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Em 2004, fui convidado por Teresinha Heimann da Fundação Cultural de Blumenau para cobrir o Festival de Blumenau, pelo JORNAL DO BRASIL, o que tomou a acontecer em 2005, quando estive novamente fazendo a critica de todos os espetáculos que se apresentaram no festival.

Participar do Festival é uma oportunidade única, pois temos uma amostragem do teatro para crianças de todo o Brasil, além de podermos ouvir especialistas em diversas áreas teatrais que propõe discussões e reflexões.

Acreditamos que uma das mudanças mais radicais necessárias para se fazer teatro para crianças seja a necessidade de constante reflexão, discussão e aperfeiçoamento de profissionais, estendendo-se esta discussão aos mediadores, pais e professores.

Por isto, eu e Maria Helena Kühner, ao lado de Rômulo Rodrigues, criamos no Rio de Janeiro o CEPETIN – Centro de Pesquisa e Estudo do Teatro Infantil que se propõe a diversas ações que visem, principalmente, a QUALIDADE do teatro para crianças.

Lutamos contra toda uma prática cultural onde a criança e as atividades direcionadas a elas têm uma visão distorcida, por parte mesmo de pais, educadores, dirigentes políticos, condutores da política cultural e educacional do país, onde o que é feito para a criança não tem espaço na mídia, não é valorizado em nenhum de nossos segmentos.

Isto revela um total descaso com a formação como um todo, do cidadão, onde a Arte já está mais do que provado, é elemento fundamental.

A luta daqueles que trabalham com e para a criança é muito maior do que parece pois se trata de modificar o modo de ver e lidar com a cultura do produto cultural voltado para a criança, e também à educação, de todo um país, envolvendo todos os segmentos da sociedade.

Portanto, ações como a do Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau, que, na verdade, não se restringe ao período do festival, mas a uma política durante todo o ano, devem ser mantidas, prestigiadas, ampliadas e, por que não, copiadas.

Quando recebemos o convite para a participação da cobertura pelo JORNAL DO BRASIL, fazendo não só a matéria de divulgação do evento, mas a crítica dos espetáculos que se apresentaram, entendemos a importância não só da divulgação nacional do evento, mas da possibilidade também de se modificar a visão da crítica teatral, que se inclui nas mudanças necessárias de modo de ver, até mesmo pela própria classe teatral, pelos órgãos de imprensa e pelo público em geral.

Em função disto, escrevemos um artigo, que ora transcrevemos:

O Espaço da Crítica

Afinal, o que é o espaço da crítica? Para que serve? Qual a sua função? Perguntas muitas vezes feitas; perguntas geralmente sem respostas, pois dificilmente se reflete sobre elas, embora sempre se reivindique a presença da crítica nos órgãos de imprensa. A palavra crítica, num senso comum passou a ser utilizada e entendida como um comentário negativo sobre determinado fato, ação ou outra expressão qualquer do humano.

Etimologicamente, crítica (do grego kritikós) significa: arte ou faculdade de julgar produções de caráter literário, artístico. Apreciação. Sempre pensamos na crítica com esta conotação – apreciação – claro que traz, subsidiariamente, um julgamento de valor implícito, mas é exatamente este julgamento de valor objetivo, enquanto técnico, subjetivo, enquanto arte que gera a possibilidade de discussão do processo de criação do resultado artístico apresentado e que cria o espaço de reflexão.

É necessário que, antes de qualquer coisa, se pense sobre a função da crítica. Sobre a possibilidade que ela oferece de se discutir o fazer artístico, de proporcionar uma troca entre criador e receptor. “Eu, como criador, vejo como minha obra foi recebida, repenso, revejo, concordo, discordo, mas vou ser obrigado a olhar para a minha obra, para o meu umbigo, com o olhar do outro.”

E o crítico – que receptor é este? Uma pessoa, antes de tudo e também um especialista, com prática e vivência daquela expressão artística – pelo menos este deveria ser o crítico especializado – que emite sua opinião, num determinado dia, sobre uma determinada apresentação, de uma determinada manifestação artística, com todo o cuidado e respeito que merece todo e qualquer criador, ou todo e qualquer ser humano, justificando ou expondo o porquê desta ou aquela visão sobre a matéria em questão.

