Crítica publicada no Jornal do Brasil
por Carlos Augusto Nazareth – Rio de Janeiro – 27.11.2004
Os irmãos de Sherazade
Novo espetáculo de Fátima Café leva público a perceber que pode criar histórias
O Guardião das Histórias das 1001 Noites, espetáculo inspirado no fabulário oriental, em cartaz no Centro Cultural Suassuna, é um texto de Fátima Café, que há quinze anos desenvolve pesquisas voltadas para o público infantil. No palco, uma “contação” de histórias com recursos do teatro, como ambientação cênica, figurinos, trilha sonora, luz. Fátima é Dinazade, um personagem-narrador que deseja se tornar uma contadora de histórias, como Sherazade, sua irmã. Para conseguir isto tem que contar O Bufão do Sultão, do início ao fim, sob os olhos do Guardião de Histórias, personagem criado pela autora.
Dinazade, porém, a todo o momento se esquece de um pedaço da história. Para conseguir lembrar-se dela, ela solicita a intervenção da plateia. O personagem é construído com humor e Fátima o conduz muito bem, fazendo uma Dinazade atrapalhada e ingênua em interação permanente com o público.
A narrativa oral cênica se tornou presença predominante nos palcos do teatro. E essa dramaturgia não se confunde com a do teatro, entendendo-se como dramaturgia a estrutura que sustenta a narrativa. Na verdade, uma leitura crítica deste tipo de espetáculo exige de uma abordagem específica, pois no momento em que a contação sobe aos palcos e se utiliza das linguagens teatrais, dá origem a uma nova forma de expressão: uma teatralização da contação de histórias.
Sob esta perspectiva, Fátima atinge seus objetivos, já que conta a história e envolve o público. Porém as várias interrupções, promovidas pelo personagem-narrador fazem com que se perca, em alguns momentos, o fio narrativo da história que Dinazade tenta contar.
Fátima manipula bonecos de diversas técnicas, tecidos e objetos, exceto o personagem Schariar, representado por um grande boneco, que jamais ganha vida. Os bonecos são utilizados mais como ilustrações da história que está sendo contada. O processo de criação dos atores-manipuladores do teatro de formas animadas é normalmente centrado em uma ou duas pessoas, assim como o processo de criação dos contadores de histórias. De modo que, ao unir estas duas vertentes, Fátima Café assume esta forma de produção, assinando texto, direção, concepção, cenários e figurinos.
Carlos Café também confecciona os bonecos e faz a trilha sonora. Renato Machado faz a luz. Este é um procedimento comum na produção da narrativa oral cênica, não só por uma opção de linguagem, mas também pelos fatores socioeconômicos que atingem a cultura e o teatro.
Fátima Café convida o público a se apropriar da história, assim como Dinazade precisa se apropriar do conto para conseguir ser uma boa contadora de histórias – processo que acontece com todo bom contador. Desta forma, Fátima leva a plateia a construir a história junto com ela, propondo, estimulando, provocando, colocando o público dentro do processo de criação.
Podemos considerar O Guardião das Histórias como um work in progress. Pequenas mudanças no texto, uma maior precisão na manipulação dos bonecos e alguns ajustes na encenação, merecem a atenção dos realizadores.