Considerações Finais

A especificidade do teatro infantil como uma modalidade artística autônoma tem gerado controvérsias. De um lado, há uma tendência em afirmá-lo como tal. De outro, a concepção de que não existiria, a rigor, um teatro específico para crianças.

Se, por determinações de mercado, esta separação passou a existir em termos de horários e espaços de apresentações, concessão de patrocínios, verbas, prêmios, criação entidades representativas próprias, etc., isto não significa, necessariamente, que do ponto de vista estético, haja ou deva haver uma distinção entre teatro adulto e infantil.

Por outro lado, ao longo destes 56 anos de história, se considerarmos que o ano de 1948 marcaria a sua fundação, tal como expõe Claudia de Arruda Campos em seu Maria Clara Machado, houve uma significativa produção de textos e espetáculos destinados às crianças cujo estudo, em grande parte ainda por ser feito, poderia acrescentar novos elementos a essa discussão.

Uma importante questão a ser considerada, está na intencionalidade ou não de se fazer um teatro para crianças.

Em No Reino da Desigualdade, Maria Lucia de Souza de Barros Pupo destaca que a contradição básica e inerente ao teatro infantil reside no fato de que a emissão da mensagem é feita pelo adulto e a recepção pela criança. O estudo alerta para os efeitos perversos da relação estabelecida, principalmente quando se trata de determinar aprioristicamente apenas a criança como público alvo. A saída apontada estaria na plena utilização dos recursos do gênero dramático e a não demarcação de fronteiras etárias, permitindo à criança um real encontro com a arte.

Vladimir Capella, em palestra proferida em junho de 1997, por ocasião de um Seminário sobre o teatro infantil realizado pelo SESC-SP afirma:

Acho que escrevo e dirijo Teatro. ‘Prá quem?’ ‘Em que coluna do jornal vai sair?’ e, ‘Que público é que vai gostar?’ são coisas que já não me dizem respeito.” (V.C.)

Apenas para traçar um breve paralelo com a criação literária, Lígia Bojunga Nunes em entrevista concedida a Laura Sandroni, ao responder-lhe porque tinha a criança como receptor, afirma:

Ah, isso eu não sei. Mesmo. Eu sentei pra fazer literatura. E parece que a minha literatura saiu com uma cara que não desagrada a criança. Prá falar a verdade eu não acho isso estranho. Você, que tem filhos: você sabia a cara que eles iam ter?” (118)

Por outro lado, Claudia de Arruda Campos em seu citado estudo sobre a obra de Maria Clara Machado, defende a existência do teatro infantil como arte específica.

Para a autora o teatro para crianças tem desenvolvido uma poética própria, na qual pressupostos estéticos e não outros (psicológicos, educativos, etc) o identificam como tal.

Tais pressupostos têm como fonte os do teatro adulto, mas, segundo ela, não necessitam tê-lo como referência imediata. A diferença apontada pela autora, estaria na liberdade que o teatro infantil teria em relação às expectativas e aos moldes do teatro para adultos, o que lhe permitiria alimentar um objetivo bastante amplo: levar a criação a limites extremos, livres de conceitos cristalizados e exercer a função contra-ideológica que tem cabido à arte na modernidade. O estudo faz ainda uma revisão crítica das inúmeras tentativas feitas, ao longo da história do teatro infantil, para impor-lhe determinados parâmetros estéticos, muitas vezes formulados a partir de critérios extra-artísticos para, a partir deles, julgar a qualidade de um espetáculo. Com base nestas reflexões, a autora analisa a obra de Maria Clara Machado, tentando descobrir quais os caminhos percorridos pela dramaturga na construção dos primeiros pilares de uma identidade estética para o teatro infantil.

A análise da obra de Vladimir Capella aqui empreendida levou em consideração todas estas questões.

Os resultados que obtive me levam a pensar que seu teatro não está restrito a um público específico. Pelo contrário, os temas que aborda dizem respeito às grandes questões humanas e o modo como os dispõe em seus textos permite inúmeras leituras, inclusive a da criança.

O predomínio do espaço mimético sobre o diegético para revelar a morte, conforme foi demonstrado por esta pesquisa, leva a concluir que Vladimir Capella desvenda o enigma. Permite que sua plateia entre em contato com o tema, sem ocultar o drama que ele contém.

Os resultados obtidos também permitem afirmar que o teatro de Vladimir Capella vem dizer que a arte, e talvez somente ela, é capaz de vencer a morte. É este o princípio organizador de seu discurso. E talvez por isso mesmo, ele seja capaz de criar espetáculos para todas as idades.

Ao lograr incluir a criança, Vladimir pode semear sua arte em terreno fértil e talvez fazê-la florescer. A criança, ao assistir suas peças, pode encontrar, por meio da arte, algumas respostas que a ajudem a enfrentar os vários obstáculos que a vida lhe impõe.

Esta capacidade de incluí-la, permite que seu teatro possa ser definido também como teatro infantil, cuja história ele integra há 25 anos, com sua inestimável contribuição.

A recepção da criança é possibilitada, em primeiro lugar, por meio da poesia contida em seus textos, que os torna sintéticos o bastante para permitir que ela os aprecie sem dispersão. O emprego poético e sugestivo da palavra e os cuidados com os aspectos visuais (sempre recomendados nas rubricas), são qualidades que permitem que a recepção do espetáculo possa ocorra sobretudo através da sensibilidade.

A música, traduzida em belas canções ou em belos arranjos instrumentais, apresenta-se como uma linguagem co-participante do teatro capelliano e também se configura como um veículo de aproximação do seu teatro com o público infantil.

Outros elementos mais específicos à sua construção dramatúrgica, como a presença do narrador como contador de histórias, a criação de personagens infantis como seres pensantes, críticos e agentes de seu próprio destino, são fatores que também permitem a fruição e o deleite da criança.

Ao adulto, além do prazer sensível que estas opções estéticas igualmente lhe proporcionam, o teatro de Vladimir Capella é passível de muitas outras instâncias de produção de sentido, algumas delas apontadas ao longo desta dissertação.

Assim como sua narrativa faz o passado andar de mãos dadas com o presente e a morte com a vida, seu teatro, buscando restabelecer o elo rompido por uma sociedade que se apóia no reino da desigualdade, vem unir o adulto com a criança, tocando-lhes bem fundo o coração.

Por isso, se me perguntarem: “Já leste um poeta que, com o poder das palavras te tocasse bem fundo o coração?” Responderei, sem hesitar:

– Sim. Vladimir Capella!

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Barra de Divisão - 45 cm

Notas

(118) SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga, as reinações renovadas. SP Agir 1987, p.170.