Ricardo Karman. Foto: Arquivo pessoal

Matéria publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 02.10.2015

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A Ilha do Tesouro de Ricardo Karman

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O segredo de ficar dez anos em cartaz com a mesma peça

Espetáculo interativo para pais e filhos, O Ilha do Tesouro comemora uma década ininterrupta nos palcos de São Paulo

O Ilha do Tesouro está fazendo aniversário de 10 anos ininterruptos nos palcos. É uma das peças interativas que mais resiste em cartaz em São Paulo, para pais e filhos aproveitarem juntos e na maior diversão, movendo-se por várias salas e até em trajetos ao ar livre, na busca por um tesouro. O final é lindo e tocante e, para que funcione, cada criança deve estar acompanhada de apenas um adulto da família. Texto e direção são do premiado Ricardo Karman, que, nesta longa entrevista, destrincha para nós os segredos de um sucesso tão duradouro e consistente. Quem acompanha, pesquisa e estuda o teatro feito para crianças não pode ficar de fora desse verdadeiro fenômeno que é a peça de Karman. Confira:

Crescer: O que, a seu ver, explica o sucesso e a longevidade de O Ilha do Tesouro?

Ricardo Karman: O Ilha do Tesouro é um espetáculo diferente, não há nenhum outro similar na cidade. Acredito que seu sucesso e longevidade estão diretamente relacionados ao fato de ser um programa familiar e uma oportunidade rara em São Paulo, de os pais participarem conjuntamente com os filhos em um jogo real, físico e não audiovisual. O espetáculo traz desafios verdadeiros para as crianças, que têm de mobilizar esforço e coragem para superá-los. Vivem emoções fortes e, ao término, sentem satisfação e alegria por terem conseguido. Os pais, percorrendo um caminho paralelo, cruzam com seus filhos em diversos momentos lúdicos e inesperados, e também têm suas habilidades postas à prova.

Crescer: Lembro de ter escrito, na estreia, em 2005,  que O Ilha do Tesouro inovava com uma modalidade diferente de teatro, o chamado teatro-aventura, totalmente interativo, com boa parte de sua trama desenvolvida ao ar livre e de forma bem lúdica. Depois de dez anos, esse espetáculo continua como o único representante dessa nova modalidade. Na sua opinião, por que outros encenadores não embarcaram também nesse jeito de fazer teatro?

Ricardo Karman: Justamente, essa é a minha pesquisa há mais de 20 anos, desde a I Expedição, Viagem ao Centro da Terra, no túnel do rio Pinheiros, em 1992 (hoje, Jânio Quadros). Além das necessidades físicas de um espaço inusitado e que deverá ser adaptado, há o processo de criação que envolve as reações imprevisíveis do público, interagindo o tempo todo e em movimento. É necessário prever reações e antecipar riscos. Não é muito fácil, não. Demanda uma certa experiência. Há, nesses meus espetáculos, precauções que ninguém sabe que existem. No caso do Ilha, por exemplo, as crianças estão sempre dentro de compartimentos. Elas andam para frente, por um percurso que parece infindável, mas se voltarem para trás, encontrarão pessoas vigiando ou portas fechadas. É uma maneira de contê-las e aumentar a segurança, pois, como todo mundo sabe, crianças são imprevisíveis, não são? Essas ações são invisíveis para o público, mas devem que ser planejadas e ensaiadas. A mecânica e o roteiro de um ‘teatro-aventura’ são complexos. Imagine fazer um roteiro onde o público é o ator principal, mas não sabe as falas e não sabe o que vai fazer? Isso é verdade, o público no teatro-aventura é o protagonista e, o elenco, coadjuvante. Como escrever uma dramaturgia assim? E como conduzir o público nesse movimento? É difícil. A mecânica, a dramaturgia, o deslocamento pelos espaços e a imprevisibilidade das reações do público, são construídos conjuntamente. O Ilha do Tesouro, aqui, de São Paulo é razoavelmente simples, são dois roteiros principais coordenados (mas há outros roteiros secundários): o dos pais e o das crianças. São simultâneos, porém diferentes. Porém, quando adaptei o espetáculo para o Festival Mirada do SESC, em Santos (2014), a coisa complicou. Eram 3 barcos, 3 grupos diferentes, com 3 tempos diferentes, percorrendo alguns quilômetros em pelo menos 5 localidades diferentes. Todo mundo separado por centenas de metros mas coordenados no tempo. Muito legal, muito divertido mas muito difícil de ensaiar, planejar, adaptar e montar. Acho que é por isso que ninguém se aventura a fazer teatro-aventura, é muito trabalhoso e complexo. Vá lá, também é necessária uma boa dose de engenho e arte!

Crescer: Você ganhou o prêmio de melhor diretor de 2005 pela APCA e o Prêmio Femsa de melhor produção. Comente a importância de ser premiado, para a carreira do espetáculo. Prêmios ainda são válidos para alavancar carreiras e contribuir para a longevidade em cartaz?

