Capítulo 4 – Mortes no Espaço Mimético × Mortes no Espaço Diegético

Morte, eu te envio a meus amigos, não como a inimigos para quem meu coração seria gelo…”  (117)

Os conceitos espaço mimético e espaço diegético, tais como o exposto no capítulo 3, são úteis para que a compreensão das opções estéticas que orientam a criação do texto teatral. Por essa razão serviram como base para a análise aqui empreendida. Ao selecioná-los como um dos critérios de classificação das ocorrências de morte, busquei encontrar as respostas que Vladimir Capella fornece para desvendar o enigma da morte.

A partir destas duas categorias, pude desdobrar os recortes efetuados em subcategorias, mostrando como as mortes no espaço mimético foram apresentadas pela fábula e pela construção dramatúrgica e como estas foram reveladas no espaço diegético. A classificação resultou no seguinte quadro:

4.1. – Mortes no Espaço Mimético

1.1 – A Fábula: Os Personagens e a Morte

1.1.1 – Personagens Morrem por Amor

1.1.2 – Apaixonados Matam para Libertar seus Amados

1.1.3 – Personagens Morrem Vitimadas por Vilões

1.1.4 – Personagens Morrem por Vingança

1.1.5 – Personagens Morrem por Velhice

1.1.6 – Outras Mortes de Personagens em Cena

1.1.7 – A Morte como Personagem

1.2 – A Construção Dramatúrgica

1.2.1 – Mortes Mostradas por Metalinguagem

1.2.2 – Mortes e Rituais de Morte Mostradas de Modo Lúdico

1.2.3 – Rituais de Morte Mostrados Diretamente em Cena

4.2 – Mortes no Espaço Diegético

2.1 – Mortes Narradas

2.1.1 – Pelo Discurso de Personagens

2.1.2 – Por Voz Off Simultaneamente à Encenação

2.2 – Mortes Referidas no Paratexto

Apresento a seguir os agrupamentos realizados, de acordo com o quadro acima.

4.1. Mortes no Espaço Mimético: A Fábula: Os Personagens e a Morte:

1.1. Personagens morrem por amor:

Dentre as mortes ocorridas em cena, há várias situações de mortes por amor. Algumas delas mostram que a tristeza por uma decepção amorosa pode levar à morte. Em outras, a paixão excessiva e desenfreada.

Payá (Como a Lua) morre pelo amor de Colom. A sua morte é mostrada de forma sugerida – ele deita-se em posição fetal sob uma lua cheia e é recoberto com uma manta pela capivara. Se a cena assim construída não deixa completamente clara sua morte, a cena seguinte a reitera por meio da representação de um teatro de bonecos, no qual o palhacinho triste tomba e morre.

Píramo e Tisbe, também morrem por amor. Píramo, ao supor que Tisbe havia sido morta por um leão, se apunhala. Tisbe, ao encontrar o amado morto, arranca o punhal de Píramo, apunhala-se e tomba sobre o amado.

As mortes de Píramo e Tisbe são anunciadas ao longo da peça pelas mortes de outras personagens. O texto mostra as mortes de Eco, Narciso, Eurídice e Orfeu. As mortes de Narciso e Orfeu ocorrem de forma inequívoca, às vistas da plateia. Eco e Eurídice vão desaparecendo lentamente de cena. Eco morre pelo seu amor a Narciso, não correspondido. Narciso morre por estar apaixonado por si próprio.

Outra situação de morte por amor aparece em O Colecionador de Crepúsculos: a velha amorosa. Neste caso, a velha termina morrendo por acreditar nas promessas do jovem amado, sem suspeitar que ele apenas brincava com ela. Conforme vimos no capítulo 3, esta morte aparece no espaço mimético, que subordina o diegético mostrando o envolvimento de todos os personagens que narravam a história com o drama da velha.

O gato Malhado também morre de amor pela andorinha Sinhá. Sua morte, à semelhança da de Payá é também sugerida. A rubrica recomenda seu lento desaparecimento de cena, que ocorre simultaneamente ao relato de sua morte por voz off. 

As mortes por amor são as que mais aparecem na dramaturgia capelliana, que não se furta em mostrá-las mimeticamente. As mortes de Payá e do gato Malhado são mostradas de forma menos explícita, certamente porque ambos são personagens que provocam profunda empatia no público. Mostrar as suas respectivas mortes de forma apenas sugerida, pode significar que o autor, consciente da presença de crianças na plateia, queira evitar transmitir a idéia de que a morte possa solucionar a dor de uma desilusão amorosa.

