3.1 – A Presença da Morte em Cada uma das Peças

Morte, vai encontrar os trovadores que cantam amores vãos. Ensina-lhes, ó morte a cantar…” (41)

A obra de Vladimir Capella não se define como um teatro que trata somente da morte. Várias outras e importantes questões são abordadas por sua dramaturgia, como a sexualidade, as paixões, a dor, o medo, a velhice. Ou seja, os grandes temas da humanidade estão presentes em suas peças.

Entretanto, em uma primeira leitura de seus textos, saltou-me aos olhos a quantidade de vezes em que a morte aparecia mencionada ou encenada. Por se tratar de um assunto instigante e delicado tanto para adultos como para crianças, pareceu-me bastante adequado aos propósitos de minha investigação. Passei então a refletir sobre a possibilidade de utilizá-lo como o recorte para iluminar a pesquisa que iria realizar.

A morte, desde muito cedo presente em nossas indagações, se transformou em um tabu, por uma sociedade cuja sobrevivência depende do que é descartável e pode ser facilmente substituído. Com exceção das mortes provocadas por crimes ou acidentes violentos, cujo caráter sensacionalista alimenta a indústria da informação, o assunto está ausente de nossas reflexões cotidianas. Evasivas e dogmatismos são as respostas mais comuns às interrogações que a morte desperta na criança e no jovem. Talvez por todas estas razões, a questão aparece pouquíssimas vezes nas produções artísticas a eles destinadas.

A leitura do texto O Narrador, de Walter Benjamin que integrou a bibliografia do curso “Práticas teatrais de caráter lúdico e textos literários”, de Maria Lúcia de Souza Barros Pupo fez com que eu finalmente me decidisse a focalizar o tema da morte para investigar a dramaturgia de Vladimir Capella.

Em O Narrador, Benjamin descreve a arte de narrar, concebida como a faculdade de comunicar uma experiência vivida, e analisa como o capitalismo a tem colocado em vias de extinção.

Dentre as razões apontadas para o declínio da figura do narrador, está a necessidade de abreviar o tempo, imposta sobretudo pelo processo de industrialização do século XIX. Como consequência, houve um enfraquecimento da ideia de eternidade e do conceito de morte, que constitui a sua fonte. De igual modo foi reduzida a comunicabilidade da experiência:

Durante o século XIX, a sociedade burguesa produziu, com as instituições higiênicas e sociais, privadas e públicas, um efeito colateral que inconscientemente talvez tivesse sido seu objetivo principal: permitir aos homens evitarem o espetáculo da morte.

…Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens – visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso – assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos ao seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade.

A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade.” (42)

Ao mostrar a morte reiteradamente em seu teatro, Vladimir Capella propõe e enfrenta o desafio de abordar um tema que a sociedade capitalista procura evitar e de trazê-lo de volta ao nosso imaginário. O desafio é redobrado quando se sabe haver crianças na plateia que serão envolvidas por uma questão que certamente as aflige, mas sobre a qual nem sempre conseguem dialogar com os adultos que as cercam.

Por estas razões e pelo tratamento conferido ao tema, pode se dizer que a obra de Capella atualiza o papel do narrador, nos moldes descritos por Walter Benjamin.

Com exceção de Filme Triste, há ocorrências de morte em todos os outros textos do autor que integraram o universo de minha investigação.

Se o tema da morte, como dissemos, não é o ponto central em torno do qual a dramaturgia de Vladimir Capella gravita, ela ocupa um espaço significativo em cada uma das peças analisadas.

Mortes em cena aparecem ao lado de mortes narradas. Personagens, canções e poemas discorrem sobre a morte.

No presente capítulo, serão apresentadas as ocorrências de morte identificadas em cada texto analisado.

Os recortes serão discutidos com base nos conceitos de espaço diegético e espaço mimético. Serão também destacadas as referências e considerações sobre a morte que aparecem no discurso das personagens ou através de canções, poemas, parlendas ou ainda nas epígrafes das peças.

Os conceitos de espaço diegéticoe espaço mimético foram extraídos do artigo, “O espaço da narrativa no teatro”, escrito pela professora doutora Lídia Fachin, publicado em 1998, pela Revista Itinerários, número 12, de Araraquara.

A autora ressalta que a dimensão da espacialidade é indispensável no teatro. O espaço teatral pode ser arquitetônico, cenográfico e dramatúrgico.

Além disso explicita a distinção entre o espaço cênico e extra-cênico, facetas de uma mesma realidade, denominadas de espaço mimético e diegético, respectivamente. Os conceitos foram assim denominados, segundo informa, por Michael Issacharoff, no livro Le spetacle du discours. (43)

O espaço mimético é transmitido sem mediação e apreendido diretamente pelo público, através da cena. O diegético limita-se a uma existência verbal, não visual, pois é através do discurso do personagem que se revela; não provém da representação cênica.

Para a autora:

O funcionamento e a ocorrência do espaço diegético constitui função direta da corrente estética a que as peças se filiam.“(44)

A partir desta premissa, Lídia Fachin apresenta a questão através de algumas cenas do teatro francês, desde Racine até os contemporâneos, analisando como e porque a diegese foi construída em cada uma delas.

Assim, em Racine, a ocorrência de certas cenas no espaço diegético tem como objetivos: evitar a encenação de ações cruentas, manter a verossimilhança e valorizar a palavra, que é o principal elemento do teatro clássico francês.

Em La Machine Infernale, de Jean Cocteau, Jocasta relata seus sonhos obsessivos e premonitórios. Aqui, segundo Lidia Fachin, o espaço diegético vem mostrar como o autor vinculou o mito de Édipo à interpretação freudiana.

Um outro exemplo que confirma as teses da autora, é mostrado através da análise deEntre quatro paredes, de Jean Paul Sartre: é no espaço diegético que o filósofo apresenta o passado das personagens que se encontram no inferno, este último revelado pelo espaço mimético. Ambos estão em tensão permanente. Lídia Fachin conclui que:

A construção dessa tensão entre os dois espaços tem como suporte e motivação primeira, é óbvio, a filosofia existencialista.” (45)

A mesma tensão é apontada em O Balcão, de Jean Genet: o jogo entre o Real e as Aparências revelaria toda a originalidade do autor.

Lidia Fachin aborda ainda dois textos contemporâneos: Portrait de Dora, de Hélène Cixous, em que o espaço o diegético é por vezes mimetizado rivalizando com o espaço mimético propriamente dito. A peça se compõe de cenas que correspondem à sessões de psicanálise: um texto está sendo produzido por Dora, que é orientada pela voz de Freud, colocado assim como um dos pilares da ficção contemporânea.

Finalmente, a relação entre espaço diegético e mimético em Ton Beau Capitaine, de Simone Schwarz-Bart, mostra, segundo Fachin, a consciência da dificuldade da comunicação humana: um homem recebe uma fita cassete gravada por sua esposa, na qual ela relata que o traiu. A voz gravada aparece como se estivesse no espaço mimético. Contudo não permite diálogo algum.

Lidia Fachin encerra seu artigo ressaltando a relevância do espaço dramatúrgico para a teoria teatral.

