Capítulo 1

1.1 – Trajetória Dramatúrgica

Como bem aponta Claudia de Arruda Campos em seu livro Maria Clara Machado, o teatro infantil brasileiro nasce como resultado do processo de modernização por que passava o país após a segunda guerra mundial. Visando ampliar seu público e socializar a cultura, o teatro inclui a criança em suas platéias, não com finalidades estritamente didáticas (como fazia o teatro escolar até então) mas com o intuito de proporcionar uma autêntica e verdadeira experiência estética:

Sob qualquer ângulo, o teatro infantil brasileiro confunde suas origens com o moderno teatro brasileiro. Nasce como teatro, e nele qualquer outra preocupação ficava em segundo plano“. (02)

Entretanto, esta vocação foi sendo obscurecida tanto pela carência de profissionais capacitados, como pelas facilidades proporcionadas por um novo mercado (composto pelo emergente público consumidor que nascia das classes médias urbanas) no qual o teatro para crianças tornou-se, em grande parte, mais um produto a ser vendido. E um produto que nem sempre primava pela qualidade. Em larga escala, o teatro infantil passou a ser considerado tão somente como um recurso pedagógico útil para transmitir ensinamentos ou para formar futuros espectadores. E, por isso mesmo, como uma arte menor.

Os anos 70 protagonizam um recrudescimento da modalidade. A segunda metade da década corresponde ao início do processo de redemocratização no país. Coincidentemente ou não, surge um número significativo de novos autores, diretores e grupos que voltam sua atenção para o teatro infantil, agora não apenas como mera mercadoria ou instrumento didático, mas como uma forma de expressão artística que abrange uma plateia inteligente, crítica e desejante: a criança.

Aqui começa a trajetória de Vladimir Capella. E desde então a história do teatro infantil brasileiro modifica-se, para melhor.

Sua obra não só retoma o princípio fundador do teatro infantil brasileiro em 1948, o de ser Teatro, como também propõe novos caminhos a serem percorridos por esta história.

Resta ao estudioso descobrir quais foram estes caminhos ao longo dos 25 anos de trabalho do autor/diretor.

1.2 – O Jogo e o Folclore: Panos e LendasAvoar

…O objetivo da gente nesse período era desglamourizar o espetáculo. Tudo tinha que ser construído na frente da criança. Cenários maravilhosos e encantado eram coisas da televisão que a gente execrava… Era importante que a criança compreendesse o processo.” (V.C.)

Panos e Lendas (1978), o primeiro texto de Vladimir Capella, escrito em parceria com José Geraldo Rocha, é construído a partir de lendas e canções folclóricas brasileiras. A pesquisa foi realizada pelo grupo Pasárgada, que também se responsabilizou pela produção.

A dramaturgia de Panos e Lendas se distanciava muito da concepção tradicional de texto dramático. A tal ponto que o próprio grupo não se sentia seguro para montá-lo. O risco foi assumido por Vladimir que se incumbiu da direção do espetáculo.

O texto é composto por um prólogo (a origem do mundo), um epílogo (o fim do mundo) e seis cenas entre ambos.

O prólogo apresenta o Nada primordial através de uma canção, composta por Capella. A seguir, Caru e seu filho Rairu caminham no princípio do mundo. Criam o céu e o sol. Encontram os homens presos em um buraco e os ajudam a sair. Criam os bichos.

As seis cenas que se seguem são: Os bichosA pedra e a canaMacunaímaMacaco e o grão de milhoHelena PereiraCantigas e brincadeiras. Em cada uma das histórias, temas como o medo, a morte, o nascimento, o amor e a liberdade são abordados. Desfilam personagens dos mais diversos, sempre interpretados pelos sete atores que compõem o elenco, que vão trocando de “panos” às vistas do público, assumindo inúmeros papéis. O nascimento de Macunaíma, para citar um exemplo, apresenta doze personagens, representantes das várias regiões brasileiras que, com suas vestes típicas e seu sotaque peculiar, vêm presentear o herói recém nascido.

Um aspecto a ser destacado é o uso da linguagem coloquial nas falas de todas as personagens interpretadas pelo grupo, com exceção das vozes das duas figuras míticas, Caru e Rairu, cujas falas estão na segunda pessoa.

Todas as mudanças de cena são realizadas no palco. A ligação entre elas se dá ora por meio de canções, ora através de objetos deixados de uma cena para outra, que assumem novo significado. Por exemplo, um livro de histórias com que Macunaíma fora presenteado é deixado em cena e “encontrado” por um dos atores que o lê em voz alta, dando início à cena seguinte, O macaco e o grão de milho.

A última cena do texto, Cantigas e brincadeiras, termina com todos cantando:

Marcha soldado/cabeça de papel/se não marchar direito/vai preso pro quartel“.

Saem, deixando o palco vazio e um pouco escurecido. Os autores aqui provavelmente fizeram uma alusão à ditadura militar, ainda em vigor no período.

O epílogo mostra Caru já velho e Rairu já crescido, chegando ao fim do mundo. Voltam ao Nada e descobrem que o fim é igual ao começo. Retiram novamente as pessoas do buraco e todos terminam cantando a mesma canção do início da peça.

As músicas eram executadas e cantadas ao vivo pelo elenco.

A sonoplastia das cenas era igualmente feita ao vivo, com pequenos instrumentos de percussão como apitos, chocalhos, sinos, etc.

Com exceção das cantigas folclóricas recolhidas pelo grupo, as demais canções foram compostas por Capella especialmente para o espetáculo. Vladimir já compunha há algum tempo e já recebera alguns prêmios em festivais de música estudantis.

Sobre os critérios que usou para criar as canções de Panos e Lendas, Capella afirma:

“Compus músicas brasileiras e que agradassem primeiro aos meus ouvidos. Pensava que se me agradassem agradaria a outros. Crianças e não crianças. Sempre pensei assim: crianças e não crianças. Pra tudo.” (V.C.)

Panos e Lendas recebeu os mais importantes prêmios do ano, inclusive o “Molière” para Vladimir Capella. Na época, este era o mais importante prêmio conferido ao teatro. Para os espetáculos infantis seu valor era redobrado, pois somente um troféu (e uma viagem a Paris) era destinado à modalidade, enquanto que o teatro adulto recebia um troféu (e uma viagem) para cada categoria premiada: ator, atriz, autor, diretor, etc.

Com uma matéria prima semelhante à usada em Panos e Lendas, Vladimir escreveu, em 1980 seu primeiro texto solo, Avoar, também composto por canções e brincadeiras populares. O espetáculo estreou em 1985.

O fio condutor de Avoar é menos tênue do que o de Panos e Lendas. As personagens são fixas e apesar de apenas delineadas em termos de conflitos interiores, possuem alguns traços de personalidade.

Avoar trata das perdas decorrentes da vida nas grandes metrópoles: Um grupo de pessoas que vive na cidade grande, com todas as suas vicissitudes ouve um grupo de crianças entoarem uma canção infantil que fala sobre a liberdade: Por mim não, borboleta, você pode avoar. A canção estimula o grupo a se desvencilhar de suas roupas apertadas e a brincar. A continuidade da brincadeira depende do cumprimento das determinações do primeiro jogo que estabelecem, “Boca de Forno”: são obrigados a trazer ao “mestre” uma lua, uma palmeira e uma canção. A tarefa é quase impossível num contexto urbano. Para realizá-la, constroem um barco com o material dos prédios e empreendem uma viagem, durante a qual ocorrem várias brincadeiras e canções. A palmeira é encontrada, mas destruída por eles ao encenarem uma parlenda que trata da morte. A lua também aparece, mas depois se esconde, trazendo os prédios de volta. Tudo parece perdido quando a canção é lembrada. Ela é cantada fortemente por todos, fazendo com que a lua reapareça em meio à cidade. É a mesma canção do início – Avoar.

O cenário, assim como em Panos e Lendas é flexível. A exploração dos diferentes usos de um mesmo objeto de cena, ou sua transformação às vistas da platéia são recomendadas pelo autor em alguns momentos do texto.

Por exemplo, a rubrica da página 6 indica:

E começam, durante a canção, a construção de um grande barco que, como sugestão, deveria ser feito com os prédios.” (03)

À página 12:

Sugiro que a palmeira seja criada a partir de algum objeto que já se encontrava em cena.” (04)

(Na montagem de 1985, um velho guarda-sol que estava no barco se transformava na palmeira).

E à página 19:

“Como a palmeira, a lua também deve surgir de algo que já se encontrava em cena. Exemplo: uma bacia, uma peneira, um tambor, etc… ” (05)

Em Avoar, a música exerce um papel fundamental. Substitui diálogos, explicita conflitos, funciona como texto. As melodias ora tristes, ora alegres, ora soladas, ora cantadas em coro, criam atmosferas emocionais decisivas para a compreensão da trama. Na montagem de estreia em 1984 e nas demais que tive notícia, as canções foram executadas ao vivo. Tanto Avoar, como Panos e Lendas se inscrevem nas novas tendências estéticas inauguradas na década de 60, que transformariam os caminhos percorridos pelo teatro até então. Dentre os novos princípios a dessacralização do texto, o predomínio do elemento lúdico, a negação do palco italiano e a quebra da quarta parede são alguns dos procedimentos adotados por Capella em ambas as montagens.

Entretanto, segundo o livro No reino da desigualdade, de Maria Lucia Pupo, (SP: Perspectiva, 1991) a substituição das teses morais pelo elemento lúdico ocorrida no teatro infantil nos anos 70-76, também teria dado lugar à ausência de conflitos ou ao empobrecimento dos mesmos.

Quanto a esta questão, a estrutura dramatúrgica de Avoar causou uma pequena controvérsia na crítica especializada de então.

Clóvis Garcia definiu a peça como uma sucessão de jogos, sem apontar a presença de um conflito definido:

Em Avoar, Capella retoma a forma de espetáculo composta de uma sucessão de jogos, sem uma estrutura dramática no sentido convencional, com música, canto e dança.” (06)

E mais adiante:

Se não há um desenvolvimento dramático estruturado em torno de um conflito, o interesse é mantido pelo reconhecimento (ou nostalgia, no caso dos adultos) da vivência cotidiana, dramatizada e representada pela encenação.” (07)

Enfoque diverso foi o de Robson Camargo:

O texto poderia ser apenas um painel de músicas e brincadeiras para entreter as crianças e seus pais. Não é. Na procura das emoções perdidas, remexe o cenário de uma cidade cinzenta. É uma luta atrás de elementos esquecidos que poderiam embalar a alegria e o prazer de nossas relações pessoais” (08)

Note-se, entretanto, que ambos os críticos não abordaram o espetáculo como um produto exclusivo ao público infantil. Ao contrário, enfatizaram, cada qual a seu modo, o interesse despertado pela peça no público adulto.