1.2. Apaixonados matam para libertar seus amados:

Há três episódios nos quais um enamorado(a) mata para libertar seu amor. Em “Clarão nas estrelas”, Maria dá um tiro de espingarda no príncipe que ama. A morte do príncipe, é mostrada de forma explícita. Entretanto, resulta na sua própria felicidade, pois o que morrera fôra o feitiço que o habitava.

A segunda ocorrência está em O colecionador de crepúsculos: o pescador compadecido pela tristeza de Iara a “arrenega”, permitindo que ela retorne ao mar. Esta morte é mostrada pelo lento desaparecimento da personagem, envolta em véus azuis, com um sorriso nos lábios.

Ambas as cenas mostram uma certa concepção de amor como desprendimento, como o desejo da felicidade do ser amado, mesmo que isso signifique a morte. Em Imagens há uma terceira situação de um apaixonado matando para libertar seu amor: o “mago do bem” fere mortalmente com sua espada o “mago do mal”, depois de ressuscitar a amada que havia sido morta por este último. O “mago do bem” a liberta, mas o que se vê é a morte do lado escuro ou da sombra dele próprio, posto que seu inimigo, o “mago do mal”, não era outro senão ele mesmo. Novamente a concepção do amor como forma de libertação de quem ama e de quem é amado é aqui teatralizada.

1.3. Personagens morrem vitimadas por vilões:

Outras situações de mortes ocorridas em cena correspondem à morte de personagens vitimados por vilões. Os corpos mortos são mostrados de forma explícita.

Em Maria Borralheira a vaquinha Lua é esfaqueada pela madrasta e encontrada morta pela heroína. De modo similar, a rainha má em Miranda manda matar o cavalo “Amigo”, que aparece lanceado. O boneco Falesêu, que fôra confeccionado por Alan, de O dia de Alan, é queimado em cena por Léo, o rival do protagonista. Aninha, em O colecionador de crepúsculos, é atirada numa cova, em cena, por sua madrasta. Mas depois é salva pelo pai.

Todas estas cenas são bastante cruéis e buscam despertar fortes emoções na plateia. Estas mortes representam, no plano psicanalítico, a despedida da infância e o encaminhamento para a maturidade.

Em O Homem das Galochas, o poeta é enforcado por sua sombra, que fôra por ele libertada e se transformara num renomado e rico escritor. Seu corpo é apresentado balançando na forca. A cena mostra o artista vitimado pela traição dos que apenas se preocupam com o dinheiro e com a fama, como era sua própria sombra.

Finalmente, em Imagens, a noiva é empalada em cena pelo mago do mal, que era, como vimos, o lado escuro de seu amado.

1.4. Personagens morrem por vingança: 

Há duas ocorrências de mortes por vingança.

Em Píramo e Tisbe, Orfeu é morto a golpes por um grupo de Mênades inconformadas com a indiferença deste aos seus apelos amorosos.

Em Miranda, a rainha má é morta pelos cavalos do estábulo, como vingança pela morte de Amigo, que ela determinara.

Em ambos os casos, portanto, são personagens coletivas que executam as vinganças e as mortes. Entretanto, a morte de Orfeu consterna a plateia, ao passo que a morte da rainha má tem o efeito oposto.

1.5. Personagens morrem por velhice:

As mortes por velhice aparecem nos textos de Capella quase sempre de forma explícita. A exceção está em Antes de ir ao baile no qual aparece a primeira ocorrência de morte por velhice. Aqui as mortes são apenas sugeridas, quando os velhos de despedem das crianças e partem no barco azul.

O corpo morto de Andersen aparece já na primeira cena de O homem das galochas e no final sua morte é reapresentada.

Outra situação de morte por velhice ocorre em Miranda: a mãe adotiva da protagonista aparece morrendo, nas cenas iniciais da peça.

Em todas as mortes mencionadas, há intervenção de música. Todos os velhos que morrem deixam uma herança, traduzida por sua história ou sua obra.

1.6. Outras mortes de personagens em cena:

Um pequeno episódio de O Saci mostra, em cena, uma sucuri comendo um boi. A autor revela assim que a morte é também uma condição de sobrevivência. O tem é explorado pelo Saci a Pedrinho.

Em Píramo e Tisbe, Dóris se transforma em pedra buscando a felicidade. No final da peça ela ressurge, carregando a esperança.
O Caipira, de O colecionador de crepúsculos, morre em cena depois de enganar a Morte. Ela se aproxima de seu corpo e lhe fecha os olhos.

1.7. A morte como personagem:

A morte é personificada em uma pequena passagem de Avoar, na montagem dirigida por Vladimir Capella em 1985: quando o grupo de atores, ao cantar a parlenda: meus senhores eu sou a morte, que leva a vida, que leva o homem…, incorporava, ainda que em tom de brincadeira, a figura da morte.