A questão da oposição entre diegese e mimese está presente também no citado No Reino da desigualdade, de Maria Lúcia de Souza Barros Pupo. Para a autora, uma das principais deficiências da dramaturgia infanto-juvenil brasileira entre 1970-76 estaria na dificuldade por parte de muitos autores de conseguirem traduzir em ações dramáticas os acontecimentos que desejavam colocar em cena. Tal prática muitas vezes resultou, segundo ela, em textos sem dinâmica própria, excessivamente verborrágicos, nos quais quase nunca as personagens funcionavam como elemento propulsor da ação dramática.

Tais leituras me motivaram a utilizar estes conceitos e, através deles, descrever os procedimentos utilizados por Vladimir Capella para abordar a morte.

A exposição a seguir será efetuada de acordo com o ano em que os textos foram escritos, em ordem cronológica.

3.2 – Panos e Lendas (1978)

A peça tem como eixo a trajetória de Caru e seu filho Rairu do começo ao fim do mundo. No final da peça, o pai já velho e o filho já adulto descobrem que o fim é igual ao começo. Apresenta-se portanto uma concepção circular do tempo, na qual a morte dá lugar à vida:

Caru: Por onde tu me levas, Rairu meu filho?
Rairu: (pausa) Te levo pro fim do mundo.
Caru: Fim do mundo!?
Rairu: Isso, pro fim do mundo, onde tudo acaba, onde tudo termina!
Caru: E onde é esse tal de fim de mundo, onde tudo acaba, onde tudo termina, que eu já tô cansado, onde é que fica, falta muito prá chegar…?
Rairu: (depois de observar em silêncio os resmungos do velho) Chegamos… é aqui!
Caru: Ué…(olhando ao redor) Mas aqui não é o começo?
Rairu: É!” (46)

Diversas subtramas presentes em cada um dos episódios que compõem o texto, tratam também da morte, sempre concebida como transformação.

A lenda indígena sobre a origem da cana, introduzida pelo grupo de atores/contadores de histórias que representam as várias personagens da peça mostra a primeira ocorrência de morte.

A cena mostra uma cobra tentando provar a um sapo que o medo é mais perigoso que seu veneno. Morde um homem que ia passando e pede ao sapo que fique em seu lugar. O homem, vendo o sapo, segue seu caminho, sem lhe dar a menor importância. Em seguida, aparece a índia Canaim. O sapo a morde e a cobra fica em seu lugar. Canaim a vê:

Canaim: Aiii!!! Um bicho me mordeu. (olha e vê a cobra) Ai! Socorro, eu vou morrer, a Surucucu me mordeu!!! (e cai morta no chão). Todos Riem. ” (47)

Esta primeira morte, ocorrida no espaço mimético é encenada em um contexto lúdico.

A seguir, uma canção mostra que Canaim, depois de morta foi regada com o pranto de seu amado, dando assim origem à cana. A canção mostra ainda que o índio se transformou em pedra, devido à tristeza gerada pela morte de Canaim:

Todos cantam enquanto trocam de roupa, ou melhor, de panos:

CANAIM MORREU DE SUSTO
COM A MORDIDA DE UM SAPO BOBO
ROLOU POR TERRA O CORPO MORENO
MORREU DE MEDO E NÃO DE VENENO

Pequeno solo de flauta. Entra um índio e joga um pano sobre o corpo de Canaim:

E SEU AMADO COBRIU A ÍNDIA
CHOROU DO LADO UMA SEMANA
REGOU DE PRANTO A TERRA MACIA
FAZENDO DELA NASCER A CANA

Outro solo de flauta. Do corpo da índia vai nascendo a cana

E DE TRISTEZA ELE VIROU PEDRA
E DE TRISTEZA ELE VIROU PEDRA
DORMINDO AO PÉ DO PÉ DE CANA.” (48)

Na montagem dirigida por Capella em 1978, a morte e a transformação do índio em pedra eram encenadas simultaneamente à canção.

Trata-se, portanto, de uma segunda morte mostrada na peça, também ocorrida no espaço mimético, ainda que em contexto lúdico e mediatizada pelo coro de atores que cantam a canção. É também a primeira ocorrência de morte por amor, dentre as muitas que Vladimir mostrará ao longo de seus textos.

O procedimento de tornar simultâneas diegese e mimese, já presente neste primeiro texto de Capella, será utilizado no decorrer de sua obra. Ver-se-á através da análise dos textos posteriores a este, que há uma clara subordinação do espaço diegético ao mimético. Na cena acima descrita, a constatação ficaria mais evidente se tivéssemos a oportunidade de ouvir a melodia que Capella compôs para a canção, cujo tom melancólico e triste acompanhado pelo suave timbre de uma flauta, reforça o drama do casal de índios.

Uma outra constante em sua obra é a ideia de que da dor, da tristeza e da morte surge o novo. Aqui, a ideia está sugerida pela cena que se segue à da morte de Canaim: A pedra e a cana. As duas personagens, que são o índio e a índia transformados, resolvem “matar o tempo” conversando sobre a vida. Com muito humor, Vladimir mostra o diálogo que termina em um desafio:

Ao fundo, os homens trabalham. Enxadas, pás, uma espécie de lavoura: carretes, apanhadores de milhos, etc.

Pedra: O amiga Cana, vamo puxá uma prosa…já que sumos vizinhas, podemos matar o tempo.
Cana : Boa ideia, comadre Pedra. E a respeito di quê conversaremos?
Pedra: Óia prá tráis, comadre…veja que beleza! Óia!
Cana: É mêmo, que belezura! Boniteza!
Pedra: Então…sobre a vida do homem nóis pode falá.
Cana: Mas o quê falá da vida do homem, amiga Pedra?
Pedra: Ora cumadre…podemo dizê por ixemplu que…que…ora que a vida do home se assemeia à minha, pronto!
Cana: O quê? Ara! O mêmo intão pudia dizê eu, cunhada, se isso não a incomoda.
Pedra; Ah! Não, pera aí, a senhora tá fazendo uma confusão…A senhora é cana e cana se parece com cana. Agora o home se parece é cumigo, que sou pedra!
Cana: Não, não, não… com a cana!
Pedra: Puis então lhe proponho um repente a respeito do assunto!” (49)

A seguir, um desafio entre a pedra e a cana, cujo o mote é qual dos dois mais se parece com o homem. No final, a Cana vence a Pedra, pois assim como o homem, poderá renascer através de seus filhos:

Pedra: …POIS O HOMEM É IGUAL A MIM
TERÁ UMA VIDA MUITO LONGA
COMO A MINHA VIDA É LONGA E NÃO TEM FIM!

Cana: NÃO! COMO A MINHA VIDA A DO HOMEM HÁ DE SER
SE MORRO, MORRO CONTENTE
POIS EM MEUS FILHOS VOU RENASCER.

Pedra: AMIGA E COMADRE CANA, NÃO SEI MAIS O QUE FALAR
POR HOJE DEIXEMOS DISSO

Os dois: AMANHÃ VAMOS CONTINUAR!” (50)

Através desta canção, também composta por Capella, aparece uma primeira referência sobre a morte no discurso de personagem, neste caso, a Cana: “Se morro, morro contente/pois em meus filhos vou renascer.

3.3 – Avoar (1980)

Pode-se dizer que Avoar também tem como tema central a questão da morte.

Neste caso a morte da memória cultural, da natureza, do lirismo e da liberdade em um contexto urbano, metaforizados por “uma lua, uma palmeira e uma canção”.