Com efeito, na epígrafe do texto, Vladimir deixa claro que sua obra não se destina a este ou àquele público em particular:

Avoar foi o jeito urbano que encontrei de trazer de volta as velhas noites de lua, as cadeiras nas calçadas e a rua onde a gente brincava ao som de cantigas de roda. Um jeito de recuperá-las, coligi-las e documentá-las. E será, espero, um modo de cantá-las e espalhá-las por todas as cidades, até descobrir onde a lua se esconde. E fazê-la voltar: se não por cima dos prédios, pra dentro deles. Mantê-la presente: nos olhos, entre as pessoas, no coração.” (09)

Em relação à existência ou não de conflito em Avoar, creio que nem o texto e menos ainda a encenação dirigida pelo autor em 1985 deixaram-no oculto. Ele é colocado logo no início da peça, quando um dos personagens, o “mestre” da brincadeira “Boca de forno” ordena aos demais que lhe tragam uma lua, uma palmeira e uma canção, tarefa quase impossível de ser cumprida em meio ao amontoado de prédios em que viviam. A busca por transformar suas próprias vidas e a da cidade, empreendida pelo grupo de personagens de Avoar é um conflito que ainda permanece atual.

Dentre as inúmeras montagens do texto, duas merecem registro:

Uma das apresentações da peça, ainda na montagem de 1985, foi realizada no TUCA, no início de seu processo de reconstrução após o incêndio. O espaço deu uma nova dimensão ao texto e à montagem. A proposta de reencontrar na cidade cinzenta a poesia perdida, encenada no lugar que fora quase um ícone da resistência ao governo militar e que se encontrava em escombros devido ao incêndio ocorrido no ano anterior, adquiriu um significado quase mítico: o de fazer Fênix renascer das cinzas.

A apresentação foi feita em espaço aberto, ao ar livre, no lugar que era ocupado pelo palco antes do incêndio e assistida por um grande número de estudantes e crianças.

Uma outra experiência com Avoar, foi a vivida pelo diretor pernambucano José Manoel. Encabeçou uma montagem de Avoar com um grupo de teatro formado por presidiárias, ligado à Penitenciária Feminina do Bom Pastor, no Recife. A peça foi apresentada em alguns presídios.

Uma rebelião de presos ocorrida no mesmo período exigiu a presença de José Manoel nas negociações. A música tema da peça: “Por mim não, borboleta, você pode avoar” foi utilizada como forma de protesto e de solução do conflito.
Como a Lua
A despeito de seu caráter lúdico, pode se dizer que ambos os textos são estruturados em torno de alguns dos conflitos que irão perpassar toda a obra posterior de Capella: a morte, os medos, a liberdade. Conflitos intrínsecos à infância e à maturidade. É o salto que o autor dá sobre a história do teatro infantil dos anos 70.

Em 1985 Avoar, a exemplo de Panos e Lendas recebeu diversos prêmios da crítica especializada, dentre os quais: Mambembe, como melhor autor, APETESP, como melhor autor e diretor, INACEN como um dos cinco melhores espetáculos do ano.

1.3 – O Jogo do Tempo e do Espaço: Como a LuaAntes de Ir ao Baile:

Pode se mostrar tristeza às crianças? Falar de rejeição? De abandono? De morte? De dor?” (V.C.)

(1981) é o primeiro texto de Capella que trata do desejo e da paixão. É também a primeira peça com uma história criada por ele. Com ela nasce a primeira personagem capelliana: Payá, um índio que nasce predestinado a sofrer pelo amor de Colom. Desesperado por ter sido abandonado pela amada, morre de tristeza, despertando a compaixão do deus Rudá, que lhe permite dormir por cem anos. Passado esse tempo, Payá ressurge, em meio à civilização, na figura de um palhaço.

Os recursos encontrados por Vladimir para falar à criança sobre a dor provocada por um amor não correspondido, abriram novos caminhos para sua então nascente dramaturgia.

A solução encontrada foi a de mostrar o drama de Payá em um plano mítico, ocorrido em um tempo distante – o princípio do mundo – e entremeá-lo com cenas urbanas, protagonizadas por crianças contemporâneas. Estas, com suas dúvidas e inquietações em relação ao amor, ao nascimento e à morte, traçam um paralelo entre ambos os tempos da ficção, estabelecendo uma dialética entre os conflitos de Payá e os seus próprios.

O crítico Rui Fontana Lopez observa com bastante clareza a relação entre os dois planos:

O conflito tem solução na ‘morte’ do protagonista para renascer após um sono de cem anos, num mundo que, embora diferente do anterior, contém os mesmo elementos. Os jogos, brincadeiras e vivências de um grupo de crianças localizadas no ‘aqui e agora’ fazem o contraponto lúdico e atualizam o motivo mítico que se desenrola na floresta.” (10)

Para distanciar a história de Payá no tempo e no espaço, o texto introduz um narrador, através de voz gravada em off.

A presença do narrador (tal como a do conflito) era um dos elementos que compunham um certo conjunto de critérios então utilizados para avaliar a qualidade de um texto de teatro para crianças. Tais critérios foram substancialmente redimensionados pela dramaturgia contemporânea. Entretanto, para os padrões da época, o conflito era indispensável e a inserção de um narrador indicava um mau texto, pois muitas vezes substituía a ação das personagens ou manifestava as pretensões didáticas do autor.

Sobre a questão, o autor afirma:

A gente costuma achar que o narrador aparece sempre quando o dramaturgo não sabe como resolver uma cena. E, de certa forma, isso é verdade. É uma teoria. Mas nada é absoluto. Tanto que no ‘Como a Lua’ havia um narrador sim, em off, gravado pelo Meceni, que começava o espetáculo. E começava tipo ‘era uma vez..’, exatamente como quem começa a contar uma história. Pronto. Era isso o que eu queria. Mesmo que isso contrariasse a teoria. Naquele momento, para aquela peça, era aquilo.” (V.C.)

A opção de Vladimir por introduzir um narrador em Como a Lua, mais do que uma ousadia, traduzia uma necessidade intrinsecamente ligada à natureza da história que iria contar – talvez o mais triste drama amoroso que o teatro infantil já conhecera.

Intencionalmente ou não, o autor traça um claro limite entre ficção e realidade, permitindo que crianças muito pequenas acompanhem a história com a dose certa de emoção e de distanciamento.

Além do narrador em off, um coro de atores comenta os acontecimentos com canções tocadas e cantadas ao vivo, ou mesmo interfere em algumas cenas:

Os atores – no fundo ou dos lados do palco – sentados em cadeiras, esperam sua vez de atuar. (Os papéis todos podem ser dobrados, com exceção de Payá).” (11)

Em Como a Lua, Vladimir conserva alguns dos elementos utilizados nas peças anteriores e os transforma: a música é cantada e tocada ao vivo, mas em muitos momentos rubricas indicam que ela seja gravada com uma sofisticada orquestração. O “Deus Rudá”, segundo o texto, deve ser personificado por um grande pano, quase como uma síntese linguagem visual de Panos e Lendas. O coro de atores/contadores de histórias dos espetáculos anteriores é mantido, mas o comportamento feérico e espontâneo que os caracterizava é aqui modificado: o grupo, como o exposto pela rubrica acima citada, permanece sentado em cadeiras distribuídas pelo palco para executar as canções da peça, ou simplesmente assistir em silêncio ao desenrolar dos acontecimentos.

O binômio linguagem coloquial x linguagem formal já utilizado em Panos e Lendas é aqui ampliado: todas as falas das cenas referentes à história de Payá são construídas na segunda pessoa, enquanto que as demais, incluindo as do narrador, estão na terceira, diferenciando passado e presente, ficção e “realidade”.

Em termos da divisão do texto em cenas, Como a Lua também se diferencia das peças anteriores. Até então, o autor atribuía um título a cada cena. Desta vez, Capella apenas as numera e introduz um prólogo e um epílogo, cujas funções são bastante precisas: o prólogo apresenta o deus do amor, Rudá, fazendo surgir de suas entranhas Payá e Colom e determinando seus destinos. O epílogo mostra Payá ressurgindo entre as crianças, cem anos depois de “morrer”.

Finalmente, a poesia já contida nas letras das músicas de Panos e Lendas e de Avoar, aqui passa a integrar as falas das personagens. O narrador, por exemplo, assim se refere a Payá:

“…seu coração e seus pensamentos seriam capazes de clarear um pedaço do céu – se uma estrela cadente o permitisse – de tanta limpidez e pureza que tinham.” (12)

O espetáculo novamente surpreende a crítica especializada, que reitera (a exemplo do ocorrido com Avoar) sua adequação a qualquer público, independentemente de faixa etária:

“Vladimir Capella conseguiu dar o seu recado com este espetáculo lindo, esse belo musical, tão brasileiro na sua forma e tão universal no seu conteúdo, bom para todas as idades, programa obrigatório para o nosso público infanto-juvenil – ou qualquer outro.” (13)

Resta dizer que o papel redentor da arte presente em Avoar reaparece em Como a Lua, pois Payá restaura o equilíbrio perdido e supera seu traumático passado amoroso tornando-se o artista mais amado pelas crianças – o palhaço.

Em Antes de ir ao Baile (1985) Vladimir radicaliza a experiência de jogar com o tempo e o espaço. Se em Como a Lua as histórias de Payá e das crianças ocorrem em espaços e tempos diversos, cada uma delas é mostrada cronologicamente. Já em Antes de ir ao Baile, passado, presente e futuro são tratados aleatoriamente no transcurso da peça, até serem mostrados de forma simultânea na cena final, em que se dá o encontro de quatro velhos com sua infância, ou de quatro crianças com sua velhice.

