo “sem que mamãe vai junto”. A dependência é tanta que é a mãe quem informa, à plateia, que sua filha gosta do príncipe. Pela falta de vibração com o casamento que se nota nesta menina e por todo o sistema de mulher objeto em que a peça se baseia, fica sempre no ar a pergunta importante: gosta mesmo?
Agora, pais, educadores e interessados em geral nas relações do teatro infantil com a formação de uma criança, apenas um leve lembrete: ao levarmos nossos filhos para assistir a um texto como esse (e, se não analisarmos, após a peça, com as crianças, todas as suas deficiências) estaremos endossando essa visão de mundo deformada, doentia e que defende a existência de uma sociedade fechada, patriarcal e onde até o amor é fruto ou de mágica ou do poder. E que se perceba que tanto o poder como a mágica estarão permanentemente nas mãos dos homens. Não é difícil concluir que da mesma forma que a mulher, também a criança é um objeto dentro desse sistema defendido pelo autor. A pequena camponesa – que nunca conjuga o verbo querer – não é mostrada apenas como uma pessoa do sexo feminino, ela é vista na peça, também como uma criança. A identificação é clara, a visão que Washington Guilherme tem do mundo é mais clara ainda. (Aliás, basta entrar em contato com os outros textos deste autor tão montado – olhem em que realidade vivemos – para perceber que as coisas são todas muito homogêneas no que se refere à sua filosofia de vida: e muito perigosas no que se refere a um teatro mostrado a seres em formação).
Além disso, a trama é forçada, óbvia, cheia de lugar comum: são cartas mentirosas, são personagens que se disfarçam para enganar os outros, são príncipes que se apaixonam pelas camponesas; são as dificuldades para tais casamentos se realizarem. Enfim – tudo visto e revisto centenas de vezes. Os personagens saem de cena “para ir ao jardim” (????) e existe um estímulo constante a gritaria.
Nisso tudo, salvam-se os trabalhos de interpretação de Luci Costa, na realidade muito segura e engraçada, do ator que faz Felício (André Prevot?);e da atriz que representa a bruxa. E salva-se também o trabalho da direção (quem é o diretor?) que consegue obter um desenvolvimento bem seguro e manter um tom lúdico e alegre. Acaba sendo tudo inútil, de qualquer forma. A direção poderia, além do mais, explorar menos as brigas entre a mãe e Felício; explorar menos as correrias; explorar menos (ou, então, dar-lhe um sentido significativo) o uso da luz estroboscópica.
Uma observação final: o texto, ao propor logo no início uma relação matrimonial entre um nobre e uma mulher do povo, parece defender a democrática e saudável tese de que devem ser corrigidas as diferenças sociais. Mas tal proposta democrática é falsa, com os príncipes apenas arrumando uma maneira exterior (o casamento) de mostrar a todos que foram eliminadas as diferenças, enquanto que a realidade cotidiana mostra uma noiva que não conjuga o verbo querer. E nem precisa proibi-la disso, pois todo o sistema de cultura (que é a política do próprio príncipe) fez com que ela nunca conhecesse tal verbo; e que necessitasse, sempre, que mamãe fosse junto.