A primeira menção a estas perdas está logo no início da peça. O grupo de atores brinca, em meio aos prédios, de “Boca de Forno”. Durante o jogo, o “mestre” lhes ordena uma tarefa impossível de ser realizada:

João: Eu mando que me tragam…
UMA LUA UMA PALMEIRA E UMA CANÇÃO!!!

(Todos correm e param. Pausa. Entra música instrumental no fundo: ‘Morena, morena’)“.

A morte simbólica da brincadeira é expressa pela rubrica que se segue:

…Os atores vão voltando aos seus lugares. Tipo acabou a brincadeira. Sentam-se espalhados pelo chão e se maquiam uns aos outros: uma florzinha, um coração, coisas pequenas” (51)

Na montagem de 1985, dirigida pelo autor, os atores, ao invés de se maquiarem uns aos outros, apenas se espalhavam pelo palco, tristes. A um dado momento, um deles fazia um barquinho de papel, que era passado de mão em mão, enquanto cantavam: mamãe eu vou, mamãe eu vou buscar/ a canoinha nova prá sair no mar. A partir de então construíam um barco com os prédios e empreendiam a viagem em busca das prendas solicitadas pelo mestre.

Já no barco, após algumas brincadeiras e canções, um dos atores declama um pequeno poema, extraído do folclore, que trata da morte:

“Pedro: Era uma vez um barquinho pequenino, navegava sem destino rumo à felicidade. O barquinho navegava bem ligeiro, não levava passageiro e seu nome era saudade. Pobrezinho do barquinho pequenino que no vai e vem do mar não sabia onde ia parar. Coitadinho do barquinho pequenino, foi seguindo, foi sumindo, ninguém sabe onde ele está…” (52)

A ideia do barco como símbolo da vida aparece pela primeira vez na dramaturgia de Capella. A metáfora vai ser retomada mais explicitamente em Antes de ir Baile.

Uma segunda referência sobre a morte no discurso de personagem está na reprodução de uma parlenda, que é cantada por uma pessoa batendo nas próprias mãos e nas das demais e cuja função é eliminar um a um os integrantes da brincadeira e determinar assim um vencedor – o único que não “cair fora”:

Lá em cima do piano
Tem um copo de veneno
Quem bebeu morreu!
O azar foi teu!” (53)

Uma primeira encenação de morte em Avoar é construída de modo semelhante à de Canaim em Panos e Lendas. Após uma brincadeira de “cobra-cega”, Pedro, de olhos vendados, protagoniza o cego do conto Aninha e o príncipe. Aninha é interpretada por Maria, outra integrante do grupo.

A história termina com Pedro reconhecendo Maria, através de um beijo:

…ela o beija e ele diz seu nome, adivinhando qual atriz faz o papel de Aninha.

Ela retira a venda dos olhos dele, coincidindo com o final da música. Os dois se encontram, de joelhos, na frente do palco. O elenco, que ficou mais atrás, canta:

Todos: Maria tu vais casar.
Eu vou te dar os parabéns.
Vou te dar uma prenda.
Ai… saia de renda e dois vinténs.

Vão formando uma fila e entregando presentes para ela. Maria termina por ficar toda colorida, muitos véus compridos, grinalda, buquê de flores, etc…” (54)

A segunda estrofe desta canção selecionada por Capella aproxima novamente morte e amor, questão que aparecerá mais claramente em seus textos futuros:

Todos: Maria, tu vais ao baile.
Levas o xale que vai chover
e depois, de madrugada,
toda molhada tu vais morrer…

Ela desmaia simulando uma morte. Todos se lamentam ao seu redor. Ela, então. Abre os olhos e, fazendo uma associação com a morte, propõe a próxima brincadeira.” (55)

Mostrada mimeticamente, em um contexto lúdico, a “morte” de Maria irá desencadear uma série de brincadeiras e canções ao redor do tema, que vão culminar com a destruição da palmeira e o desaparecimento da lua que haviam sido encontradas pelo grupo em sua viagem.

A cena é construída pela inserção de uma outra parlenda, que de forma mais evidente do que a primeira aqui citada e com um objetivo dramatúrgico mais definido, também versa sobre a morte:

…Meus senhores eu sou a morte,
eus senhores eu sou a morte
que leva a vida, que leva o homem,
que pega o pau, que dá no cão, 
que pega o gato, que agarra o rato,
que rói o sebo, que enseba a corda,
que amarra a bota,
que leva a vidinha fazendo batota” (56)

A rubrica da página 31 recomenda que durante este verso da música, “que deve ter um arranjo diferente dos outros“, a lua e as estrelas se apaguem.

Durante esta estrofe, ainda na referida montagem de 1985, os atores destruíam a palmeira retirando suas “folhas” para servirem de véus ou máscaras de morte, fazendo a brincadeira recrudescer, contrastando com a imensa tristeza que se seguia ao desaparecimento da lua e da palmeira.

Novamente a canção, no espaço diegético, convive com a encenação da morte (da palmeira, da lua e das estrelas) no espaço mimético. Além disso, os próprios versos da parlenda exprimem o caráter devastador da morte, que tudo leva.

O conflito é resolvido quando o grupo se recorda da canção do mesmo nome, ouvida nos momentos iniciais da trama e que desencadeara todo o desejo de transformar a cidade e a si próprios. É por meio dela que a lua e as estrelas voltam a brilhar: no final da peça, após inúmeras tentativas frustradas de trazer a lua de volta, João retoma o jogo “Boca de forno” e ordena que lhe tragam a canção.

Esta é então cantada pelo grupo:

Por mim não borboleta, você pode avoar…

Então,

“... a lua, acompanhada de estrelas, vem surgindo por cima dos prédios. Uma lua cheia e bonita num céu metropolitano.” (57)

3.4 – Como a Lua (1981)

Em Como a Lua, uma primeira referência à morte pode ser encontrada já na epígrafe do texto, portanto no espaço diegético:

Tudo o que termina um dia, se transforma e volta n’outro dia. Como a Lua, que numa noite morre crescente e na outra nasce cheia.

A frase revela uma certa concepção de morte como transformação, processo.

Por estar colocada como uma nota introdutória e portanto, no espaço de comunicação direta entre o autor e seu público, pode ser interpretada como sendo a própria concepção que Vladimir Capella tem sobre a morte e que desejou expressá-la antes mesmo do início da peça.

É interessante observar como a mesma frase vai sendo construída no espaço mimético:

Colom, ao dizer a Payá que se cansara dele, afirma:

Colom: Tudo o que nasce, morre. (pausa) Cansei de tuas graças, Payá. Sinto-me triste e não me alegras como antes. Tudo o que começa, um dia termina.

…Agora quero que partas e não apareças mais por aqui porque seremos infelizes os dois. (vai se afastando) Mas se arrumares um jeito diferente e novo de fazer graça, podes voltar. Agora, vai…. Vai! (58)

Colom parte com outro sem ter visto Payá que pintara o corpo com tintas coloridas para alegrá-la. Payá, ao receber a notícia da capivara, morre de tristeza. Esta morte, ocorrida no espaço mimético, é apenas sugerida pela rubrica que encerra a cena:

Capivara: Colom partiu, Payá. Foi embora. Não volta mais não.
Payá: Mentira!
Capivara: Verdade, Payá.
Payá: Quem és? Por que me dizes isso?
Capivara: Sou a capivara. Morava ao lado de Colom. Éramos amigas. Hoje cedo, nem bem o sol era nascido, ela me disse adeus.Partiu com um índio bonito que por aqui passou. Era um bravo guerreiro, um bom caçador.