A história de quatro velhos que viajam em direção à morte num pequeno barco azul, é alternada com a de quatro crianças em busca de aventuras. Entre ambas as histórias, um professor de artes é constantemente mencionado pelas crianças, que se inquietam com as questões que ele suscita sobre a vida, a morte, o futuro. Descobre-se que ele está realizando uma pesquisa. Esta aparece em uma gravação, nas cenas finais da peça, na qual algumas crianças respondem o que fariam caso se encontrassem consigo mesmas quando velhas.

A rubrica da p.21 recomenda que a entrevista seja gravada com crianças em torno de 9 a 11 anos de idade:

A entrevista deve acontecer mais ou menos assim:

Voz que pergunta: (que presume seja o professor de artes): ‘Se você se encontrasse com você mesmo, com uns 80 anos de idade, o que você ia acontecer?’ Voz da criança: ‘Como assim? Não entendi direito’.

Voz que pergunta: ‘Assim, ó, faz de conta, tá? Então…Faz de conta que se você pudesse, um dia, se encontrar com um velhinho e esse velhinho fosse você mesmo, entendeu? Então…imagina esse encontro: o que que você ía fazer? Ia falar alguma coisa…o que que ia acontecer?’

Cabe à direção do espetáculo selecionar as respostas das crianças da forma que achar melhor, desde que mantenha a espontaneidade das respostas.

…Durante a gravação, a brincadeira de esconde-esconde continua no palco e a luz deve vir caindo em resistência muito lentamente.” (14)

Por fim, ocorre o inusitado encontro entre os quatro velhos e crianças. Conversam, trocam afetos e objetos, compõem uma canção. As crianças então despedem-se e assumem o lugar dos velhos no barco, rumando para o desconhecido.

A estrutura de Antes de ir ao Baile rompia com todos os paradigmas da dramaturgia infanto-juvenil. Desta vez sim, Capella constrói uma peça sem conflito. Também não há protagonistas. As personagens são mostradas no decorrer do espetáculo menos por sua história, do que pelas lembranças e projeções que têm dela. O texto é profundamente poético. As falas curtas, entremeadas por vários momentos de silêncio, sugerem subtextos, permitindo inúmeras leituras. Não há divisão entre as cenas. As rubricas ganham maior espaço, em relação aos textos anteriores e são também escritas de forma mais poética e mais autoral, como por exemplo, a última do texto:

Luz vem caindo em resistência, deixando se ver ainda, atrás dos velhos, um bando de borboletas coloridas. Vindas de não sei onde, nem pra quê.” (15)

A canção do barco azul que pontua todo o espetáculo, ora com orquestra, ora pelo som de um saxofone, ora cantada à capela, funciona como leitmotiv. Na cena final da peça a platéia assiste ao jovem Nilo e ao velho Danilo criando juntos a mesma canção. “Barco azul” é então cantada por todos os personagens com grande emoção, momentos antes da despedida.

Novamente a arte, aqui simbolizada pela canção, é mostrada como um veículo capaz de tornar possível a reconciliação do irreconciliável, neste caso a infância e a velhice, a vida e a morte.

E mais uma vez a crítica ressalta a qualidade artística do espetáculo e sua adequação a qualquer idade:

Este espetáculo delicado, de ritmo suave, tudo como que à meia-luz, permite uma ‘leitura’ diferente para cada faixa etária.” (16)

Autor de um texto com conteúdo reflexivo e intimista, Vladimir Capella consegue ao mesmo tempo dosá-lo de maneira a encantar as crianças e acordar os adultos.” (17)

Entretanto, Alberto Guzik, (especialista em teatro adulto) apesar de elogiar a montagem, manifesta dúvidas quanto ao interesse do tema pelas crianças:

…Antes de ir ao baile trata da morte. E da vida. Estranho assunto para um espetáculo dedicado a gente jovem. Mas tratado com propriedade. Será a história de quatro velhinhos que trocam reminiscências luminosas do passado antes de morrer? Ou de quatro jovens que no vigor da meninice projetam sua velhice e morte?

Seja como for, há em ‘Antes de ir ao Baile’ uma idéia de processo, de continuidade. O fim e o começo são uma e a mesma coisa. A existência é a serpente cósmica que morde a própria cauda, devorando-se; ao fazê-lo gera a vida.

A construção gestual dos atores é rica, possibilitando outras leituras do trabalho aos espectadores infantis, que certamente não estão interessados na delicada visão de mundo exposta por Capella. Para os pequenos há a fruição do jogo, do movimento, a história de um instante de sonho em que velhos e jovens se encontram numa doce e comunicativa celebração da vida.
” (18)

Alberto Guzik, ao lado dos demais críticos, ressalta que o espetáculo é passível de múltiplas leituras. Porém limita a recepção da criança ao jogo, ao movimento e ao sonho. Para ele, questões como a vida e a morte e consequentes visões de mundo a respeito, certamente estariam fora do repertório de interesses dos pequenos espectadores. Revela-se aqui, a meu ver, uma certa visão (adulta) sobre o que é ou não é passível de ser assimilado pela criança numa obra teatral, bem como sobre quais as indagações que ela faz sobre o mundo e sobre si mesma.

A observação é aqui colocada com o objetivo de mostrar que a linha de demarcação entre o que seria mais adequado ao adulto ou à criança, em termos de estética teatral é algo bastante complexo de ser traçado, mesmo em se tratando de um de nossos mais competentes críticos teatrais. Creio que a mesma dificuldade tem pautado o estabelecimento de critérios para definir o que é teatro infantil. Tema ao qual Capella, através de sua obra, muito tem acrescentado.

1.4 – Foco na História: Filme Triste

Ninguém podia retratar a década de 60 sem falar de política impunemente. Era quase um crime, um sintoma de alienação gravíssima e eu estava consciente disso.” (V. C.)

Filme Triste (1984) foi escrito entre Como a Lua e Antes de ir ao Baile. A trama se passa nos anos 60. O fio condutor é dado por Rosa, uma austera professora de piano que, em 1984, recebe um telefonema de Humberto, seu grande amor na juventude e por quem esperara durante aqueles vinte anos. Eles marcam um encontro e Rosa relembra seu passado trazendo à cena a história de vinte jovens e suas descobertas amorosas, em meio à ebulição política do período compreendido entre a renúncia de Jânio Quadros e o golpe militar de 1964. No final da peça Rosa reencontra o amado e descobre que ele se casara com outra. Mentindo, ela lhe diz que também se casara. Despedem-se. Esboçando um sorriso, ela empunha um lenço amarelo e sob uma lua de neon, se integra ao movimento pelas “Diretas-já”.

Em 2000, para tornar verossímil uma possível remontagem da peça, Vladimir acrescentou uma cena em que Rosa, com cerca de 60 anos, aparece falando com a platéia antes do terceiro sinal. A cena se passa nos dias atuais. Em seu discurso, ela revela que se tornara escritora aos 40 anos (em 1984, portanto) e que Filme Triste fôra o seu primeiro romance. Ao atualizar o texto, Capella, pela voz de Rosa, reitera o papel redentor que confere à arte, aqui simbolizada pela literatura:

Rosa: Pois bem… este ‘livrinho’ nasceu num vômito, costumo brincar. Não tinha intenção alguma, ao escrevê-lo, além de tão somente botar pra fora uma dor que não conseguia digerir, quase uma necessidade física mesmo, de partilhar com alguém as pequenas coisas da minha vida as coisas cotidianas, as coisas mais bobas e sem importância. E a dor da espera que me fez sofrer tanto por tantos anos. E olha: foram vinte anos! Coincidência ou não, exatamente o mesmo tempo que durou a ditadura no país.” (19)

A estrutura dramatúrgica de Filme Triste conserva alguns dos elementos dos espetáculos precedentes: a forte presença da música, com canções da época pesquisadas e selecionadas por Capella de acordo com a emoção pretendida em cada cena. Algumas delas são cantadas ao vivo pelo elenco, outras tocadas em playback. O grupo de atores contando a história também se faz presente, desta vez assumindo as propriedades de um coro grego, conforme a rubrica da página 1:

O coro, durante a peça, terá a função de coro grego mesmo, ora narrando, ora comentando, assumindo personagens, trocando cenários, etc.” (20)

A divisão das cenas aparece no texto, sendo que cada uma delas é numerada e nomeada.

O tempo da ficção é novamente mostrado de forma descontínua: a peça tem início com a narração de Rosa nos dias atuais. O enredo propriamente dito começa em 1984 e, através da lembrança de Rosa, volta aos anos 61-64, mostrando o nascimento e a frustração de seu projeto amoroso. Sua história é uma metáfora da interrupção do processo democrático brasileiro pelo golpe militar.

A busca no passado do material a ser trabalhado também se repete, sendo que desta vez, Vladimir se baseia em histórias de amor verdadeiras (recolhidas por um grupo de alunos adolescentes, para os quais lecionava, junto aos seus pais) e em episódios marcantes da História do Brasil do período.

É a primeira e única vez que Vladimir Capella faz uso explícito de fatos históricos para construir sua ficção. A inserção destes fatos é feita através das rubricas e compõe uma trama paralela à de Rosa e seus companheiros de escola, cabendo à platéia estabelecer as sutis ligações entre ambas.

A título de exemplo, reproduzo a rubrica que introduz a primeira referência histórica, colocada logo após o telefonema de Humberto. Cheia de esperanças em reaver o amor que julgava perdido, Rosa veste uma capa e sai. Imediatamente o coro mostra as expectativas para com a eleição de Jânio em 1961 e, logo a seguir, a angústia gerada por sua renúncia, traçando um paralelo com a “futura” decepção amorosa da protagonista:

Os atores cruzam o palco com vassouras erguidas no ar, símbolo da campanha de Jânio Quadros da época. Alguns cantam: ‘Jan-jan’ ‘Jan-jan’ ‘Jan-jan’… ‘Faltam 5 dias para a eleição. Jânio, Milton, vamos eleger para o bem da nação!’ ‘Faltam 4 dias para a eleição. Jânio, Milton, vamos eleger para o bem da nação!’ ‘Faltam 3 dias…’ e etc.