Ricardo Karman:
Os prêmios são importantes para balizar o público e ajudá-lo a navegar na miríade de espetáculos em cartaz na cidade. E, também, são um incentivo e um reconhecimento fundamental para aqueles que fazem espetáculos. Nunca é fácil montar e produzir uma peça. Há momentos em que nos falta o fôlego e, às vezes, quando os reveses são grandes, assola-nos o desânimo. O Ilha, por exemplo, hoje é um sucesso incontestável, mas foi montado sem qualquer patrocínio graças, apenas, à vontade e ao esforço enorme do elenco original (construímos partes inteiras das instalações, com nossas próprias mãos). Talvez seja o único espetáculo há dez anos em cartaz em São Paulo, no mesmo teatro, e que esteja sobrevivendo sem qualquer patrocínio, apenas por bilheteria. É uma vitória, sem dúvida. Mas, no início, enquanto o montávamos, vivíamos assolados por dúvidas e incertezas. Os prêmios foram um bem-vindo reconhecimento pelo nosso esforço e, claro, pelo bom resultado artístico que conseguimos alcançar. Porque, afinal, só esforço não basta para fazer boa arte, não é verdade?

Crescer: Nesses dez anos o espetáculo, por ser movimentado e ‘aventureiro’, agradou mais aos meninos do que às meninas? Comente.

Ricardo Karman: Uma década é bastante tempo, quase meia geração (uma geração, dizem, é 25 anos). E, de fato, sentimos mudanças no nosso público. As crianças mudaram de comportamento (também, os pais). Talvez, pudéssemos dizer que estão se assustando mais do que antes, embora seja apenas uma sensação. Note que há dez anos não havia Tablets nem iPhones (o primeiro iPhone é de 2007) e, o acesso individual aos conteúdos audiovisuais não era tão fácil quanto é hoje. No recorte populacional, que é o público dO Ilha do Tesouro, todos têm acesso a esses dispositivos virtuais. Parece, sim, que na última década, houve alguma mudança de comportamento nas crianças; parece que se assustam mais com as cenas reais (talvez em oposição às ‘sensacionalizadas’ aventuras virtuais, onde ficam preservadas de qualquer risco) mas, como disse acima, não é nada “científico”, apenas uma sensação nossa. O comportamento das meninas e meninos, atualmente, não difere muito. Há meninas corajosas e meninos medrosos (e vice-versa). Há pais que não aceitam o medo dos meninos e mães que incentivam a coragem das meninas (e vice-versa). Acho, até, que isso valia um estudo mais detalhado. (Eu tenho guardado a opinião do público, por escrito, de quase todos os espetáculos, desde 2005). Mas isso já é outra história… Talvez, de uns anos para cá, realmente as meninas estejam mais à vontade nos papéis de heroínas com espadas na mão, desempenhando papéis que antigamente eram exclusivos de meninos; lutando de igual para igual com eles e enfrentando os perigos com galhardia (com total incentivo e anuência dos pais e mães). O que eu acho muito bom!

Crescer: Em uma década, o elenco permaneceu o mesmo? Ou teve de mudar muitas vezes?

Ricardo Karman:
Inevitavelmente, o elenco muda. Mas Yunes Chami, o capitão Jugular, Mário de la Rosa, o Alfinete, e Antonio Lima, técnico, estão conosco desde o início, há uma década! Outros, há oito anos, como Bernardo Galegale, assistente de direção, e Xande Mello, o Cachorro Louco. Os mais novos, há 4 anos, são Ellen Regina, Bruna Aragão e Renato Sousa, o Mandíbula. É um elenco excepcional, com uma larga experiência em lidar diretamente com o público. É um aprendizado trabalhar, assim, com participação tão intensa e próxima, com adultos e crianças, ao mesmo tempo, deslocando-se de lá para cá, como é o caso de O Ilha do Tesouro.

Crescer: Houve algum acidente, queda, tombo, de atores ou de público durante esses dez anos em cartaz? Como vocês lidaram com isso?

Ricardo Karman:
Temos uma preocupação obsessiva com segurança; procuramos prever e antecipar acidentes de qualquer espécie. É claro que ao longo de uma década tivemos alguns acidentes mas, felizmente, são aqueles que teríamos se brincássemos no quintal da casa da vovó. Geralmente, nas crianças, escoriações e arranhões sem maior gravidade. Mas quem sofre mesmo são os pais que, volta e meia, tomam fortes espadadas de seus próprios filhos. Eles batem para valer!

Crescer: O espetáculo teve de ser interrompido por causa da chuva quantas vezes em dez anos? Ou a chuva nunca atrapalhou?

Ricardo Karman: Nunca interrompemos por conta da chuva. No início atrapalhava mais, mas agora, fizemos reformas e a chuva incomoda bem menos.