Tomou-a nos braços e partiram os dois em direção à luz. Pra bem longe daqui. Pra nunca mais voltar, Payá.

Payá: Mentira!
Capivara: Ela tava feliz. Tinha um sorriso nos lábios, um brilho nos olhos… Tava como eu nunca vi. Tão feliz!

Payá vai se afastando lentamente para o fundo do palco, de costas. Deixa cair o pano que o cobre.

Payá (gritando para o alto) RUDÁ! RUDÁ! RUDÁ!

Vai encolhendo-se devagar até o chão. Entra música. Solo de piano.

…A capivara vai até ele, cobre-o com o pano e olha pra lua. Lua cheia. E se afasta lentamente. Luz diminui em resistência. Música sobe.” (59)

Na cena seguinte, também no espaço mimético, utilizando o recurso metateatral, Vladimir reapresenta a morte de Payá através de um teatro de bonecos montado pelo grupo de crianças urbanas que compõem a trama paralela à do índio.

Dentre as crianças, Paulinho, o que manipula o marionete nutre um amor não correspondido por Vera, semelhante ao de Payá por Colom.

…As crianças brincam de teatrinho. Paulinho manipula um marionete atrás de uma caixa. Os outros assistem.

Paulinho: (como marionete) Eu sou um palhaço triste. Meu nome é… Que importa meu nome? Podem me chamar de qualquer nome. Não tem importância. O que eu queria mesmo era ser engraçado porque não tem graça nenhuma um palhaço sem graça… Acho que vou chorar…

Sandra: Chora não, Seu palhaço. De onde é que você veio?

Pausa.

Paulinho Da barriga da minha mãe! Ah! Ah! Ah!

Todos riem.

Cesar: Quantos anos você tem?

Paulinho: Bem… Mais de cem! Ah! Ah! Ah!

Todos riem e aplaudem.

Vera: E o que que você faz?

Paulinho: Palhaçada e muito mais!

Cesar: Careta?

Paulinho: Faz!

Sandra: Cambalhota?

Paulinho: Faz!

Cesar: Historinha?

Paulinho: Não faz!

Vera: Por que?

Paulinho: Eu não sei contar histórias…

Sandra: Inventa!

Cesar: Conta a tua história!

Paulinho: A minha história é muito triste.

Vera: Não faz mal, conta vai…

Todos: CONTA! CONTA! CONTA!

Paulinho: Foi há muito tempo atrás… Eu… Eu… Eu acho que vou chorar… (debruça chorando)

As crianças riem. Paulinho chora mais alto e as crianças riem mais alto ainda. Paulinho, intencionalmente, deixa cair o boneco no chão.

Paulinho: (saindo de trás da caixa) Caiu… !

Todos se levantam e vão até lá.

Sandra: (questionando) Caiu… ?!

Vera: Tadinho, será que machucou?

Cesar: Ih! não foi nada.

Paulinho: Como não foi nada? Morreu!

Todos: MORREU !?

Pausa embaraçosa.

Vera: Tá vendo?! Agora acabou a brincadeira!

Sandra: A gente inventa outra.

Cesar: Mas do que que ele morreu?

Paulinho: De tristeza.

Sandra: Foi de tombo, você não viu?

Vera: Ah! que coisa chata. Eu não queria que ele morresse.

Ainda mais de tombo!

Paulinho: Acho que eu também vou chorar…

Sandra: Eu também…” (60)

Na mesma cena, Vladimir promove uma pequena discussão entre as crianças, sobre o que há depois da morte. Em meio a algumas conjecturas sobre o tema, reaparece a imagem da lua como metáfora da transformação, exposta na epígrafe do texto:

Vera: Não chora, não chora… Não precisa chorar que ele vai pro céu.

Cesar: Pro céu, Verinha?

Paulinho: (parando de chorar É! Foi a mãe dela que falou!

Vera: Não foi não. Minha mãe nunca fala em morte. Foi o teu tio! Foi o teu tio que contou pra gente, outro dia, aquela história que todo mundo que morria ia pro céu e virava estrela.

Pausa. Momento de descoberta.

Sandra: E pra virar lua, como é que será que faz?

Vera: Não sei…

Pausa.

Paulinho: O nosso palhaço bem que podia virar lua, né?

Cesar: É mesmo. Gostei dessa ideia. Lua nova ou lua crescente?

Vera: Lua “crescendo” é aquela que parece um pedaço de unha? Eu prefiro lua cheia.

Sandra: Ah! gente, não dá! Lua com cara de palhaço? Ainda mais palhaço que chora?! Vai chover toda noite! (riem) É melhor a gente brincar de outra coisa.” (61)

A nova brincadeira consiste numa encenação de velório, acompanhada por diversas explicações, baseadas na experiência de Sandra, que narra como as ações devem acontecer. Aqui, novamente em um contexto lúdico, diegese e mimese convivem, prevalecendo a segunda. A cerimônia, conforme recomendação de rubrica, deve se aproximar da linguagem cinematográfica – tipo filme de Visconti.

A brincadeira termina com os atores que interpretam as crianças sentando-se nas cadeiras nas quais apareceram no início do espetáculo, reassumindo seu papel de um coro de atores contando a história, até que Payá ressurja entre eles:

Vera: Então tá. Mas (brincar) do que?

Pausa.

Paulinho: De enterro!

Vera: Que legal! Mas eu nem nunca vi um enterro!

Sandra: Eu já. Então vamo…

Cesar: Aqui tem uma caixa, ó…

Colocam o boneco numa caixa de sapatos.

Vera: E agora? O que que eu faço?

Paulinho: Fica quieta. Ninguém fala nada. É só ir acompanhando o enterro.

Vera: Sem falar nada? Ô brincadeira chata!

Sandra: Psiu! A gente fica quieta o tempo inteiro. Só depois é que a gente toma café ou coca-cola com bolacha.

Vera: OBA !

Todos: PSIU !!!

Entra música. Luz diminui. A música deve ser o Tema II com arranjo de marcha fúnebre, clássica. Todos vão carregando a caixa, em silêncio, até a frente do palco. Tudo muito cerimonial, grandioso, tipo filme de Visconti. Largam-na no chão e sentam-se nas cadeiras, permanecendo em silêncio. Sandra coloca uma flor em cima da caixa.” (62)

Após esta cena, que a rigor é a última da peça, Capella acrescenta um epílogo, no qual uma narração em off comunica à plateia que o deus Rudá compadecido de Payá permitira que ele dormisse um sono de cem anos. Se a morte de Payá foi mostrada mimeticamente, seu renascimento é dado no espaço diegético, para em seguida ser mostrado em cena quando ele ressurge, em meio às crianças.

Sua condição de palhaço é apresentada mimeticamente através da pintura de seu rosto, mostrado pela primeira vez frontalmente e pelas observações das crianças, cuja exposição faz com que o índio possa perceber sua nova identidade.