O subjetivo é matéria do julgamento de valor. Por mais que se analise tecnicamente uma obra de arte, o imponderável da arte, ali presente, suscita a imponderabilidade de quem assiste e tem que emitir uma opinião sobre aquilo que vê.

E que opinião seria essa? A tão decantada visão externa, isenta – se é que algo que vem do ser humano e que seja expressão do humano e do artístico, que seja “expressão da alma” , possa ser isento. Uma opinião, diríamos nós, de quem não vivenciou o processo, que não está toldado pela paixão do ato criador que, inevitavelmente, prejudica a capacidade de análise distanciada daquilo que cria.

“Eu crio, portanto ali eu estou. Portanto, olhar minha obra com olhar isento é me ver com um olhar externo de mim mesmo, tarefa sobre-humana, quase impossível. Esta tarefa cabe ao outro. E aqui, no caso, o outro é o crítico”.

E esta opinião é isenta e justa? Evidentemente que não. Justa? Há uma análise do que está sendo mostrado, mas não um julgamento que condena ou absolve o produto artístico. Este é imune a este tipo de julgamento que absolve ou condena. A opinião do crítico ou de qualquer um não é um selo de qualidade do Inmetro – que muitas vezes também falha.

Todas as formas de expressão são válidas, dignas, quando feitas com sinceridade artística. No teatro, existem muitos teatros. Os nossos espectadores são multiuniversos.

Aí se encontra o subjetivo. Analisamos uma expressão artística através de nossa visão do que seja arte, da função da arte, de nosso papel no mundo, na sociedade, a partir de nossa formação como indivíduos, de nossa formação acadêmica. E aí está a riqueza da crítica – da mesma maneira que um mesmo texto dirigido por mil diretores darão origem a mil espetáculos, a crítica feita por diferentes pessoas, por diferentes critérios, levam a diferentes conclusões. E corre-se o risco de sermos injustos? Sempre.

Yan Michalsky não quis que suas críticas fossem publicadas em livro, o que só ocorreu, após a sua morte, pois, numa análise posterior, acreditava ter sido magnânimo com alguns espetáculos e muito rígido com outros. A crítica de uma obra de arte não é um exame da composição mineral de uma substância. A substância é a Arte e sua expressão – efêmera e eterna – contraditória.

A crítica não é uma complementação da divulgação de seu trabalho, a crítica não tem função específica de atestar qualidade a um espetáculo, embora, claro, possa fazê-lo subsidiariamente.

A crítica não é feita para ser apenas parte de um “press-release” para a venda de espetáculos.

Criadores já disseram – “precisamos de uma boa crítica para podermos vender nosso projeto.” – nada mais equivocado. Na verdade os produtores e divulgadores solicitam desesperadamente a presença do crítico, na verdade, desejam um elogiador. E quando a opinião do crítico não é a desejada, surge uma posição extremamente defensiva. Quando o crítico elogia, ele passa a ser um mestre no assunto, um amigo, um acarinhador, quase mito, para aqueles que foram elogiados. Quando ele aponta problemas, ele passa a ser uma pessoa presunçosa, dono da verdade que não entende nada da expressão artística que analisa.

Temos tão poucas possibilidades, tão poucos espaços para podermos discutir o fazer artístico que a crítica se torna uma das poucas possibilidades de diálogo. Diálogo sim, porque, como já dissemos, a crítica não é um atestado. Crítica é uma análise. Um questionamento. Uma pergunta. Uma dúvida. Uma proposta. Não pode ser unilateral. Para surtir efeito tem que ser lida com certa generosidade pelos criadores. Tem que ser ponto de partida, jamais de chegada.

Bárbara Heliodora disse, em entrevista, acreditar que a crítica é paternalista. Em relação ao teatro para crianças, diríamos mesmo que ela é maternalista.

