Bonecos em Cena – A história do Brasil é representada pela interação entre títeres e atores de carne e osso

Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Ricardo Schöpke – Rio de Janeiro – 07.11.2009

Como uma pintura de Debret

Com 32 anos de estrada, o Grupo Navegando vai da escravidão à assinatura da Lei Áurea.

Navegar é preciso, viver não é preciso, já dizia o grande poeta português Fernando Pessoa. E assim, com as precisões e imprecisões da vida, o Grupo Navegando, há 32 anos, rema em busca de um rico teatro infantil. Rico em conteúdo, com qualidade técnica e artística, seriedade e grande respeito à infância. Sempre acompanhados pelas profissionais de teatro de animação Cica Modesto e a sua mãe Magda Modesto, o grupo foi um dos pioneiros em apresentar ao teatro infantil carioca uma concepção integrando teatro de atores e de títeres (bonecos de manipulação direta, fantoches, teatro de sombras, teatro de brinquedos, entre outros). O texto O Milagre do Santinho Desconfiado de Marília Gama Monteiro é contado em flashback pelo personagem Pai João (Marcelo Dias), preto velho, narrador/ testemunha do período da escravidão. Ele fala do encontro de dois personagens: um menino negro, escravo, de nome João, e um menino branco, de nome Zezé – uma referência pouco explícita à infância do abolicionista Euzébio de Queiroz.

Dividido em quadros narrativos, o texto nos mostra algumas das mazelas que os negros viviam na época da escravidão no Brasil, mas pelo fato de ser escrito em versos, ele não possui uma dramaturgia teatral fluente, transformando assim os atores em narradores de suas próprias histórias. Dificultando, por esta razão, a contracena entre os mesmos, isso acaba por distanciar o público de uma identificação com as personagens, e faz com que muitas ideias da história não cheguem claramente até nós. Ao final do espetáculo, temos a presença da Princesa Isabel – representada por um fantoche ligeiramente caricato – que chega para decretar a Lei Áurea, e tudo é resolvido de uma forma muito rápida e pouco envolvente.

A direção de Lúcia Coelho, que também volta aos palcos como atriz, possui momentos delicados, e nos mostra o porquê de ela estar navegando há 40 anos pelo universo teatral, com competência e qualidade reconhecida. Um dos destaques do espetáculo é a cenografia de Carlos Alberto Nunes. A opção por uma paleta de cores em tons terra, e de tecidos crus, utilizados na concepção dos figurinos e cenários, inspirados no universo do pintor e desenhista francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), nos aproxima da época em que a história é retratada – meados do século 19. Debret buscava mostrar aos seus leitores, não apenas a simples visão de um país exótico, e interessante do ponto de vista da historia natural, e sim um panorama amplo do cotidiano do Brasil. Tentou criar uma obra histórica, para mostrar minuciosamente a formação do povo e da cultura da nação brasileira.

Ao entrarmos no teatro, já nos deparamos com uma grande caixa cênica forrada em tecido cru, ambientado em um imenso mapa-múndi, onde podemos ver desenhado no chão o Brasil, e no ciclorama (tecido ao fundo), o continente africano e um pequeno pedaço do Velho Continente. A bonita cenografia é auxiliada também por uma seleção de paisagens e imagens projetadas sobre o tecido, preenchendo com beleza e suavidade os quadros cênicos. Interessante também é a cena onde barquinhos pretos, em miniaturas de papel, são colocados sobre um tecido e lançados ao alto, repetidamente, representando os navios negreiros.

Visual rico em detalhes

O ponto alto do espetáculo é encenação da infância de Pai João na África, através do belíssimo teatro de sombras, assessorado pela grande mestra do teatro de títeres brasileiro Magda Modesto – que comenda também a confecção dos bonitos bonecos, muito bem feitos pela dupla Michel Sousa e Juliana Werneck. Na África de Magda, podemos ver lindas figuras recortadas em papel, que representam a rica fauna africana; elefantes, girafas, macacos, entre outros.

A linda luz concebida por Jorginho de Carvalho, é um dos destaques da montagem, especialmente no teatro de sombras, onde os tons quentes da África e a ambientação em tom sépia valorizam os tecidos crus, nos remetendo a um tempo antigo. Ou seja, o que salta aos nossos olhos durante todo o tempo é uma preocupação muito grande com a construção de uma concepção visual rica em detalhes e na inclusão de um grande número de técnicas de teatro de animação, para a composição dos inúmeros painéis que vão se desenhando, cena a cena. Porém, a peça poderia ser montada com menos formas animadas e variações estéticas, como as que vemos em cena pelo pequeno tempo de duração do espetáculo. Isto colabora para uma quebra de ritmo na encenação, e nos afasta, assim, da precisão rítmica de uma história em quadrinhos, distanciando-nos da narrativa. Com isso, o texto parece tornar-se maior do que realmente é.

A trilha sonora de Marcelo Alonso Neves é bastante agradável, e nos aconchega com sons de batuque e de ondas do mar. No elenco se sai bem o ator Marcelo Dias no papel do Pai João e na manipulação dos títeres, além da revelação Pedro Maia, no papel de João/Tição.