Logo depois, sob um som musical distorcido, entram dois atores com cestos de lixo, recolhendo vassouras quebradas, óculos partidos, bigodes e restos espalhados pelo chão simbolizando a inesperada renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República, em apenas alguns meses de governo.” (21)

Em outros momentos, as manifestações políticas contrastam fortemente com a atmosfera suave e ingênua das personagens:

Entra música ‘Suave é a noite’ com Moacir Franco e todos os presentes aplaudem o casal que se coloca no centro, dançando. Lentamente, durante a música e ao redor do casal que fica sozinho em cena, vão entrando duas fileiras de encapuçados, com terços e lampiões nas mãos, vestidos por uma só túnica imensa, feito uma procissão, representando a ‘Marcha da Família’…” (22)

Todos os episódios políticos são focalizados de forma lúdica e poética. Assim, os cartazes ilustrativos de uma passeata antiparlamentarista deverão, conforme sugestão de rubrica, ser confeccionados em tons pastéis, lembrando cartões de namorados. Já para mostrar o plebiscito de 6 de janeiro, o autor recomenda que o coro transforme em cartazes as mesas do “bar” da cena anterior. Sugere que nos tampos das mesas estejam reproduzidas as propagandas alusivas à campanha “Diga não ao parlamentarismo”, que serão mostradas à platéia de modo a compor uma fotografia, sob uma chuva de papéis picados.

A construção da trama entretanto, é mais complexa do que nos textos anteriores. Desta vez 20 personagens convivem num mesmo tempo e em espaços comuns: a escola, o bar, a rua, etc. Todos são desenhados com traços de personalidade distintos. Suas histórias são contadas de forma descontínua, intercaladas umas com as outras, cujo desfecho acontece nas cenas finais da peça.

Filme Triste explora com muita poesia e emoção as primeiras descobertas amorosas, os primeiros contatos sexuais, as primeiras transgressões e outras questões próprias da adolescência, retratando o modo pelo qual elas se manifestaram, no início dos anos 60, para o jovem da classe média paulistana. Mostra também como o golpe militar de 64 tomou de assalto tudo o que parecia róseo e dourado.

Desta vez pode se dizer que a peça está menos próxima do público infantil que, justamente por sua pouca idade, não tem o volume de informações e a experiência de vida necessários para compreender ou se identificar com grande parte dos temas abordados pelo texto. As personagens e as questões focalizadas certamente são mais afeitas aos jovens.

De fato, a primeira versão do texto foi escrita para uma montagem de conclusão de um curso de teatro ministrado por Capella para um grupo de adolescentes.

A revisão realizada para a montagem profissional de 1984 conserva ainda certo didatismo, principalmente nas rubricas referentes aos acontecimentos políticos do período, que muitas vezes ultrapassam a função de mera indicação cênica para “ensinar” um pouco de História:

…‘Marcha da Família’, movimento da classe média, apoiado pela Igreja, que viabilizou a queda de João Goulart e, em conseqüência, o golpe de 64.

A feição didática é reiterada na mais recente versão do texto, agora manifesta na voz da protagonista:

Rosa: …Escrevi-o na época das ‘diretas, já!’. Nome que se deu a um movimento que exigia a volta das eleições e que a gente tivesse novamente o direito do voto. As pessoas vestiam-se de amarelo e saiam pras ruas. Foi bonito!” (23)

Um outro trecho do mesmo discurso deixa transparecer uma certa intenção de Capella em direcionar seu espetáculo para o público jovem:

Rosa: …Era 1984 e eu vivia das aulas de piano que mantinham o meu sustento. Mas alguma coisa dentro de mim dizia que eu não tinha vocação pra ensinar piano pra adolescente chato. Desculpem a franqueza, mas era isso mesmo que eu achava. Hoje eu sei que a chata era eu, embora vocação eu não tinha mesmo. E o adolescente passou a ser o meu leitor, com quem eu melhor me relaciono e a quem, mais especialmente, me dirijo quando escrevo.” (24)

Com efeito, Vladimir Capella considera o espetáculo, tal como foi realizado em 1984, como um possível precursor do que hoje se denomina “teatro jovem”.

A modalidade foi recentemente institucionalizada com verbas e concursos oficiais e vem atender a uma necessidade mercadológica de oferecer produtos específicos ao adolescente, que vem se constituindo como um destacado segmento de consumo.

O próprio Vladimir Capella tece considerações a respeito, que a meu ver elucidam alguns dos problemas que a modalidade acarreta:

É fato tão novo que ainda se faz muita confusão na hora de definir o que é o tal do teatro jovem. Acho que as próprias comissões que atribuem prêmios se confundem. Premiam até espetáculo com texto de Ariano Suassuna, por conta da ingenuidade das personagens, como sendo espetáculo para adolescentes.

Se um espetáculo fala sobre a vida de um personagem histórico, portanto curricular, ele vira espetáculo para adolescentes. Será que é isso? Me pergunto. Qual o critério? Quem decide? O produtor? O diretor? A mídia? O público? Romeu e Julieta, por exemplo, é teatro para adolescentes?

…As segmentações, é bom lembrar, são facas de dois gumes. Se por um lado ajudam a fortificar um determinado segmento, por outro deixam a porta aberta para a discriminação.” (V.C.)

O fato é que, em 1984, Filme Triste foi apresentada como espetáculo “adulto”. E não obteve a mesma unanimidade que a crítica especializada vinha conferindo a Capella. Ao lado de avaliações elogiosas, o espetáculo, na visão de alguns críticos, pareceu um tanto ingênuo. A restrição mais comum versava sobre a forma heterodoxa com que abordou os temas políticos, colocando-os como “pano de fundo” ou “à sombra” de uma história de amor.

Vladimir não repetiu a experiência de focalizar fatos históricos em sua dramaturgia. E nem tampouco voltou a apresentar espetáculos no horário “adulto”. Talvez venha a remontar Filme Triste, para adolescentes. Nas entrelinhas da fala inicial de Rosa, pode-se ler algumas de suas expectativas quanto a uma futura recepção do espetáculo, que revelam também um paralelo entre teatro e literatura:

Rosa: …Ah! o terceiro sinal. Imagino que é exatamente isso que todo autor espera de um leitor ao ler a sua obra. Que ele mergulhe na história como se estivesse vendo um filme. Ou, após o terceiro sinal, uma peça de teatro.” (25)

1.5 – Os Contos de Fadas: Maria Borralheira, O Dia de Alan, Clarão nas Estrelas, Miranda.

O bem vence, a maldade será castigada. Além de um conto de fadas pedir isso, é assim que eu quero, é um ato de fé.” (V.C.)

Nos anos 80 o teatro infantil brasileiro voltou seu olhar para os contos de fadas. Em parte o fenômeno pode ser explicado pela publicação de Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelheim (RJ: Paz e Terra, 1988).

Bettelheim trouxe uma preciosa contribuição ao argumentar, para toda uma geração que lutara por transformar os paradigmas da Educação, que os contos de fadas são fundamentais na formação psíquica de qualquer criança, que neles encontra os significados profundos de sua própria existência. A criança, através deles, é capaz de elaborar questões complexas como a morte, o envelhecimento, as dores, as paixões e os medos.

Dos anos 60 até a publicação de seu livro, o discurso de pais e educadores preocupados com uma educação diferenciada, não tradicional ou moralista, negava qualquer tipo de literatura (oral ou escrita) que levasse a uma concepção de mundo maniqueísta, segundo a qual os maus eram punidos e os bons viveriam felizes para sempre. O objetivo era não distorcer a realidade, não transmitir à criança falsas ilusões ou inverdades.

Entretanto, Bettelheim afirma, citando Schiller:

Há maior significado profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina.” (26)

A influência do autor sobre a obra de Vladimir Capella tornou-se nítida com Maria Borralheira (1989). Desde então, em vários de seus textos, profundas ressonâncias das teses de Bettelheim se fizeram presentes.

Desta vez o desafio era o de mergulhar numa história tão conhecida e nela imprimir sua própria visão. Voltou sua pesquisa para as várias versões do conto e optou por trabalhar sobre a versão brasileira, recolhida de Sergipe, por Silvio Romero.

A transposição o conto para a linguagem teatral conduz a dramaturgia de Capella por caminhos não percorridos até então.

Construído com uma única trama, Maria Borralheira permitiu a Capella criar personagens mais complexas e retratadas com mais detalhe do que as anteriores. O autor não só conserva os conteúdos simbólicos do conto, tais como foram apontados por Bettelheim, como também explora os conflitos interiores e as trajetórias individuais de cada uma das personagens.

A fábula versa sobre uma menina, Maria, que busca restabelecer o equilíbrio perdido após a morte de sua mãe. Seu primeiro desejo é ficar com o pai. A impossibilidade de realizar este sonho a leva a um segundo objetivo: obter uma nova família. Exige que o pai se case com a viúva Letícia. Ele o faz, mas Letícia só tem olhos para as duas filhas, Eulália e Aurora, que apelidam Maria de Borralheira. Para superar a frustração, Maria pede ao pai um animalzinho de estimação. Ele lhe presenteia uma vaquinha, Lua, que se torna sua amiga inseparável. Ela testemunha a paixão que Maria desperta no príncipe Bernardo no dia em que ele a vê, sem que ela saiba, banhando-se desnuda numa cachoeira. Lua ajuda Maria a cumprir três difíceis tarefas impostas pela madrasta. A ajuda é descoberta pelas irmãs e Lua morta pela madrasta. Os despojos de vaquinha são oferecidos por Maria como alimento a três velhas miseráveis, que retribuem dotando-a de uma estrela na testa, de um hálito perfumado e de um par de sapatinhos de ouro. Dão-lhe também uma varinha de condão, extraída das entranhas de Lua. Bernardo programa um baile em seu palácio para o qual convida todas as moças do reino, com o intuito de reencontrar Maria. Ela é proibida de ir pela madrasta. Toma a varinha de condão e realiza o seu desejo: um belo vestido e uma linda carruagem. Ela vai ao baile, dança com Bernardo e reconhece a voz do autor dos versos de amor que ouvira na cachoeira. Foge envergonhada e perde um dos sapatos. Bernardo experimenta o sapato em todas as moças do reino até encontrar Maria, depois de ter desmascarado a madrasta e suas filhas. Ele declara seu amor por ela. O encontro de ambos, é celebrado com um beijo, sob um céu estrelado e uma grande lua cheia.