Em O Homem das Galochas, a morte aparece como um velho jardineiro de barbas brancas, cujas plantas representam as vidas humanas.

Em O Colecionador de Crepúsculos, a morte aparece personificada por uma bela mulher ou uma figura andrógina. A morte neste texto aparece como algo tão fatal quanto a personagem que a encarna.

1.2. A Construção Dramatúrgica

1.2.1. Mortes mostradas por metalinguagem:

O recurso metateatral como forma de mostrar a morte, é utilizado por Capella em dois de seus textos: Como a Lua e O colecionador de crepúsculos.

Em ambos os casos, as mortes acontecem através de um teatro de fantoches, e são metáforas das mortes “reais” das personagens centrais de cada peça, Payá e o Caipira, respectivamente.

Em Como a Lua o recurso reitera a morte do protagonista, mostrada anteriormente de forma sugerida. A opção de Capella permite que plateia infantil possa assimilar o drama de Payá através da metáfora proposta pela encenação de sua morte.

Em O Colecionador de Crepúsculos o caipira é avisado pela Morte de que seus dias chegariam ao fim por três vezes. Na primeira, por intermédio de um sonho; na segunda, manipulando um teatro de bonecos, cuja plateia são o caipira e seu filho. O menino intui o que a “representação” poderia significar, fica com dor de barriga e se retira do “teatro” antes de saber o desfecho da história. Finalmente, a Morte vence a astúcia do compadre simulando, ela própria, uma pessoa morta – portanto, fazendo “teatro”.

O velório do Visconde de Sabugosa é apresentado através de projeção de filme, como uma idealização de Emília para os funerais de seu amigo, em O clone do Visconde.

1.2.2. Mortes de personagens e rituais de morte mostradas de modo lúdico:

Estas encenações são muito próximas do metateatro. A diferença está no fato de que elas não constituem um “teatro dentro do teatro” propriamente dito. São episódios em que os atores/contadores de histórias assumem determinados personagens que morrem.

Em Panos e Lendas, a morte de Canaim faz parte de um dos vários contos mostrados pelo grupo de atores-contadores de histórias que integram a trama. À morte da índia segue-se uma canção, composta por Capella, que, encenada, reitera o ocorrido em cena, agora de forma poética, acrescentando a morte de seu amado, que vira pedra. A canção é triste e melancólica, contrastando com o tom de brincadeira em que a cena ocorrera.

Em Avoar, também é uma canção encenada, agora recolhida do folclore, que mostra a morte de Maria, também interpretada por uma personagem do grupo que integra a trama central.

Em ambos os casos, estas cenas se relacionam com as mortes que integram o conflito central de cada um dos textos: o ciclo da vida , em Panos e Lendas e a morte da lua, da palmeira e da canção em Avoar.

Ao receber a notícia do falecimento da professora de artes em O dia de Alan, a classe, entre risos, simula um velório, com o objetivo de zombar da ignorância de Alan e se deleitar com a tristeza que ele sentiria ao perceber a verdade. O velório é também encenado em tom de brincadeira, que faz aumentar ainda mais o choque do protagonista ao entender o ocorrido.

Após a morte do palhacinho, as crianças de Como a Lua têm a idéia de brincar de enterro. Este é também encenado de forma a mesclar o tom cômico do brinquedo, através de falas divertidas a respeito de como deve ser um velório e o tom sério do ritual apresentado, por meio de música e momentos de silêncio e a recomendação da rubrica de que os funerais se assemelhem a um filme do Visconti.

1.2.3. Rituais de morte mostrados diretamente em cena:

O Clone do Visconde apresenta os funerais do Visconde de Sabugosa no início da peça. Neste momento, nem o público, nem Lobato (personagem da peça) sabem que trata-se de uma idealização de Emília, como ficará claro no momento seguinte, em que a cena reaparece projetada.

Os funerais da mãe de Borralheira iniciam o espetáculo Maria Borralheira.

O texto O Colecionador de Crepúsculos tem início com o elenco fazendo uma oração a Cascudo. Os atores vestem preto e portam velas.

4.2 – Mortes no Espaço Diegético:

2.1. Mortes Narradas

2.1.1. Pelo discurso de personagens: 

A morte da mãe de Aninha, de O Colecionador de Crepúsculos é mostrada diegeticamente, pela narração do filho do Caipira ao pai. A morte de sua madrasta é inferida pelas ordens que o pai da menina dá aos empregados da casa.

