Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 07.10.2017

Em cena, Davi Novaes e Cícero de Andrade: química e talento

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Teatro infantil também retrata a questão de gênero e a formação de novos tipos de famílias

O Príncipe DesEncantado – O Musical fala de homoafetividade com bom humor, responsabilidade e talento

Tenho expressado recentemente, nos debates de que participo, o quanto o tema da homoafetividade foi chegando de mansinho ao teatro para crianças e jovens e parece ter ocupado seu espaço, de forma responsável e criativa, sem militâncias agressivas, mas como lindas manifestações de arte, antes de tudo. Uma dessas peças recentes que vi foi O Príncipe DesEncantado – O Musical, que agora está iniciando sua segunda temporada, desta vez no Teatro João Caetano.

Neste momento delicado da história política nacional, peças como essa acabam ganhando um significado extra: viram verdadeiros atos de resistência. Não se ofende ninguém, não se faz apologia de nada, apenas se mostra ao público de todas as idades um pouco dessa diversidade que faz o ser humano ser tão ímpar e ao mesmo tempo tão múltiplo.
Vamos ao enredo: Um rei some de circulação. Ninguém mais sabe dele. A rainha assume tudo. Quando o príncipe vira adulto, a mãe decide que ele precisa se casar e assumir o trono. Apresenta a ele uma candidata ao casório, mas o príncipe termina por se apaixonar não por ela, mas pelo irmão da mocinha. Depois de algum tempo, seu pai – o verdadeiro rei – reaparece, mas eis que ele volta transexual, ou seja, esteve fugido pois mudou de sexo e, de rei, virou rainha.

Quem, até muito pouco tempo atrás, imaginaria uma peça para crianças com uma sinopse dessas? Torno a dizer: nada é gratuito nem ofensivo, nem agressivo, nem acintoso. Ao contrário, o espetáculo é alegre, alto astral, delicado, romântico. Absolutamente necessário como retrato dos novos tipos de famílias que se constituem pelo mundo afora, neste século 21. Um bálsamo para esses tempos em que certos setores da sociedade brasileira insistem em um retrocesso temático burro, em nome de um falso moralismo a serviço de um preconceituoso ódio conservadorista.

A história de O Príncipe DesEncantado – O Musical foi livremente inspirada no romance inglês Koning en Koning (Rei & Rei), de Linda De Haan e Stern Nijland, e em declarações da escritora de livros infantis e educadora Márcia Leite. Como bem diz o material de divulgação, “juntando essas referências com experiências de sua própria vida, Rodrigo Alfer – autor e diretor – escreveu a história do rapaz que – mesmo em um reino encantado – viu-se envolvido em uma história de amor possível hoje, na vida real.” Há, ainda, claras referências a Shakespeare (a presença de uma ama, como em Romeu e Julieta, e a confusão causada por uma poção que provoca o estado de apaixonamento, como em Sonho de Uma Noite de Verão).
O espetáculo, além de contribuir para desmistificar o assunto da homoafetividade, é inteligente ao brincar criativamente com todos os clichês e estereótipos usados nas montagens de contos de fadas. A equipe demonstra bom domínio estrutural do gênero musical. O texto é bom, bem desenvolvido, eficientemente harmonizado com a trilha, executada ao vivo. Há músicas mais românticas, outras mais dramáticas, outras muito animadas – a dosagem de ritmos funciona a contento. Para contemplar também os adultos, há uma cena de karaokê, com hits e flashbacks que só os pais conhecem. Dando os créditos: música original de Maíra Pagliuso, direção musical e arranjos de Ettore Veríssimo.

Davi Novaes, que faz o príncipe apaixonado, permite que acreditemos no personagem, na dubiedade do personagem, nas inseguranças que ele tem. O ator consegue um tom encantador, doce – alguém contido querendo explodir a qualquer instante. Quando tem seus momentos de escape, em que “dá pinta”, chega a pedir desculpas. A química com o ator Cícero de Andrade, que faz o ‘pretendente’, é visível. A gente torce pelo final feliz entre os dois, diante de tantos acertos de interpretação da dupla de atores.

No elenco, destaque ainda para Manu Littiéry, em excelente composição da mãe. Sua personagem sempre acorda com um estridente ‘Bom dia!’ – e isso resulta divertido em sua relação com o filho. No papel do rei que vira rainha trans, Maite Shneider também faz boa figura em cena. Ela é uma das principais militantes dos movimentos de divulgação e aceitação da transexualidade no País.

Registre-se também a alta criatividade da cenografia, apoiada no uso inusitado de lâmpadas fluorescentes, em disposição verticalizada pelo palco. Quem assina é Luma Yoshioka. Pratique a tolerância, prestigiando com a família toda esse importante musical, símbolo da resistência de uma nova era.

Serviço
Local: Teatro João Caetano
Rua Borges Lagoa, 650. Vila Clementino – São Paulo
Telefone: (11) 5573-3774
Quando: Sábados e domingos, às 16h
Classificação etária: Livre
Ingressos: R$ 16 (inteira) e R$ 8 (meia)
Temporada: De 7 a 29 de outubro de 2017