Capella cria as personagens combinando seus significados arquetípicos com suas características psicológicas, possibilitando diversos níveis de leitura. Assim, a madrasta não é apenas “má”, mas trata-se da “viúva Letícia”, mulher que não mede esforços para garantir o sustento e a felicidade das filhas. Estas, vítimas da superproteção materna, tornam-se incapazes de realizar seus desejos com autonomia, recorrendo à mãe toda vez que precisam vencer um obstáculo. O príncipe Bernardo é um jovem romântico que busca o amor. Apaixona-se por Borralheira ao vê-la banhar-se na cachoeira e, para concretizar sua paixão, realiza o famoso baile.

Maria Borralheira é a primeira peça em que Capella inclui, de forma explícita, um acontecimento de sua própria biografia. Na epígrafe do texto, ele relata a morte de sua mãe, ocorrida durante a montagem de Antes de ir ao Baile.

À versão original Vladimir acrescentou uma cena em que se vê o velório da mãe da heroína. Incorpora ainda o episódio em que o príncipe se apaixona por Borralheira ao vê-la banhar-se desnuda na cachoeira. É a primeira vez que o teatro infantil brasileiro apresenta um nu de corpo inteiro, elemento que será reutilizado por Capella algumas outras vezes.

A morte da vaquinha Lua, o animal de estimação da heroína, pela madrasta é também mostrada em cena de forma explícita, como não havia ocorrido com as situações de morte dos espetáculos anteriores.

O recurso de utilizar o coro de atores é mantido, sendo que desta vez Vladimir os coloca como um grupo de camponeses que, através de uma movimentação lúdica nas passagens de cena, fornecem pistas sobre o que iria acontecer com Maria, universalizando assim seus conflitos.

O elemento lúdico é ainda inserido não mais pela encenação de jogos e brincadeiras infantis, mas na própria construção de algumas cenas. Na cena do banho da cachoeira, por exemplo, Borralheira dialoga com o príncipe, pensando estar falando com sua vaquinha. Entre ambos, um poético e divertido jogo de palavras rimadas, mostra, como uma brincadeira, a construção de um pequeno poema de amor:

Bernardo: De que mares, de que terras, de que reino você veio?
Ou será uma estrela que se partiu ao meio?

Maria: (como que entrando na brincadeira)
Sou de uma terra encantada, muito distante daqui.
E lá, vivo trancada desde os tempos que nasci!

Bernardo: Mas existe um príncipe apaixonado que te achará em qualquer canto. Te cobrirá com um manto e teu sonho se realizará!” (27)

A música é novamente utilizada, mas desta vez apenas tocada em play-back.

Na montagem dirigida pelo autor em 1987, o momento mágico em que Borralheira, em poder de uma varinha de condão retirada das entranhas de sua vaquinha morta, faz surgir o vestido que lhe permite ir ao baile, é mostrado simultaneamente a uma canção, a única da peça, gravada por Gal Costa. Aqui se revela mais uma vez o diálogo de Capella com distintos segmentos da platéia: a voz da cantora aparece com a função de narrar o episódio maravilhoso. E não se trata de uma narração qualquer, mas a de uma artista cuja voz encantadora e familiar ao público adulto, vem convidá-lo a penetrar na fantasia proposta pela cena.

Os temas abordados nas peças anteriores reaparecem: a morte, a dor, a liberdade, a sexualidade. Ao lado destas são abordadas novas questões. Algumas próprias aos contos de fadas, como a rivalidade fraterna e os conflitos edípicos. Outras, remetem às grandes questões contemporâneas: a miséria e a fome (traduzidas pelas três miseráveis velhas a quem Borralheira destina a carne de sua vaquinha morta) , a ausência do pai, a busca de identidade, a afirmação do sujeito. Em relação a este último tema, pode-se dizer que Capella torna Borralheira uma personagem emblemática. Todos os obstáculos que encontra, a partir da morte da mãe, são resolvidos com seu arbítrio. Cena a cena, o público acompanha a personagem respondendo com suas próprias escolhas aos desafios que a vida lhe impõe e assim traçando seu próprio destino.

Maria Borralheira recebeu inúmeros prêmios e as mais elogiosas avaliações da crítica especializada. Como melhor autor e diretor do ano de 1987, Vladimir recebeu os seguintes prêmios: “APCA”, o “Governador do Estado”, “Mambembe” e “APETESP”. Recebeu ainda o “Grande prêmio da critica”, conferido pela Associação Paulista de Críticos Teatrais. A peça também recebeu todos os prêmios de “melhor espetáculo do ano”.

O texto O cantor e a canção, escrito pela dramaturga Claudia Dalla Verde para o programa da peça, encenada em 1987 sob a direção do autor, sintetiza, com muita propriedade as emoções despertadas pela singular “Cinderela” criada por Vladimir:

“...é isso que ocorre quando assistimos Maria Borralheira: tudo o que já sabíamos que ia acontecer acontece. Só que de um outro jeito e, assim, terminamos surpreendidos a cada cena, e rimos e choramos como se nunca ninguém tivesse nos contando essa mesma velha história. A ‘mesma velha história’? Bobagem. Existe a história, mas nunca a mesma, e muito menos velha. Talvez porque os contos de fadas contem com a magia adicional de encontrarem, de tempos em tempos, o narrador ideal do seu tempo. O encontro de Vladimir Capella com a Gata Borralheira, Cinderela, Cendrillon, é como a descoberta de uma velha canção por um novo cantor, que acerta em cheio no seu arranjo. Você vai reconhecê-la nos primeiros acordes e dizer: ‘Ah! É aquela!’ Depois, é só se deixar envolver. Quando for a sua vez de contar, vai perceber que a história que já sabia está diferente: mais perto da terra, mais enluarada, mais capelliana. E mais clássica do que nunca.

A mesma estrutura utilizada em Maria Borralheira será aplicada em seu texto posterior O Dia de Alan (1989). Já Clarão nas Estrelas (1998) e Miranda (2000), completam o grupo de textos que versam sobre contos de fadas, com uma dramaturgia que em alguns pontos se distingue da dos dois primeiros.

Em O Dia de Alan, Vladimir utilizou a narrativa dos contos de fadas para contar uma história realista. A ação se passa no momento presente. Trata-se de uma espécie um conto de fadas moderno. Alan é um jovem estudante de origem humilde. Tem dificuldade de se expressar oralmente, pois muitas palavras lhes são desconhecidas. Sua maneira de ser e de se vestir são motivo de chacota por parte de seus colegas. Léo é seu principal antagonista. Uma professora de artes, cuja aparência se aproxima à de uma fada, consegue com que Alan possa construir um boneco de papel, desenhado com sua própria silhueta e nele possa exprimir seus sonhos mais profundos: ser livre, amado e viver num planeta azul e perfumado, com uma lua verde iluminando o céu. Pede-lhe que pense em um nome para o boneco. Na mesma escola, uma autoritária professora de inglês menospreza as deficiências de Alan, dando-lhe notas baixas, ridicularizando-o diante dos colegas e se referindo a ele como um perdedor. Dias depois a classe recebe uma notícia: “a professora de artes faleceu”. Alan, desconhecendo o significado da palavra, não se dá conta do ocorrido e batiza o boneco de “Falêseu”. Léo e os demais alunos debocham da ignorância de Alan e simulam um velório, no qual deixam claro que a professora havia morrido e não voltaria nunca mais. Para superar a tristeza, Alan escreve um poema. num pedaço de papel. Os colegas de classe tomam-lhe o papel, vendam-lhe os olhos, queimam o seu boneco e o agridem. Alan, ensangüentado, chora. Num clima de magia, o boneco de Alan ressurge, agora como um super-herói e se aproxima dele. Alan escreve com o próprio sangue seu nome no peito do novo boneco. Vestido como um boxeador, Alan invade a aula de inglês. Auxiliado pelo boneco, Alan domina a professora e os colegas, expõe seus sentimentos e o desejo de ser aceito como ele é. Logo depois, o boneco desaparece de cena e Alan despe-se diante de todos. Afirma que esta é a sua proposta. Que este é o dia de Alan. A atitude sensibiliza Léo e os demais alunos, que tiram de um baú um manto e uma coroa e o proclamam vencedor.

Em Conversas de Algumas Horas e Muitos Anos, Capella descreve o processo de criação do texto:

Tentei mostrar é que a criança recebe e elabora toda a informação que a escola lhe transmite através dos professores, que são as figuras mais marcante na vida de toda e qualquer criança em período escolar. Como é a escola sob o ponto de vista de uma criança que está aprendendo a conhecer o mundo e estabelecendo suas primeiras relações sociais. Uma história, portanto, de cunho estritamente realista.

E quis fazer um experimento também: misturar essa história realista com o universo ficcional do conto de fadas. Tentar entender ou mesmo explicar como o conto de fadas, a abstração ou a ficção ajudam a criança na elaboração do seu confronto com a realidade. Tentei para isso usar tudo que compreendi e absorvi do Bettelheim.

Procurei ser criança novamente (como no livro do Korczac) pra mostrar ao mundo como é para ela, emocionalmente falando, enfrentar os relacionamentos difíceis com os colegas da classe ou com os próprios professores.

Resumindo, num realease, eu diria que ‘O Dia de Alan’ é um drama onde é exposta de forma crua e direta a dor de uma criança diante das dificuldades de enfrentar o mundo – no texto representada pelas primeiras relações sociais vividas na escola. E é também, ao mesmo tempo, um conto de fadas porque utiliza em sua estrutura narrativa várias características comuns aos contos dessa natureza. E cruzamento desses dois gêneros, aparentemente opostos, é que o texto encontra expressão, cria estilo e defende sua tese.” (V.C.)

Dia de Alan recebeu o prêmio de um dos cinco melhor espetáculo do ano conferido pela FUNDACEN e Capella recebeu os prêmios APCA e “Mambembe” de melhor autor.

Clarão nas Estrelas, conta a história de um príncipe que sofre de profunda tristeza. Por mais que se esforcem seus pais, nada o consegue curar. Maria, criada da casa, se apaixona por ele e quer libertá-lo. Perseguida pela rainha, é obrigada a cumprir uma série de provas que esta lhe impõe. Dentre elas, a confecção de cinco vestidos para suas cinco filhas. Os vestidos são feitos com a ajuda de um pêndulo de cristal que Maria recebera de seus pais antes de morrerem. Eles possuem a propriedade de fazer quem os veste dizer a verdade. Revela-se então que o príncipe sofria de um encantamento. Era um pássaro. Ele então é libertado por sua amada, que lhe dá um tiro no peito. O tiro mata o pássaro que nele habitava. Eles se casam.

