Crítica publicada no Jornal do Brasil
por Carlos Augusto Nazareth – Rio de Janeiro – 01.04.2006

 

Barra

A vida real de João e Maria

Montagem realista leva personagens a enfrentar abandono na cidade grande 

O Menino que não se Chamava João e a Menina que não se Chamava Maria em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto, reconta a tradicional fábula de João e Maria, aproveitando seus elementos essenciais, como o tema do abandono, (pais largam filhos na floresta por falta de recursos para sustentá-los). A montagem é baseada em livro homônimo de Georgina Martins, que de uma forma inteligente trabalha toda a simbologia do conto.

Em seu texto o abandono tem como referência a situação de milhares de crianças que moram nas favelas, nas ruas ou na periferia. Elas também saem em busca de uma casa de doces, símbolo de um ideal; fogem de um monstro ou bruxa (às vezes um padrasto que bate); e são obrigadas a enfrentar os perigos da “floresta” (a cidade com todas as suas mazelas).

Normalmente as adaptações dos contos tradicionais tomam a trama como foco deixando ao largo o conceito central da fábula. Nesse caso, a autora caminhou por trilha oposta. A partir do conceito central, utilizou-se dos elementos simbólicos da história para ampliar as possibilidades de leitura. É um reconto interessante.

No palco despojado, sacos de lixo reais, caçambas uma escada 

No palco, dois irmãos sofrem maus-tratos em casa e decidem fugir. Nas ruas, as crianças passam fome, sentem frio, medo e dor, falam da vida e da morte. Enfrentando toda sorte de dificuldade, se fortalecem na amizade e na esperança de conquistar uma vida melhor.

O espetáculo, realista, se inicia com uma projeção de vídeo que mostra a fuga por uma entre becos e vielas dos meninos em uma favela real – até chegarem ao palco para continuar a contar, na ficção, sua história de vida. Junior Santana e Tâmara Barreto, assinam a direção e optaram por uma estética despreocupada com o “bem feitinho” típico do teatro infantil.

O cenário e o figurino também assinados por Junior Santana, são absolutamente realistas, sem nenhuma recriação. Num palco nu, sacos de lixo reais, caçambas. Ao fundo, como único elemento cênico, uma escada, que se transforma no decorrer do espetáculo e a tela de projeção para as imagens em vídeo.

No entanto a integração entre o vídeo, editado por Lucas Rodrigues, muitas vezes não acontece de forma eficaz. O vídeo corta a narrativa, ao invés de se integrar a ela, ou apenas a ilustra. Não há um todo mais orgânico. O elenco traz Priscilla Marinho, como Maria numa comovente interpretação, espontânea e sincera. Eduardo Luca, que faz João, defende também com naturalidade e força seu personagem. Já Pedro Monteiro carece de maior maturidade interpretativa.

A proposta do espetáculo se fundamenta em simplicidade e realismo. Seguindo esse conceito, a iluminação de Felipe Lourenço, se integra também de forma crua, colocando o foco, sobre as passagens mais significativas e comoventes.

Importante ressaltar que falta a O Menino que não se Chamava João e a Menina que não se Chamava Maria maior dinamismo e vigor cênico, o que, se não chega a prejudicar a peça, torna-a, por vezes, lenta e até mesmo frágil, ainda que o tema seja contundente. O excesso de fidelidade ao livro na adaptação fragilizou a carpintaria teatral. Mesmo assim, trata-se de um espetáculo diferenciado, com uma proposta de renovação conceitual e estética.