Payá então toma o palhacinho “morto” nas mãos e o faz renascer, reproduzindo, com suas próprias palavras, a frase da epígrafe, como que contestando e adicionando novo enfoque ao que no passado lhe dissera Colom. Vejamos a cena:

Narrador: E tanto Payá chorou… e tanto Payá pediu, que Rudá, o Deus do Amor, teve pena do pobre índio fantasiado. Permitiu que ele dormisse cem anos, na tentativa de esquecer Colom. E igual a Bela Adormecida, Payá dormiu cem anos, por desejo de Rudá. Quando acordou não existiam mais índios por ali. Nem ocas. Havia casas. Os bichos já não falavam mais. Havia carros. Não era mais uma selva, era uma cidade. Havia ruas e estradas. Máquinas, barulho, fumaça e crianças brincando…

Payá entra em cena, no lugar aonde as crianças brincam. Aparece olhando tudo, estranhando.

Paulinho: OLHA !
Sandra: NOSSA !
Payá se aproxima.
Payá: Meu nome é… Payá. Eu sou um…
Todos: PALHAÇO !
Há um receio de ambas as partes. Chovem perguntas:

Sandra: De onde é que você veio?
Cesar: Você trabalha na loja?
Vera: Você saiu do circo, não foi?
Paulinho: Chegou circo novo na cidade?!
Sandra: Quantos anos você tem?
Vera: Aposto que você sabe contar histórias!
Paulinho: Faz uma palhaçada pra gente ver.

Payá não responde as perguntas. Vê a flor em cima da caixa e lembra-se de Colom (a flor deve ser a mesma do começo). Vai até lá, apanha-a e senta-se no chão, diante da caixa, misterioso. As crianças, em torno dele, fazem silêncio e observam. Entra música…. Payá vai abrir a caixa.

Sandra: Não! Não pode!
Vera: Ele morreu!
Payá olha estranhamente pra eles.
Paulinho: É. Morreu!

Payá torna a olhar a caixa. Abre-a. Descobre o boneco e veste-o na mão.

Payá: Tudo que nasce, morre. E tudo que morre, torna a nascer. (agora falando pelo boneco) Como a Lua!

As crianças acham esquisito aquilo. Riem Payá ri também. Lembra-se de Colom: faz caretas. As risadas todas vão crescendo junto com a música que agora invade o teatro todo, como no início do espetáculo. Payá fotografa” uma pose de pierrot, as risadas crescem e a luz vai caindo em resistência até o black-out final.” (63)

3.5 – Antes De Ir ao Baile (1986)

Antes de ir ao Baile também trata da morte. A trajetória dos quatro velhos e quatro crianças recebe um tratamento circular do tempo, no qual, como o já exposto no capítulo 1, convivem passado, presente e futuro.

Em Conversa de Algumas Horas e Muitos Anos, Capella, ao referir-se a este texto, explicita que é esta a visão que preside sua escrita:

Acho que tudo começou com o velho hábito que tenho, quando quero escrever, de ficar pensando sempre em ideias que contenham uma trajetória circular. Do fim que vira começo ou do começo que vira fim, da vida e da morte, do eterno movimento cíclico. Gosto muito também de pensar sobre opostos que se confrontam e nas coisas que resultam dessa confrontação, às vezes surpreendentes. Imagino então que dessa pensação surgiu a ideia de refletir sobre o mais importante de todos os ciclos, digamos, que é o ciclo da vida, que começa com a infância e termina com a velhice. Os pólos opostos da nossa existência. Talvez aí tenha vindo então o desejo de confrontá-los. Fazê-los encontrarem-se. Tornar plausível o implausível“. (V.C.)

Antes de ir ao Baile alude à morte (entendida como sinônimo de vida), sobretudo por meio da canção “Barco azul” que pontua todo o espetáculo.

A letra da canção reitera a metáfora já presente em Avoar: a vida simbolizada por um barco que parte.

O poema é apresentado na peça como se tivesse sido composto por Nilo para o barco azul:

Nilo: Fiz um verso prá ele, qué vê? (Tira um papel da bolsa e lê)
Prá quem nunca viu, é só um barco azul comum,
mas prá mim não, é um barco meu.
E um dia, eu sei, ele vai partir
virar navio e se perder no fim de um grande rio.

É este mesmo poema que no final da peça é mostrado por Nilo ao velho Danilo, que o musica. Em seguida é cantado harmoniosamente por todos, celebrando o inusitado encontro.

Dessa maneira, Vladimir Capella transpõe a letra e a música para o espaço mimético, extrapolando sua função narrativa, na medida em que as mostra como um produto criado, às vistas da plateia, por Nilo e Danilo.

O tema sobre o que há depois da morte, já esboçado em Como a Lua é aqui recolocado, desta vez mostrando diferentes visões a respeito do problema.

É através de um diálogo entre os jovens Nilo, Marinho, Bia e Guida, suscitado por outra interrogação do professor de artes – “o que é alma?” – que o assunto é tratado.

Bia: Ai, a Guida é burra mesmo! Depois que morre vira pó, a professora Ciências já falou!

Guida: E´…? E depois? isso ela não explicou, né? O vento vai levando o pó, ele vai voando, voando e vira o quê?
Marinho: Alma…?
Guida: Hum-hum. Alma do outro mundo. Cê nunca ouviu falar? Fantasma!
Bia: Ah! Ah! Ah! que besteira! Fantasma não existe!” (64)

A peça termina com a morte dos velhos, mostrada no espaço mimético de forma metafórica: eles partem no barco azul, depois de terem deixado como herança às crianças os objetos de que mais gostavam e que os haviam acompanhado durante sua viagem: um violino, um violão, um cachecol de tricô, um guarda-chuva.

O ciclo então se fecha, sugerindo que, através daqueles objetos, as suas vidas poderiam ser continuadas pelos jovens.

Uma poética rubrica faz com que borboletas coloridas acompanhem a partida dos velhos:

Os velhos, de longe, acenam em silêncio. Música vai crescendo enquanto o pequeno barco azul vai partindo. Luz vem caindo em resistência lenta, deixando se ver ainda, atrás dos velhos, um bando de borboletas coloridas. Vindas de não sei onde, nem prá quê.” (65)

3.6 – Maria Borralheira (1986)

Na epígrafe de Maria Borralheira, Vladimir expõe um trágico acontecimento de sua própria vida: a morte de sua mãe, ocorrida durante o processo de ensaios de Antes de ir ao Baile.

E o faz não de modo a reproduzi-lo tal qual ocorreu na realidade, mas a partir das lembranças e emoções despertadas pelo episódio:

“Quando minha mãe morreu era agosto e fazia uma estranha manhã de verão. Mas todos os meus sentidos registraram aquele dia como uma fria e triste manhã de Outono. Penso que é assim que a minha memória guardará.” (66)

O fato, tal como foi narrado na epígrafe e portanto, no espaço diegético, é então mimetizado pela encenação do velório da mãe de Borralheira.

Note-se que a rubrica sugere que a luz crie um clima triste, como uma “melancólica manhã de outono”.

Música clássica. Um tema em tom menor. Luz vai acendendo em resistência, mostrando a cena como quase uma pintura: O velório da mãe de Maria.

Os atores, de costas para a plateia – ajoelhados ou em pé, aos pares ou sozinhos, guarda-chuvas e flores nas mãos – estão espalhados pelo palco em torno de uma lápide ou mesmo um pequeno monte de terra, de forma que venha a lembrar um quadro tradicional de velório. Se possível com folhas secas pelo chão e tudo.