Os conflitos do menino-pássaro que deseja a liberdade retoma os temas já presentes em Borralheira e introduz uma nova questão, a loucura. Desta vez o príncipe depende da força do amor da jovem Maria, que concorda em matá-lo para lhe devolver a sua História e por meio dela a sua vida, roubada por um encantamento de sua possessiva mãe. Se a trajetória de Maria Borralheira em relação à sua própria identidade dependeu única e exclusivamente de suas escolhas, a do príncipe de Clarão nas estrelas só se torna possível pelo vínculo estabelecido com Maria. Para a crítica Mônica Rodrigues Costa:

…A ideia de salvação do sujeito parece estar contida na relação especular entre Maria e o príncipe.” (28)

Há ainda uma acentuada semelhança entre as duas personagens femininas, batizadas por Capella com o mesmo nome, quase como se uma fosse extensão da outra: Maria Borralheira, constrói a sua própria história e Maria, já senhora de si mesma, auxilia o príncipe a desvendar a dele próprio:

Príncipe: Por que, então, me contas a tua história?
Maria: Para que tu me contes a tua também.
Príncipe: Não há nada para contar… perdes tempo comigo!
Maria: Precisas conhecer a tua história, senhor…
Príncipe: Pra quê?
Maria: Para saberes quem és…
” (29)

O príncipe, por sua vez, na opinião de alguns críticos, é uma personagem com alguns traços hamletianos. Sua construção tem ainda ressonâncias do “pássaro do poente”, personagem do conto folclórico japonês de igual nome, como também do protagonista de “A camisa do homem feliz”, recolhido do folclore italiano por Ítalo Calvino.

Vladimir traz ainda para Clarão nas Estrelas, pela voz off de um anjo, que atravessa a cena logo após Maria ter dado um tiro no príncipe, a mesma fala proferida por Payá, deComo a Lua: “O dia nasce quando a noite morre e a noite morre para o dia poder nascer“.

Distintamente de O Dia de Alan, a trama é construída sem obedecer à linearidade. O autor volta a tratar o tempo de forma circular, desta vez antecipando à platéia os momentos imediatamente anteriores ao desenlace. A cena inicial, em que o príncipe é ferido por um tiro é reapresentada com outra luz, de modo a esclarecer o suspense criado no início: revela-se agora que fôra Maria a autora do disparo. Além disso, há vários recortes espaço-temporais, sobretudo nas cenas em que Maria relata seu passado ao príncipe, cuja encenação aparece de forma simultânea, em um plano distinto.

A música volta a ser cantada ao vivo pelos atores, mas desta vez acompanhados por uma pequena orquestra de violinos, harpa, flauta, piano, trompa e trombone.

O conto de fadas é aqui transformado em texto teatral de modo oposto ao que ocorrera com Maria Borralheira. No primeiro caso, o autor explora ao máximo a teatralidade contida na matriz literária em que se baseou, subordinando por completo a diegese à mímese. Aqui, os focos de narratividade ganham maior espaço: certas rubricas ocupam páginas inteiras do texto, ora indicando a encenação nos mínimos detalhes, ora assumindo feições líricas.

O coro agora assume o caráter de em grupo de camponeses, que o autor aproxima dos narradores populares:

A cena deve dar uma visão romantizada do universo cotidiano desses camponeses, que são os que mantém vivas as histórias que atravessam gerações para chegarem aos nossos ouvidos.” (30)

No programa da peça, encenada pelo autor em 1998, a psicanalista e doutora em Artes Miriam Chnaiderman ressalta a contemporaneidade dos temas abordados pelo texto:

…é um conto de fadas contemporâneo. Embora formalmente fiel princípios tradicionais de construção do antigo conto de fadas, nessa sua nova peça, Vladimir Capella permite-se brincar com o feminino e o masculino, quem salva quem, introduz o tema da loucura, da morte e da vida, há referências à violência do mundo atual…

Clarão nas estrelas recebeu os prêmios FUNARTE, como um dos cinco melhores espetáculos do ano, “Mambembe” e “APESTESP” como melhor autor para Vladimir Capella, que também recebeu o “grande prêmio da crítica” da Associação Brasileira de Críticos Teatrais.

O último mergulho nos contos de fadas, dentre os textos do universo aqui estudado, resultou na peça Miranda, escrita e encenada em 2003.

A fábula criada por Capella versa sobre uma criança que é encontrada em meio a uma violenta tempestade, portando um amuleto, onde se lê “Miranda” e um pergaminho que prenuncia desgraça para quem a adotar. Uma velha a toma nos braços e a leva embora. Anos depois, quando Miranda já é uma adolescente, a velha lhe revela que não é sua verdadeira mãe e morre. Sozinha, Miranda, induzida por um cavalo que se aproxima dela após o enterro da velha, veste-se de homem e sai pelo mundo em busca de sua identidade. Chega a um reino, no qual um príncipe oferece uma fortuna a quem salvar seu pai, o rei, da profunda tristeza que o acometeu e assim livrar o reino da pérfida rainha que passou a governar desde então. O cavalo convence Miranda a se oferecer para a empreitada, mesmo correndo o risco de morrer caso falhe, condição imposta pela rainha. Ela se apresenta no palácio, com o apoio de todo o povo do lugar, conhece o príncipe, por quem se apaixona, enfrenta a terrível rainha e obtém permissão para conversar com o rei. O príncipe sente forte atração por Miranda, sem saber que ela é uma mulher. Miranda conversa com o rei, tentando fazê-lo sair de seu silêncio sepulcral, sem êxito. Desesperada, desnuda-se diante dele, mostrando sua verdadeira identidade. Este reage com um grito lancinante, tomando nas mãos o amuleto que ela deixara cair. A rainha enfurecida condena Miranda à morte, depois de mandar matar o seu cavalo. O príncipe acidentalmente descobre que Miranda é uma mulher e lhe declara o seu amor. Suplica à rainha que salve Miranda. Esta, como resposta exige que ele seja o seu carrasco. Miranda o encoraja a cumprir as ordens da rainha, lembrando-o de uma promessa que fizera: a de escrever a sua História para que ela não morresse nunca na memória de todos. No momento da execução surge o rei, já curado, e revela a todos Miranda é sua filha. O príncipe sente-se infeliz ao se ver impedido em concretizar seu incestuoso amor. O rei exige que a rainha explique os fatos que levaram ao desaparecimento da mãe da heroína, irmã da rainha má e o grande amor do rei. A rainha se recusa. Uma mulher vestida em andrajos surge do meio do povo. Revela ser Miranda-mãe, que fora jogada no rio pela terrível irmã, quando o rei estava ausente. Sua filha recém nascida fora arrancada de seus braços e desde então ela perambulava pelo reino a sua procura. Revela ainda que o príncipe fora roubado de um casal pela rainha, que o tomara como filho. Esta é exemplarmente castigada, sendo brutalmente encurralada e morta pelos seus próprios cavalos. O rei e Miranda-mãe prometem governar com justiça e sabedoria. Miranda e o príncipe beijam-se sob um céu iluminado por centenas de pirilampos.

Miranda apresenta uma personagem feminina que parece completar a trajetória iniciada por Borralheira e continuada por Maria, de Clarão nas Estrelas. Desta vez, a protagonista, para encontrar sua identidade e realizar seu sonho de amor, deve salvar a cidade da opressão da rainha e reconduzir o “pai” ao trono. Para obter seus intentos, se veste de homem, mas só se torna capaz de curar a loucura do rei depois de mostrar sua condição feminina, desnudando-se perante ele.

O texto não só trabalha com os temas já abordados pelos anteriores, como acrescenta novas e sempre delicadas questões para a reflexão dos adultos e crianças presentes na platéia. Neste caso, o incesto e a homossexualidade.

Capella a subdividiu em um prólogo, um epílogo e 11 cenas, conferindo um título a cada uma, tal como fizera em AvoarPanos e Lendas Filme Triste. Desta vez o autor nomeia inclusive o prólogo e o epílogo como Nascimento e Final feliz, respectivamente.

A complexa trama em que estão envolvidas as personagens é mostrada com vários focos narrativos, principalmente na cena 10, denominada A história verdadeira. Nela os fatos que serão determinantes para desatar os nós criados pelo enredo são mostrados única e exclusivamente através de narrações que vão aparecendo de forma vagarosa e fragmentada.

Uma fala do rei parece ironizar a própria construção dramatúrgica que Capella conferiu à peça:

Rei: Acalmai-vos senhores. Acalmai-vos para que a história possa se completar. Faltam ainda muitos nós para serem desatados neste enredo: O que aconteceu, de fato, então? O que fizeram com minha filha, a pobrezinha, assim que nasceu? E minha amada Miranda? Teria mesmo morrido no parto, ou teria sido morta pelas mãos da própria irmã? E meu filho? Será que a este, que senta-se ao meu lado, posso chamar de meu filho?! Ou seremos vítimas de mais uma perversa cilada?” (31)

E ainda, como que afirmando estes traços literários contidos no texto, Capella desta vez confere à escritura o papel redentor da arte, muitas vezes presente em suas peças. Julgando-se impotente frente ao poder da rainha que condena Miranda à morte, o príncipe reproduz as mesmas palavras que o autor colocou na epígrafe do texto:

Príncipe: Miranda… já que não posso impedir que morras, escreverei a tua história pra que ela seja contada nas praças, aldeias, vilas e cidades; pra que seja levada pelo vento, até onde quer que haja alguém que acredite na justiça dos homens. Farei a mais bela história que jamais se ouviu. E então não morrerás nunca na lembrança e na memória de todos: serás para sempre o nosso herói!” (32)

Miranda traz ainda à cena um recurso metateatral para descrever a situação do reino, a doença do rei e a necessidade de um herói para salvá-lo. É por meio de uma troupe de teatro itinerante que a história é narrada ao povo do reino e a Miranda, que se vê compelida a assumir a missão.