As mortes foram aqui colocadas no espaço diegético por se tratarem de fatos que compunham apenas um dos muitos episódios da peça. Provavelmente o autor preferiu apenas narrá-las por se tratarem de mortes de relevo secundário em relação à trama central, na qual as mortes são mostradas mimeticamente em diversas outras cenas.

Em O Dia de Alan, Cristina comunica à classe a notícia do falecimento da professora de artes. A notícia assim mostrada, entretanto, tem a função de expor o drama de Alan, que é o de ser discriminado e menosprezado pelo grupo de alunos. Por não ter compreendido o que sucedera, em virtude de não possuir o mesmo grau de cultura que eles, leva-os a explicar-lhe o significado da palavra “faleceu” com requintes de crueldade, pela citada encenação do velório.

Duas narrações de mortes são feitas à mãe pelo pequeno Hans de O homem das galochas. Uma é a da pequena vendedora de fósforos, cuja história o faz concluir que a morte é melhor do que uma vida infeliz. A outra é a das margaridas que beiravam o rio que, apesar de mortas e enterradas, renasceriam no ano seguinte.

Ambas as histórias têm a função primeira de mostrar a relação de Hans com sua mãe, que temia por seu futuro. Elas revelam também algumas possíveis interpretações sobre a vida e a morte, que o menino aprendera com o poeta.

Em O Clone do Visconde, os duendes informam a Emília como Visconde morrera. Entretanto o diálogo se dá na presença do corpo morto do Visconde, que eles trazem para a cena.

2.1.2. Por voz off, simultaneamente à encenação:

Outras mortes são reveladas no espaço diegético por meio de narração em off:

A morte do Visconde de Sabugosa, em O clone do Visconde, é relatada por Tatiana Belinki, em forma de entrevista, nas cenas iniciais da peça, mas seu velório acabara de ser presenciado pela plateia.

A notícia da morte de Câmara Cascudo é relatada por uma voz off, em O Colecionador de Crepúsculos. Durante a narração seu corpo é também trazido para a cena, de modo que o épico e o dramático ocorram simultaneamente.

2.2. Mortes Referidas no Paratexto:

Quatro epígrafes mencionam a morte. Em Como a Lua, o autor concebe a morte como transformação. Em Maria Borralheira, relata a lembrança que guardou da morte de sua mãe. Em Píramo e Tisbe, exprime o desejo de virar estrela e em O Colecionador de Crepúsculos, relata a morte de sua avó Albertina como algo que nenhum afeto pôde evitar.

Cada uma das epígrafes sugere uma possível leitura da história que será mostrada. Vladimir Capella torna explícito que sua dramaturgia está profundamente relacionada com sua vida e com a visão que tem do mundo.

Pode-se concluir que Vladimir Capella não se furta de mostrar cenas de morte em seu teatro. As ocorrências de morte no espaço diegético são quase inexistentes, muitas vezes coexistindo com sua encenação.

Entretanto, mostra a morte para valorizar a vida.

Alguns de seus personagens morrem e renascem transformados, despertando para uma nova etapa de maturidade e compreensão de si mesmos e do mundo.

Outros, morrem com a certeza de que deixaram uma herança: sua história, seus afetos, suas descobertas.

Em vários dos textos analisados, a arte aparece como o principal antagonista da morte. Em Avoar, é a canção que traz a lua de volta; em Como a Lua, Payá supera sua dor através da arte. Em O Dia de Alan, é a professora de artes que estimula o menino a criar o boneco que o auxiliará a solucionar seus conflitos; em Miranda, o príncipe escreveria um livro para eternizar sua amada. Andersen morre com um sorriso nos lábios ao compreender que o pequeno Hans continuaria a contar suas histórias. O Caipira, de O Colecionador de Crepúsculos salva Câmara Cascudo, que o eternizou, da morte. Lobato, em O clone do Visconde altera e penetra em sua própria ficção para atender ao desejo de Emília de ressuscitar o Visconde.

O teatro de Vladimir Capella é construído a partir de sua própria experiência de vida, como demonstram suas epígrafes e das narrativas que incessantemente ele extrai das raízes populares e do passado. É a partir desta matéria que realiza o seu trabalho.

Sua arte busca vencer a morte da Memória e da História.

Vladimir as traz à cena, mostrando o quanto elas tem a dizer para uma sociedade que insiste em negá-las para sobreviver.

E, convidando-nos a acreditar na importância da Memória e da História, utiliza todos os recursos dramatúrgicos possíveis para que a emoção seja o veículo que nos permita amá-las, valorizá-las e se apropriar delas, para então poder ver o mundo com outros olhos e quiçá construir uma vida melhor.

Notas

(117) FROIDMONT, Hélinand. Os versos da morte. SP: Ateliê Editorial: Editora Imaginário, 1996, p.17.