Vestem roupas escuras, tons de cinza e preto, e rezam baixinho algo inaudível.

A luz deve criar um clima triste e azulado como uma melancólica manhã de outono.

Tudo, tudo muito clássico; como requer um clássico conto de fadas.

Num determinado momento, a música ganha uma melodia mais suave, outro andamento talvez, enquanto que, do fundo, vem surgindo, entrando na luz, uma imagem de mulher. Sua pele é muito alva e suas roupas muito claras. Seu nome é Lua, é a mãe de Maria.

Maria, como que percebendo algo, sai do quadro – que permanece em fotografia – e vem encontrar-se com a mãe, na frente do palco.Som de mar.

A luz clareia o proscênio: uma luz suave clareando uma doce lembrança.” (67)

A cena, entretanto, parece cumprir as funções de mediação próprias do espaço diegético, posto que comunica uma morte ocorrida fora de cena: a morte mesma da personagem não é mostrada. Não a vemos morrer, nem sabemos como ela morreu ou o que determinou sua morte. O fato já está dado e é apenas referido pela encenação do velório. Por esta razão compreendo que a cena expressa uma ocorrência de morte no espaço diegético, mediada pela encenação do velório.

Entretanto esta mediação não é realizada através da palavra, elemento decisivo para distinguir diegese de mimesis, segundo Issacharof, no trecho traduzido por Fachin:

Enquanto o espaço mimético é apreendido diretamente pelo público, o espaço diegético é unicamente referido no discurso das personagens, limitando-se a uma existência verbal, não visual.” (68)

Desta forma, o recurso aqui encontrado por Capella para mostrar esta morte é o de mimetizar o ritual que a sucedeu: o funeral. O corpo morto não é mostrado.

Pelo contrário, Lua, a mãe de Borralheira, aparece em cena, simultaneamente à trágica situação do velório, como se fosse uma lembrança da menina.

Capella cria um poético diálogo entre Maria e sua mãe, no qual mostra a menina assumindo seu próprio nome (sua identidade primeira, seu nascimento, portanto sua vida) e seu destino:

…Maria: Que cor eu tenho?
Mãe Lua: Hum… deixa eu ver. (ajoelhando-se junto da filha) cor de rosa!
Maria: Meu nome devia ser Rosa, então! Maria tem cor?
Mãe Lua: Tem. Cor de estrela, de felicidade… de uma vida bem bonita.

E mais abaixo:

MariaDeixa Maria mesmo, viu mãe! É lindo!” (69)

A cena mostra o forte laço afetivo que unia mãe e filha. Findo o diálogo, o quadro do velório é retomado.

A lembrança que tem da mãe é a força que Maria encontra para superar a dor da perda. A partir de então, durante toda a sua trajetória ela vai lutar para obter a felicidade a que estaria predestinada. É a memória vencendo a morte, iluminando os instantes de perigo.

A segunda situação de morte ocorre quando a madrasta de Borralheira mata sua vaquinha de estimação, que recebera como presente do pai e que batizara com o mesmo nome de sua mãe: Lua.

Na encenação da peça, dirigida pelo autor em 1986, o público presenciava o momento em que a Madrasta matava a vaca com uma faca. A iluminação mostrava uma grande lua vermelha, num céu igualmente vermelho.

É a primeira vez que a morte é apresentada de maneira explícita e inequívoca. O drama é reforçado pela música e pela iluminação:

A música explode num tema triste e grandiosamente orquestrado. Maria vira-se e a luz abre-se toda, mostrando novamente o campo. No chão, estendida, está Lua, morta. Maria corre até o fundo do palco e chora abraçando a amiga. Depois de um tempo, música vem sumindo.” (70)

A trágica cena construída por Capella é uma metáfora da dolorosa despedida da infância.

Com efeito, Bettelheim expõe como a história de Borralheira pode ser interpretada no plano psicanalítico:

O começo da história pranteia não só a perda da mãe inicial, como a perda de sonhos sobre uma relação maravilhosa com o pai”. “…Os desejos edípicos com o pai são reprimidos, com exceção da expectativa de receber um presente mágico. O presente que o pai traz para Borralheira (…) possibilita que ela se encontre com o príncipe e conquiste seu amor, o que o transforma num substituto do pai como o homem a quem ela mais ama no mundo.” (71)

A morte da vaquinha, portanto, tem a função de mostrar o processo de crescimento de Borralheira em direção à vida adulta. É esta morte que conduz a heroína ao encontro do amor.

No nível da fábula, é das entranhas de Lua, que Borralheira extrai a varinha de condão que a auxiliará a obter o vestido para o baile e realizar seu projeto de ser feliz.

3.7 – O Dia de Alan (1988)

A peça tem como tema central a conquista da própria identidade, que só pode ser obtida pela superação dos obstáculos que a vida impõe.

Em O Dia de Alan, o falecimento da professora de artes, representante da mãe boa do protagonista, desencadeia o processo de Alan para conquistar seu lugar no mundo. A morte da professora é mostrada diegeticamente. Cristina, uma colega de classe de Alan é quem comunica o fato aos demais.

Do mesmo modo que em Maria Borralheira, as causas da morte não são reveladas.

O que importa aqui é mostrar o modo pelo qual Alan recebe a notícia e se conscientiza dela. O menino não consegue assimilar o ocorrido, pois nunca ouvira a palavra “faleceu”. Na cena anterior, a plateia acabara de presenciar o forte laço que unira Alan à professora.

Capella faz recrudescer a emoção da perda expondo a perplexidade de Alan diante de uma palavra que ele intui significar algo grave, mas que entretanto desconhece :

Cris: A professora de artes faleceu!

Silêncio geral na classe. Todos olham para Alan. Se entreolham.

Léo: (depois de um tempo) Você não vai falar nada?
Alan: Eu…?
Léo: É. Você escutou o que a Cristina falou?
Alan: Escutei.
Léo: Então?
Alan: (dando de ombros) Deixa… que que tem?
Gabriel: Que que tem?
Suzana: Alan…!!!
Léo: Pô, a sua professorinha querida faleceu e você nem liga?
Alan: Ela faleceu hoje mas amanhã ela vem…

Todos se entreolham e depois caem na risada.

Gabriel: Gente, o caipira não sabe o que é faleceu!
Léo: Nããããooo!!!

Todos riem.

Alan: Sei sim! É que ela faltou… mas amanhã ela vem! (caindo em si quase pedindo desculpas) Eu nunca escutei essa palavra…” (72)

O grupo de alunos, com o objetivo de ridicularizar Alan, encena então um velório, cantando uma ladainha, na qual a morte, ainda que de forma lúdica, é definida pelo discurso das personagens como algo definitivo:

Todos cochicham e vão até a arca. Tiram de dentro vários panos pretos, véus, flores, velas, etc., e vestem-se. Fazem um pequeno cortejo, representação de um velório.

Léo: A professora de artes morreu!
Todos: Amém!
Léo: Não vem hoje, não vem amanhã, não vem nunca mais!
Todos: Morreu !
Léo: Ninguém mais vai defender o Alan porque a professora que gostava dele…
Todos: Morreu!
Léo: Morreu pra sempre, não vem nunca mais, nunca mais, nunca mais!
Todos: Graças a Deus!” (73)

Pode-se constatar mais uma vez que a utilização da diegese no teatro de Capella está a serviço da mimese. A morte da professora ocorrida no espaço extra-cênico, não se torna perceptível a Alan através do relato de Cris. É somente pela sarcástica encenação do velório feita por seus colegas que Alan não só compreende o ocorrido, como também percebe a dimensão da perda sofrida. Assim mostrada, a morte da professora de artes acentua o drama de Alan e convida a plateia a se consternar com ele.