O criador tem como parâmetro seu próprio imaginário e repertório e o momento da criação é indizível, como diz Jean-Louis Ferrier: “O indizível – aí é que começa a arte”

Centrados em nossos umbigos, quando somos instados a olhar de fora para nossa criatura não aceitamos que se diga qualquer coisa sobre ela, que não elogios.

Este é o caminho mais curto para a estagnação.

A diversidade de opiniões é de suma importância. São necessárias muitas opiniões, divergentes, opostas, convergentes, para que se estabeleça uma saudável discussão.

Diz um antigo e conceituado crítico literário que o mais importante da crítica é provocar a discussão da obra de arte. Importante quando o criador não aceita a crítica, quando os leitores, uns concordam, outros discordam – aí se instala o debate, a reflexão. A crítica, então, cumpriu sua tarefa.

Este é o caminho para sair da estagnação.

Precisamos de mais críticos, precisamos de mais opiniões, precisamos de mais espaço na mídia, nas universidades, na graduação, nos cursos de pós-graduação, mestrados, doutorados, para discutirmos o teatro para crianças, precisamos de mais sinalizadores sobre a qualidade no teatro infantil – infantil, sim, por que não? Outra conotação pejorativa que se estabeleceu para essa palavra que representa um estado, na verdade de plena pureza e que precisa ser demolida.

Precisamos levar os mediadores, pais e professores para o teatro, para então podermos começar a formar plateia.

Os especialistas em literatura infantil dizem não haver criança leitora se não há pai leitor e professor leitor. O mesmo podemos dizer do teatro. Dificilmente, teremos criança espectadora se não tivermos pais espectadores, professores espectadores.

E o teatro existe apenas na linha abaixo do Equador – na zona nobre da cidade. Toda a discussão do teatro para crianças parte de uma amostragem reduzida, dirigida a uma elite. E teatro é uma expressão popular. A interiorização do teatro é fundamental, criar a possibilidade de acesso ao teatro é fundamental. Vivemos um momento histórico-político-social de possibilidades de mudanças. O teatro para crianças não se aliena do contexto sociopolítico, nem do Teatro, nem da Arte, nem da Cultura, mas cada um só pode cuidar do seu pedaço.

E teatro para quê? Para provocar, fazer pensar, emocionar, entreter, dar prazer estético. Expressão ancestral do humano.

E refletir para quê? Para repensar, buscar caminhos, aceitar descaminhos, discutir probabilidades, buscar possibilidades-viver.

A crítica é feita para fazer pensar, para abrir um espaço de discussão, de reflexão.

E a crítica, embora técnica, não é feita apenas para a classe teatral, tem que ter uma linguagem acessível ao grande público, que possa tomá-la como um dos muitos referenciais que deve buscar para a escolha do espetáculo teatral que deverá proporcionar ao seu filho ou aluno – é responsabilidade do mediador.

A qualidade do teatro infantil cai a cada ano, isto é uma opinião unânime. Que contribuição a crítica pode vir a dar a este caminhar quase inexorável para espetáculos que, ao invés de formar plateias, afastam gerações das cadeiras do teatro?

A crítica é um pequeno segmento de um amplo universo e que tem a fonação de trazer sua contribuição, se deixarmos nossos egos na gaveta, olharmos com um olhar de fora, repensarmos, refletirmos, concordarmos, discordarmos, buscarmos e nunca chegarmos ao espetáculo perfeito. Porque este, nunca estreou.

Na verdade, a crítica faz parte do processo criativo. Em primeira instância, por seu criador, depois por conhecidos e, em última instância, por esse desconhecido, anjo ou demônio, feito de verso e reverso de uma mesma medalha: o crítico – que não é o algoz que tem um prazer imensurável de falar mal daquilo que vê. Muito pelo contrário, ver a arte a qual se dedica ser bem realizada é tudo o que um crítico deseja. Tanto quanto o criador.

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Carlos Augusto Nazareth
Professor, de Literatura, especialista em Literatura Infanto-juvenil. Escritor, dramaturgo, Diretor Teatral, Crítico de teatro infantil do Jornal do Brasil. Tem oito livros de ficção publicados.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2004 e 2005)