Se em Miranda, Vladimir faz ecoar a heroína Joana D’Arc, “Diadorim” (de Guimarães Rosa), “Maria Gomes” (da literatura de cordel), Shakespeare e os contos medievais, há também algumas referências à sua própria dramaturgia precedente. Os cavalos que conduziram Borralheira ao baile agora se transformam em um personagem, com nome, pensamento e discurso. Além disso, ainda que num sonho de Miranda, o seu cavalo “Amigo” aparece como um anjo que, a exemplo daquele que conversou com Maria de Clarão nas estrelas, lhe faz revelações decisivas para que ela possa enfrentar sua realidade.

1.6 – Outras e Novas Fontes: Mitologia Grega, Literatura, o Elemento Visual.

Foi uma descoberta o universo desses contos maravilhosos, deu tudo muito certo, mas eu não ia fazer disso um filão de sobrevivência e ficar montando ‘Chapeuzinho vermelho’, ‘A bela adormecida’ e etc. etc. etc. Muito pelo contrário, queria diversificar. Tinha que achar caminhos novos pro meu fazer artístico.” (V.C.)

Escrito em 1990, Píramo e Tisbe foi o texto que sucedeu cronologicamente a O Dia de Alan. A fábula, assim como a de Panos e Lendas e de Como a Lua, retoma o mito da criação, agora como foi relatado pela mitologia grega.

No prólogo, uma narração em off mostra o caos, o misterioso nascimento do amor e da dor. Esta é personificada por Dóris que, em sua busca pela felicidade, é vencida pelo cansaço e se transforma na pedra-sem-alegria.

Na primeira cena, Pandora abre a caixa proibida, da qual escapam todas os bens que o homem necessita, com exceção da esperança. A caixa é enterrada por Pandora junto à pedra–sem-alegria. Nas cenas seguintes, sucedem-se várias histórias de amor, todas com final trágico, culminando com a de Píramo e Tisbe. Ambos planejam uma fuga para poderem realizar seu sonho de amor proibido em virtude do cativeiro imposto a Píramo por seus pais, que tentavam evitar a morte a que ele fôra predestinado ao nascer. Píramo ao chegar ao local combinado encontra a capa de Tisbe suja de sangue e, supondo a amada morta apunhala-se. Ela chega pouco depois e encontrando o amado morto, igualmente tira a própria vida. Após a morte de ambos, o coro despe seus corpos e os carrega para junto da pedra-sem-alegria. Esta se rompe, libertando Dóris, que apanha uma pequena luz da caixa de Pandora, a esperança, elevando-a como um solitário astro luminoso, sob o manto da noite que tudo cobre.

As diversas histórias encenadas antecedem à de Píramo e Tisbe e são mediadas por um coro e por música. Todas são trágicas histórias de amor, que anunciam o triste destino do jovem casal de amantes.

Provavelmente pela riqueza do material pesquisado por Capella, o texto resultou mais longo que os que o antecederam. As histórias de Eco e Narciso, Orfeu e Eurídice e outras inseridas ao longo da peça, foram contadas por Vladimir de modo a não poupar a platéia do terror e da compaixão que deveriam despertar. Os discursos de todas as personagens colocados na segunda pessoa e seu vocabulário mais rebuscado foram recursos indispensáveis para que o autor obtivesse da platéia a emoção pretendida. Neste sentido, creio que o espetáculo não tenha resultado acessível à criança. Novamente Capella parece ter criado um texto que poderia ser classificado como “teatro jovem”, guardadas as ressalvas ao termo.

A peça foi considerada pela FUNARTE como um dos cinco melhores espetáculos de 1995 e Vladimir recebeu o prêmio APETESP como melhor autor.

A primeira adaptação literária para teatro ocorreu 1992 a partir de um livro de Monteiro Lobato. Para surpresa da crítica de então, Vladimir não conhecia a obra do mais importante escritor brasileiro de literatura infantil. Assim descreve o encontro:

Foi o que não poderia deixar de ser: fiquei deslumbrado como quando se acha a fonte, o nascedouro de uma grande cachoeira. Entendi tanta coisa depois disso… Fiquei sabendo porque toda a literatura feita para crianças no Brasil é de muito boa qualidade. Entendi porque temos uma Lygia Bojunga Nunes. Entendi o mito Lobato. E que somos, todos nós que escrevemos para crianças, afortunados herdeiros da sua riqueza.” (V.C.)

O Saci foi escrito por encomenda de um produtor de teatro.

No conto, os temas recorrentes na dramaturgia capelliana: os medos, a morte, a descoberta da sexualidade. Pedrinho quer desvendar os segredos da mata. Escraviza um saci e empreende com ele uma aventura para salvar Narizinho, raptada pela Cuca. Nesta empreitada, conhece alguns segredos da vida, como o amor, o desejo, a luta pela sobrevivência, os perigos da vida e a morte, sempre acompanhado de seu grande amigo Saci.

As lendas brasileiras são retomadas, agora focalizando as principais personagens deste universo: A Iara, o boitatá, o curupira, etc. A música, como sempre, exerce um papel fundamental, destacando-se uma gravação exclusiva da Bachiana número 5, de Vila Lobos, por Vânia Bastos, utilizada como “o canto da Iara” para seduzir Pedrinho.

Com esta experiência Capella se deparou com um problema até então inédito em sua trajetória: O direito autoral. A família de Lobato interferiu na adaptação, impondo algumas alterações, como a que relata em Conversas de algumas horas e muitos anos:

O Tio Barnabé chamava o Saci de “fio-da-putinha”. Pediram pra cortar. O Saci falava ‘bosta de galinha’ numa determinada hora e eles pediram pra cortar. Pediram não exigiram.” (V.C.)

E completa:

A obra era minha, baseada no livro do Monteiro Lobato. Escrita a partir dele. É uma outra obra. E com muita fidelidade e respeito ao original. Era um texto de teatro e pelo que me consta Monteiro Lobato não escreveu para o teatro. Portanto, a responsabilidade de tudo que era dito em cena e mostrado em cena era absolutamente minha. De minha autoria e criação. Como é que uma pessoa pode dizer tira isso ou tira aquilo? Ele tem o direito de autorizar o uso da obra ou não e o direito de receber a quantia estipulada entre as partes sobre o uso da mesma. Só isso. O resto é meter a mão em cumbuca alheia. Me parece uma questão muito simples de entender. Essa coisa de família de escritor famoso já falecido, é impressionante, atrapalha ao invés de ajudar. Deveriam facilitar a vida de quem está cultuando a memória e o trabalho do escritor. Prestam um desserviço ao familiar e à cultura”. (V.C.)

Vladimir recebeu, com O Saci o Prêmio APETESP como melhor autor, melhor diretor e melhor espetáculo de 1993.

Um inusitado experimento em sua carreira de dramaturgo e diretor foi Imagens, que ele próprio define como um roteiro para um espetáculo teatral sem palavras, para música ilusionismo e circo.

Escrito em 1999 e encenado no parque de diversões Hopi Hari, Imagens explora ao máximo os mais impressionantes recursos visuais, sem entretanto, deixar de tocar nos instigantes assuntos que integram o universo temático de Vladimir Capella.

No dia de seu casamento, uma noiva desaparece no momento do “clássico beijo que sela a união” e o noivo sai em sua busca. Ele é um mago do bem e para resgatá-la deve vencer o mago do mal. Ressuscita a noiva que havia sido “empalada” pelo rival e trava uma luta com ele, ferindo-o de morte. Descobre-se então que ambos, o mago do mal e o do bem, eram a mesma pessoa.

O roteiro de menos de 10 páginas obedece à mesma estrutura circular de tantos outros textos de Capella. A peça tem início mostrando um pintor que sobre tela em branco e com pincel sem tinta simula estar pintando o rosto de uma mulher. Uma música grandiosa mostra a cerimônia de casamento, em meio a muitas telas de grandes dimensões, que retratam a aristocracia. Os noivos aparecem emoldurados, como se fossem também um quadro. Na última cena, os quadros do começo reaparecem e a tela central, onde está pintada a noiva, começa a rodar. Quando ela pára, a noiva sai de dentro dela e finalmente beija o noivo. Os quadros desaparecem e a palco cobre-se de estrelas e de neve.

1.7 – Foco nos Autores e suas Obras: Hans Christian Andersen, Monteiro Lobato, Câmara Cascudo e Jorge Amado.

Vestia umas roupas estranhas como eu nunca vi. Contava histórias interessantes e me olhava de um jeito profundo como se fosse meu… avô!” (33) (o pequeno Hans, personagem de O Homem das Galochas, de Vladimir Capella)

Um outro grupo de textos de Vladimir Capella tem a característica comum de focalizar alguns dos consagrados autores de literatura para crianças e suas obras.

O Homem das Galochas
 foi escrito em 1996, com segunda versão em 1997. Tem como objeto a vida e a obra do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen.

Em 2001, são escritos mais três textos focalizando autores literários: O Clone do Visconde, extraído de um conto de Monteiro Lobato, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado e O Colecionador de Crepúsculos, sobre Luís Câmara Cascudo.

A novidade trazida por Capella neste grupo de textos é a de incluir em seu universo ficcional os autores das obras adaptadas, transformando-os em personagens.

Com exceção de Jorge Amado, que na penumbra e meio de costas para a platéia, aparece contando, com voz gravada em off, a história que escreveu a seu filho, os demais autores penetram a ficção.

Em O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, Capella, através de um trecho da narração de Jorge Amado, com muita poesia parece justificar a transposição da obra literária para o palco:

Jorge Amado: Por força do ofício ou por falta de ideia melhor ou ainda porque assim me deu na veneta, resolvi escrever-te uma história… Só a lerás no futuro, é claro, quando já tiveres idade para compreender as letras. Por isso, hoje, especialmente, quero eu mesmo contá-la a ti. Contá-la a meu modo e com a minha própria voz enquanto tu dormes esse teu sono de anjo.” (34)

Hans Christian Andersen aparece como o principal personagem de O Homem das Galochas.

O texto promove um estranho encontro entre o poeta em seus derradeiros momentos de vida e o pequeno Hans. As galochas mágicas que possibilitaram tal encontro permitem também que Andersen possa manifestar seu último desejo. Ele as calça e incumbe o menino de continuar contando suas histórias, (que foram apresentadas ao longo da peça). O menino pergunta o nome do poeta e se surpreende ao descobrir que ambos eram a mesma pessoa, Hans Christian Andersen.