Com a mesma crueldade com que Lua ora morta pela madrasta, “Falesêu”, o boneco confeccionado por Alan com a ajuda da professora de artes é queimado em cena pelos colegas de classe.

Após vendar os olhos de Alan, Léo e os demais trazem a silhueta de papel do boneco Falêseu e tochas de fogo nas mãos:

Léo: Pode tirar a venda agora… E diga adeus ao seu Falêseu !

(ateiam fogo nos pés do boneco) Música cresce

Alan: (tirando o cachecol dos olhos e vendo o boneco queimando) – Não…!!!

Tenta correr para salvá-lo mas os outros três o agarram por trás segurando-o

Música cresce mais ainda, as crianças riem e o boneco queima inteiro diante de Alan preso. Música termina.

Leo: (de mão estendida) Agora podemos ser amigos!

Alan: (tempo) NUNCA! (e cospe na cara de Léo)

Tempo. Os quatro avançam em Alan derrubando-o. Batem nele.Deixam-no estirado no chão e correm.” (74)

A exemplo do ocorrido com a vaquinha Lua, de Borralheira, aqui a perda do boneco, mostrada no espaço mimético, representa a superação da infância e o encaminhamento do protagonista em direção à sua constituição enquanto sujeito.

Esta transição é concretizada de forma mágica, através do encontro de Alan com o boneco Falêseu que volta personificado em super herói, simbolizando os desejos internos do menino. Em seu peito o menino escreve com o sangue de seu rosto machucado, seu próprio nome: Alan.

A partir de então manifesta seus desejos e necessidades para toda a escola, conquistando seu próprio espaço, o respeito e a amizade de todos.

3.8 – Píramo e Tisbe (1990)

A primeira referência à morte, neste texto em que se sucedem tragédias amorosas baseadas na mitologia grega, está na epígrafe do texto. Capella aqui mostra o que deseja para sua própria morte: virar estrela.

Busco o homem que conversa com as plantas e entende a linguagem dos pássaros, porque quando eu morrer, como ele, quero ser estrela também!

E ficar, lá de cima, iluminando o homem que conversa com as plantas e entende a linguagem dos pássaros.

A peça tem início com Dóris, que com um archote aceso nas mãos e aspecto trágico, busca desesperadamente a felicidade. Dóris simboliza todas as dores do mundo. Cansada de sua busca, se transforma em pedra:

Em determinado momento a mulher senta-se num canto, chorando, e deixa-se ficar vencida pelo cansaço. Tempo. O fogo apaga-se. Dóris vira pedra. (A pedra sem alegria).” (75)

A partir de então são apresentadas as histórias de Eco e Narciso, Orfeu e Eurídice, o mito de Sibila e Píramo e Tisbe.

Eco morre pelo amor não correspondido a Narciso. Sua morte é mostrada no espaço mimético. O autor optou por fazê-la ir desaparecendo lentamente, expondo momentos antes, no espaço diegético, o destino que a personagem teria desejado para si mesma, se rejeitada pelo amado: prevenida por um coro de mulheres de que Narciso não corresponderá a seu amor, ela responde:

Eco: Se assim acontecer me esconderei nas cavernas e nas grutas, envergonhada. Meus ossos se misturarão às pedras e pedras serão! Só minha voz permanecerá, ao longe, repetindo o chamado dos Homens.

Coro: Estás escrevendo tua própria História.” (76)

E depois de rejeitada por Narciso:

Eco levanta-se humilhada e, lágrimas nos olhos, vai afastando-se lentamente até sumir no escuro. O coro tenta araça-la mas não consegue.” (77)

A seguir, também no espaço mimético, Capella mostra a morte de Narciso, descrita diegeticamente como uma busca por seu próprio destino, pela rubrica da p.11:

Música vai crescendo ao máximo, grandiosa, enquanto Narciso atira-se nas águas do lago em busca de sua alma, seu destino.”

E mimeticamente é apresentada sua transformação em flor:

No lago, onde Narciso sumiu, surge uma delicada flor amarela, cujo centro é circundado por pétalas brancas.”

O mito de Orfeu e Eurídice é introduzido com a mimetização do Hades, no qual entre figuras sinistras e lúgrubes, se destaca Orfeu buscando pela amada:

Sua figura viva distingue-se como uma luz no cenário escuro e soturno.” (grifo do autor). (78)

Orfeu consegue comover o inferno e obter a amada de volta com uma canção que versa sobre a força do amor:

O amor,
Quando maior que o peito que o abriga
Rompe a carne mãe que o acoberta
E, filho desnaturado então, explode e grita
A dilacerante dor aflita que brota,
Golpeia e se agita
Em busca da velha morada,
Amada pra sempre perdida,
Em busca da vida!

Hades e Perséfone lhe concedem que leve Eurídice, pois Orfeu lhes trouxera de volta a memória do amor.

Recomendam-lhe que a única condição para o resgate é que ele jamais olhe para trás.

A morte de Eurídice é então mostrada mimeticamente, através de seu lento desaparecimento e da transformação de todo o cenário:

Após alguns instantes surge, seguindo-o a certa distância, a figura imaculada de Eurídice.

Deve haver grande tensão nessa pequena caminhada de Orfeu, que agora carrega o angustiante conflito da dúvida atormentando-o.

Num determinado momento faz-se um silêncio absoluto, e num dramático segundo. Orfeu pressente que foi enganado. Vira-se. E irremediavelmente, põe tudo a perder.

Grita desesperado vendo Eurídice, braços estendidos tentando araça-lo, lentamente desaparecer.

Sob um som aterrador, tudo entra como que num processo de decomposição. Tudo se desmancha entre gritos de horror, fumaça e pânico.

O cenário e a luz transformam-se também.” (79)

É também no espaço mimético que a morte de Orfeu é mostrada. Indiferente às tentativas de sedução das Mênades, ele desperta a fúria das mulheres que, como vingança, acabam por ara-lo:

Batendo pés e palmas, ( as mênades) esboçam uma pequena dança , como que possessas mesmo, quando de repente percebem a total indiferença de Orfeu.

Mênade 1: (gritando) Ó Fúrias!!! Ele despreza-nos!!!

Aos gritos, totalmente desvairadas, as mulheres avançam sobre eles a golpes e o matam.

Entra música …as mulheres fogem. Ao saírem cruzam com o coro (grupo de rapazes) que entra em cena correndo. Eles vão até o local onde Orfeu se encontra e fecham-lhe os olhos. Música termina. Põem Orfeu nos ombros e, cerimoniosamente , vão saindo carregando o corpo do poeta…cantando a canção de Orfeu a quatro vozes, sem acompanhamento algum.”(80)

As mortes de Píramo e Tisbe são igualmente mostradas no espaço mimético. Ambos se apunhalam por amor. Píramo vai encontrar Tisbe, para com ela fugir. Na pedra-sem-alegria, encontra o manto que ela ali deixara como um sinal, ao fugir de um leão que a perseguia. Ao ver sinais de sangue sobre o manto, julga-a morta:

Píramo: Oh! Tisbe, Tisbe, chegaste cedo demais! O sol, invejoso de ti, pactuou com a morte. Bebeu teu sangue para tornar-se rubro e belo! Oh! Não… (chora)

O vocal ara. Silêncio. Ouve-se apenas o pranto de Píramo. Tempo. Depois de alguns instantes, Píramo deixa de chorar e, decidido, arranca um punhal da cintura.