Crescer: Comente o fascínio das crianças pelos piratas. Por que, a seu ver, esses ‘vilões’ nunca saem do imaginário infantil, mesmo com tanta concorrência de novos personagens no cinema e na literatura?

Ricardo Karman: Eu também, não sei dizer de onde esse fascínio vem. Estreamos o Ilha logo após o sucesso do primeiro filme ‘Piratas do Caribe’ e isso, com certeza, ajudou o espetáculo. Foi uma boa coincidência. Porém, não foram os piratas o motivo que me levou a montar O Ilha do Tesouro. Claro, eu sempre gostei do livro do Stevenson, que li quando era pequeno, mas, o que realmente me inspirou, foi o seu aspecto simbólico. Vejo a aventura como um clássico rito de passagem do menino para a vida adulta. Tanto é que, da história original, usei apenas o nome e a travessia simbólica, todo o resto foi inventado. Acho que estamos carentes de rituais realmente significativos em nossa sociedade tão desenraizada de tradições. Este assunto é recorrente na minha pesquisa e, em última análise, é o que me leva a fazer esses espetáculos-viagem. Talvez, o murmúrio subterrâneo que envolve subliminarmente os participantes seja afinal o motivo secreto do sucesso dessas aventuras, desde o antológico Viagem ao Centro da Terra, 23 anos atrás.
Crescer: Qual a fala da peça que mais impressiona (diverte, emociona, faz rir, faz chorar) o público?

Ricardo Karman: Eu gosto muito do discurso do Cachorro Louco, logo no início, quando ele narra suas aventuras pelo mundo e diz: “… sou caolho, sim, mas as maravilhas que eu vi com esse único olho, vocês jamais verão com os dois que têm…”  (Pessoalmente? Me lembra o discurso de Rutger Hauer ao final do filme ‘Blade Runner’). Agora, o que faz todos rirem sempre é a cena do Cicatriz – personagem que desde o início é feito por alguém do público –, e que, ao final, já no palco, acusamos de ser o assassino do Cachorro Louco.  (Aliás, ele é recrutado com consentimento prévio e avisado do que o espera). Mas, de longe, o que mais rende comentários e reações emocionantes, tanto dos adultos quanto das crianças é o desfecho inesperado do espetáculo.
Crescer: Conte alguma história relacionada ao público que mais tenha marcado nesses dez anos de peça.

Ricardo Karman: Há várias histórias, mas há um fato recorrente que é muito legal. Somos rigorosos com o limite de idade, de sorte que, irmãos pequenos não podem vir com os mais velhos. Porém, como o espetáculo está há muito tempo em cartaz, é comum que, com os anos, as famílias tragam todo mundo para assistir; um filho, depois outro e depois outro, acompanhados pelo pai, mãe, avô, avó e por aí vai. As famílias se tornam habitués do espetáculo e amigos do elenco, conhecendo os atores pelo nome, seus personagens e tudo o mais. Dos últimos anos para cá, têm vindo jovens adultos, com seus 20, 22 anos que por aqui estiveram quando tinham 10 ou 12 anos e agora estão trazendo priminhos ou outras crianças menores. Há pais que assustam os filhos quando não deveriam e, estes, ficam muito bravos e brigam com os pais depois. Há filhos que bateram tão forte nos pais com suas espadas, que os coitados ficaram com vergão nas costas. Há pais que choraram na cena final e nos abraçaram muito, com lágrimas nos olhos. Há crianças que já voltaram inúmeras vezes (acho que umas sete pelo menos). Há pais que contam como a história continua dias dentro de casa, pois as crianças continuam envolvidas com ela. Emocionadas ou montando as partes, já que cada um vivencia um pedaço diferente da aventura. Há crianças que tiveram medo da primeira vez, mas insistiram em voltar para superá-lo e, quando conseguiram, ficaram muito felizes com isso. Eu vi uma mãe que quis tirar a filha da escadinha do porão, onde começa a fuga das crianças para a aventura, porque ela estava com mais medo do que a filha. E a tia, irmã da mãe, brigou com ela para deixar a menina ir. De fato, a filha era mais corajosa que a mãe… Há muitas histórias boas de se contar… É um espetáculo que ao final todos saem felizes. Você sabe que é um espetáculo pensado para pais e filhos, participarem em duplas. Mas, uma vez, logo no início, fizemos um espetáculo só para órfãos carentes, com adultos amigos convidados. Foi uma experiência emocionante.

Serviço

Teatro do Centro da Terra (É preciso ir em dupla, lá você vai entender o motivo)
Rua Piracuama, 19, Sumaré
Tel. 3675-1595
Domingos, às 11h
R$ 120,00 (preço por dupla, ou seja, um adulto acompanhado de uma criança de 7 a 12 anos)
Até 13.12