A narrativa circular permite que Capella mostre o ciclo de vida do personagem, possibilitando que a peça possa ser lida do ponto de vista do menino ou do velho Hans. Além disso, sabendo que os contos de Andersen tinham um cunho autobiográfico, a peça foi construída de modo a mostrar os contos selecionados como fatos de vida do escritor e os fatos de sua vida como histórias de ficção.

Assim por exemplo, há uma passagem do texto na qual a mãe do menino insiste em fazê-lo freqüentar a escola e deixar de sonhar em ser um artista importante. Achando graça de seus desejos ela lhe diz que ele se “parece com um patinho feio que sonha sonhos de cisne”, dando a impressão de que a frase teria inspirado o famoso conto que ele viria a escrever no futuro.

As belas histórias selecionadas, que compõem os episódios da peça, tratam da morte e serão expostas no capítulo 2 deste trabalho.

Capella, na epígrafe do texto, manifesta seus próprios sentimentos em relação ao poeta focalizado, mostrando profunda empatia para com ele:

Se me perguntarem: ‘Já leste um poeta que, com o poder das palavras, te tocasse bem fundo o coração?’

Responderei sem hesitar: Sim. Hans Christian Andersen!”

Em O Clone do Visconde, Lobato, também como personagem, enfrenta um fato singular: Emília alterara uma de suas histórias, realizando um rico funeral para o Visconde de Sabugosa que havia sido morto por uma jaca que lhe caíra na cabeça. Admirado, chega a afirmar: “…mas eu não escrevi isso!

Intrigado com o atrevimento, descobre que a funeral era apenas um pensamento de Emília que, inconformada com a morte do amigo, desejara prestar-lhe uma última homenagem.
Lobato se sensibiliza a ponto de ajudá-la a fazê-lo renascer. Afirma que um pensamento bonito assim como o que ela tivera daria um belo livro e que aquela história mereceria um final mais feliz.

O trecho em que Lobato auxilia a boneca merece ser aqui reproduzido:

Lobato : Tem certeza de que não posso ajudar em alguma coisa…?
Emilia: Pensando bem… pode ir pegando essa panela aqui e fazer esse servicinho
pra mim. É só subir naquela escada e despejar tudo devagarinho sobre esse intrujão.
Nastácia: Mai cum quem ela tá falano agora, Sinhá?
D. Benta: Com seus amigos duendes, não tá vendo, não?
Nastácia: Ché! Isso num tá me cherano coisa boa…
Narizinho: Psiu! Quieta Nastácia, presta atenção!
Pedrinho: Silêncio que o momento é de muita concentração.
Nastácia : Mai eu só…
Os três: Psiu!!!

Nastácia faz o sinal da cruz, senta-se e fica quieta. Silêncio geral.

Emilia: Pelo amor que me une a Pedrinho e Narizinho.
Pela fé de Tia Nastácia.
Pelo saber de D. Benta.
E pela força que o desejo tem.
Peço que esse banho sagrado.
Devolva a vida ao nosso Visconde.
Pela falta que ele nos faz!

Entra música (som delicado de pequenos sinos) e Monteiro Lobato, do alto da escada, despeja sobre o Visconde um banho de flocos dourados criando um momento mágico de muito brilho. Logo em seguida a música cresce de forma magistral e o Visconde liberta-se das cordas com o mínimo esforço (truque de ilusionismo) e as laterais do aquário se abrem libertando-o magicamente. (35)

O Colecionador de Crepúsculos mostra o universo folclórico recolhido e registrado pelo pesquisador Câmara Cascudo.

No início da peça, o coro de atores, portando velas, como se estivesse nos funerais de Cascudo, reza uma oração, pedindo licença ao mestre para acrescentar ao seu acervo uma lenda que urge nascer.

Dentre as várias histórias mostradas, destaca-se o conto “o compadre e a morte”, em que um caipira dá seu filho para ser batizado pela Morte, que em troca o torna um médico de prestígio.

Graças a este pacto, ele pode “prever” a cura ou não de um doente, conforme a posição ocupada pela comadre diante do leito. Ao longo da peça, Cascudo, mostrado por um boneco, aparece fazendo anotações, fumando seu charuto e apreciando o entardecer. Até que, em determinado momento, ao contrário do que ocorrera entre Lobato e o Visconde de Sabugosa, a criatura salva o criador: o caipira, tomando conhecimento do delicado estado de saúde de Cascudo, vai visitá-lo. A Morte está posicionada de forma a indicar que não havia salvação possível. O caipira então a engana, mudando rapidamente a cama de lugar e salva vida do folclorista. Afirma ainda que Cascudo só morrerá no dia em que ele (o caipira) morrer.

Depois de enganar a morte mais algumas vezes, o caipira é finalmente vencido por ela. Sua morte coincide com a de Cascudo. Os atores voltam à cena, terminam a oração do início e admiram o crepúsculo, tal como o mestre gostava de fazer.

Em relação a O Homem das Galochas, há algumas importantes diferenças entre os dois “autores-personagens”. Enquanto Andersen, protagoniza a fábula como um poeta, proferindo falas carregadas de lirismo, Câmara Cascudo aparece apenas como observador e estudioso. De seus atributos pessoais o espectador conhecerá quando muito a voz gravada que, em off, mostrará algumas de suas frases e pensamentos. Além disso, ele deverá ser personificado por um ator/boneco, o que também o distanciará da platéia. É como se Capella tornasse cênica a distinção entre o artista e o pesquisador ou, no dizer de Walter Benjamim, o narrador do historiador, evidenciando a sua predileção pelo primeiro.

O Colecionador de Crepúsculos parece fechar um ciclo da dramaturgia de Vladimir Capella produzida até o momento. O dramaturgo traça um painel, a partir dos contos recolhidos pelo folclorista, que sintetiza muitas das aventuras que ele próprio empreendeu em seu percurso.

As ressonâncias de Panos e Lendas e Avoar, através das lendas e das canções brasileiras estão ao lado da abordagem dos mitos fundadores de nossa cultura, como a Iara, já presente em O Saci. A adaptação do conto A menina enterrada viva, um dos episódios que compõem a trama, retoma, ainda que com personagens menos verticalizados, o mesmo universo simbólico de Maria Borralheira: uma menina perde a mãe, com a qual mantivera uma relação maravilhosa. Seu pai se casa com uma viúva que a maltrata e a mata. O pai a salva e castiga a mulher. E sua protagonista é a única da história que vence a morte, como deve acontecer no verdadeiro conto de fadas.

O Colecionador de Crepúsculos, texto cuja riqueza merece um estudo à parte, espera há dois anos que surja um patrocínio para ser levado ao palco.

Está também ainda inédito O Clone do Visconde, em virtude de problemas de direitos autorais junto à família de Lobato.

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá estreou em outubro de 2003, recebendo os prêmios APCA de melhor direção e melhor espetáculo do ano e o prêmio “Coca-cola” de melhor diretor, para Vladimir Capella.

O Homem das Galochas foi encenado em 1997, cabendo a Vladimir Capella o “Mambembe” de melhor autor, o “Grande prêmio da crítica”, da APCA como autor e diretor e o FUNARTE de melhor espetáculo do ano.

A trajetória de Vladimir Capella caracteriza-se principalmente por uma inquieta busca por novas fontes e caminhos para sua dramaturgia.

É com esta mesma inquietude que ele coloca seus textos em cena, sempre resultando em belos e premiados espetáculos.

Estudar sua obra é descobrir o quanto o teatro infantil brasileiro tem evoluído, desde seus primeiros tempos. Também nos leva a pensar em que medida ele é uma arte específica para crianças.

A riqueza de sua dramaturgia e a necessidade de mostrá-la do modo mais completo possível, levou-me a escrever um breve capítulo, no qual aponto algumas descobertas que, espero, possam ser objeto de pesquisa para outros estudiosos. É o que se lerá a seguir.

Notas 

(02) CAMPOS, Claudia Arruda. Maria C. Machado. SP: EDUSP, 1998-Artistas Brasil.-10, p.68.
(03) CAPELLA, Vladimir. Avoar. SP: Letras & Letras, 2001
(04) Idem.
(05) Idem
(06) Clóvis Garcia. Jornal da Tarde, 01 de Junho de 1985.
(07) Idem
(08) Robson Camargo. Folha de S. Paulo, 10 de Maio de 1985.
(09) CAPELLA, Vladimir. Avoar. SP: Letras & Letras, 2001, p.3.
(10) Rui Fontana Lopez. O Estado de S. Paulo, 07 de Novembro de 1981
(11) CAPELLA, Vladimir. Como a Lua. Texto digitado, p.4.
(12) Idem, p2
(13) Tatiana Belinky. Folha de S. Paulo, 01 de Novembro de 1981.
(14) CAPELLA, Vladimir. Como a Lua. Texto digitado.
(15) CAPELLA, Vladimir. Como a Lua. Texto digitado, p.28.
(16) Tatiana Belinky. O Estado de São Paulo, 08 de Novembro de 1986.
(17) Bartolomeu Campos Queirós. BH : O Diário da Tarde, 27 de julho de 1987.
(18) Alberto Guzik. Jornal da Tarde, 31 de Outubro de 1986.
(19) CAPELLA, Vladimir. Filme Triste. Texto digitado, p.1.
(20) Idem,
(21) Idem, p.4.
(22) Idem, p.28
(23) Idem, p.1.
(24) Idem, p.1.
(25) Idem, p.2.
(26) Op. cit. p. 14.
(27) Capella, Vladimir. Maria Borralheira. SP: Letras & Letras
(28) Mônica Rodrigues Costa. Folha de S. Paulo, 30 de Agosto de 1998.
(29) CAPELLA, Vladimir. Clarão nas Estrelas. SP: Letras & Letras, p.24.
(30) Idem, p.6.
(31) CAPELLA, Vladimir. Miranda. Texto digitado, p.41
(32) Idem, p.37.
(33) número pulado
(34) CAPELLA,Vladimir. O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. Texto digitado, p.1.
(35) CAPELLA, Vladimir. O Clone do Visconde. Texto digitado, p.29.