Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 21.11.1999

 

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O essencial da história em texto bem autoral

A Companhia Teatro do Pequeno Gesto, responsável pela montagem de O Jogo do Amor, nos jardins, nos jardins do Museu da república, está em atividade desde 1992. Com um repertório dos mais variados, já montou Ibsen, Oscar Wilde, Fernando Pessoa e Nelson Rodrigues, entre outros. Em sua primeira incursão ao público infantil, o grupo escolheu nada menos do que Marivaux. Com cortes e recortes na obra do comediógrafo francês, o que se vê no palco é uma deliciosa trama de enganos, onde no primeiro plano está a arte de representar.

A adaptação de Fátima Saadi não deixa o espectador esquecer não deixa o espectador esquecer que está no teatro. Não é raro escutar de um dos personagens frases como: “se eu pudesse abandonaria este cenário e tiraria esse figurino”, integrada à trama, não como uma crítica, mas como mais um elemento do jogo que se encena. Sem nenhum purismo que pretenda encenar a comédia na íntegra – às vezes, espetáculos de três horas de duração que levam a platéia ao profundo tédio -, Fátima tira o essencial da história num texto bastante autoral. O resultado é dos melhores.

Nessa comédia de erros, escrita por Marivaux em 1730, Sílvia prometida por seu pai, o Sr. Orgon, ao filho de um amigo, Dorante, resolve trocar de lugar com a criada Lisete para ver de longe se lhe agrada o pretendente. Dorante usa o mesmo recurso, trocando de lugar com seu criado. O Sr. Orgon sabe de tudo e é o primeiro a avisar ao público o que está para acontecer. Em meio a esse quiprocó de entradas e saídas o final é esperado e garantido.

Antonio Guedes cria para o texto um espetáculo ágil, de imediata empatia com o público. Antes de chegar ao palco, os atores vestidos com as cores da Commedia del’Art, em figurino assinado por Mauro Leite, tratam de deixar o público bem à vontade, brincando com a localização do teatro – um canto do jardim entre dois prédios por onde o vento encanado forma uma possante refrigeração natural -, mais as cadeiras que chegam conforme o número de espectadores.

Assim, já na platéia é criado um elo afetivo com a peça, capaz de romper a quarta, a quinta e sexta e quaisquer outras paredes que possam existir. O jogo de humor continua no palco com excelente trabalho de ator e construção do espetáculo. Um pocket Marivaux, onde vale roubar a cena, superatuar e principalmente tirar proveito dos pequenos gestos. Tiques do teatro”antigo”, em releitura contemporânea, onde até o mestre-sala e a porta-bandeira reverenciam seus antecedentes mais remotos como Arlequim e a Punchinella. A história dentro da história.

No elenco de cinco atores, todos muito convincentes em seus papéis, Alexandre Dantas é Orgon, com interferência bem humorada na trama. Simone André faz uma delicada Sílvia, como pode seu papel de mocinha na história. Maria Luiza Cavalcanti, interpretando um papel masculino, não exagera na caricatura, e Vilma Melo, também em personagem masculino, dá brilho ao seu Arlequim com humor quase chanchadesco. A grande surpresa, no entanto, fica com Cláudia Ventura no papel da criada. A atriz desenha sua personagem que brinca na linha do exagero com a maior competência. Uma difícil composição que deu certíssimo.

O Jogo do Amor é um espetaculinho de pura delicadeza. Bom de ver e de participar. É o teatro encenado além do palco, que vai para casa com a platéia.

Cotação: 3 estrelas (Ótimo)