Píramo: (de punhal erguido ) Tisbe! Serei tão breve que nem notarás meu atraso!

(Tisbe entra, no fundo)

Coro: (gritando) Não!!!

Píramo: (gritando) Não!!! (apunhala-se)

Tisbe: NÃÃÃOOO !!!” (81)

Tisbe encontra o amado morto. Chorando de dor declara-lhe seu amor. A um determinado momento, Tisbe arranca o punhal de Píramo e empunha-o sobre o peito, declama os mesmos versos de Orfeu e se apunhala.

No epílogo, após a morte de Píramo e Tisbe, o coro os despe e reúne seus corpos nus:

Contrastando com a tragédia de Píramo e Tisbe, na qual a morte interrompe uma história de amor, Vladimir apresenta uma personagem imortal, Sibila, que obteve de Apolo a graça da eternidade. Esquecera-se contudo, de pedir-lhe a eterna juventude. Seu único desejo é morrer. Seu discurso sobre a morte revela que esta pode ser, em algumas circunstâncias, considerada como um alívio:

Sibila: Como são impiedosos os segundos que, inexoravelmente, destroem-me o corpo!

Como são impiedosos os segundos que me condenam a essa abjeta velhice sem fim! Como são impiedosos os segundos!

Por que se arrastam, tiranos, com a insuportável lentidão do tédio?

Tiranos! Carrascos do tempo! Mensageiros perversos do desgosto! (tempo)

Ai, secaram-me as lágrimas!

Por que não me secou também o sangue?” (82)

A transformação de Dóris em pedra, mostrada no início da peça é retomada na última cena, desta vez no espaço diegético, pela voz de uma menina que carrega a gaiola de Sibila, para a curiosidade de alguns camponeses:

Camponesa 1: Maravilhosa e extravagante gaiola!
Camponesa 2: E como a recebeste? Quem a trouxe?
Menina: Achei! Ali na pedra sem alegria.
Camponesa 5: Oh! É informada a pequena. Sabe até o nome da pedra!
Camponesa 3: Esperteza não se vê na idade!

(todos riem)

Menina: Todo mundo sabe que a pedra-sem-alegria foi outrora uma bela jovem que de tanto padecer transformou-se!
Camponesa 2: E de que mal sofria a pobre moça?
Menina: Não sei. De tristeza sem fim! (Tempo. Sorrindo ingênua) De amor, talvez…” (83)

Dóris ressurge no momento final da trama, depois da morte do casal de amantes, trazendo de volta a esperança:

A música tem uma súbita crescida e a iluminação cria um brilhante corredor de luz, diagonal, que vem do fundo do palco até a pedra.

E então, a pedra-sem-alegria rompe-se.

Abre-se ao meio e liberta Doris que levanta-se, apanha de dentro da caixa de Pandora uma pequena luz, e se dirige para o fundo do palco.

Caminha majestosamente pelo corredor de luz, carregando nas nãos o brilho da esperança.

…Doris, no fundo, sobe a escada e, no alto, ergue a luz. Eleva-a como um pequeno e solitário astro luminoso.

Na frente, os atores cobrem o casal de amantes com a capa de Tisbe, que agora mescla sangue e estrelas.

Música cresce ao máximo, enquanto desce, finalmente, o magnífico manto da noite.

E tudo cobre.” (84)

3.9 – O Saci (1992)

A primeira referência à morte, neste texto em que se sucedem tragédias amorosas baseadas na mitologia grega, está na epígrafe do texto. Capella aqui mostra o que deseja para sua própria morte: virar estrela.

Busco o homem que conversa com as plantas e entende a linguagem dos pássaros, porque quando eu morrer, como ele, quero ser estrela também!

E ficar, lá de cima, iluminando o homem que conversa com as plantas e entende a linguagem dos pássaros.

A peça tem início com Dóris, que com um archote aceso nas mãos e aspecto trágico, busca desesperadamente a felicidade. Dóris simboliza todas as dores do mundo. Cansada de sua busca, se transforma em pedra:

Em determinado momento a mulher senta-se num canto, chorando, e deixa-se ficar vencida pelo cansaço. Tempo. O fogo apaga-se. Dóris vira pedra. (A pedra sem alegria).” (75)

A partir de então são apresentadas as histórias de Eco e Narciso, Orfeu e Eurídice, o mito de Sibila e Píramo e Tisbe.

Eco morre pelo amor não correspondido a Narciso. Sua morte é mostrada no espaço mimético. O autor optou por fazê-la ir desaparecendo lentamente, expondo momentos antes, no espaço diegético, o destino que a personagem teria desejado para si mesma, se rejeitada pelo amado: prevenida por um coro de mulheres de que Narciso não corresponderá a seu amor, ela responde:

Eco: Se assim acontecer me esconderei nas cavernas e nas grutas, envergonhada. Meus ossos se misturarão às pedras e pedras serão! Só minha voz permanecerá, ao longe, repetindo o chamado dos Homens.

Coro: Estás escrevendo tua própria História.” (76)

E depois de rejeitada por Narciso:

Eco levanta-se humilhada e, lágrimas nos olhos, vai afastando-se lentamente até sumir no escuro. O coro tenta alcançá-la mas não consegue.” (77)

A seguir, também no espaço mimético, Capella mostra a morte de Narciso, descrita diegeticamente como uma busca por seu próprio destino, pela rubrica da p.11:

Música vai crescendo ao máximo, grandiosa, enquanto Narciso atira-se nas águas do lago em busca de sua alma, seu destino.

E mimeticamente é apresentada sua transformação em flor:

No lago, onde Narciso sumiu, surge uma delicada flor amarela, cujo centro é circundado por pétalas brancas.”

O mito de Orfeu e Eurídice é introduzido com a mimetização do Hades, no qual entre figuras sinistras e lúgrubes, se destaca Orfeu buscando pela amada:

Sua figura viva distingue-se como uma luz no cenário escuro e soturno.” (grifo do autor). (78)

Orfeu consegue comover o inferno e obter a amada de volta com uma canção que versa sobre a força do amor:

O amor,
Quando maior que o peito que o abriga
Rompe a carne mãe que o acoberta
E, filho desnaturado então, explode e grita
A dilacerante dor aflita que brota,
Golpeia e se agita
Em busca da velha morada,
Amada pra sempre perdida,
Em busca da vida!

Hades e Perséfone lhe concedem que leve Eurídice, pois Orfeu lhes trouxera de volta a memória do amor.

Recomendam-lhe que a única condição para o resgate é que ele jamais olhe para trás.

A morte de Eurídice é então mostrada mimeticamente, através de seu lento desaparecimento e da transformação de todo o cenário:

Após alguns instantes surge, seguindo-o a certa distância, a figura imaculada de Eurídice.

Deve haver grande tensão nessa pequena caminhada de Orfeu, que agora carrega o angustiante conflito da dúvida atormentando-o.

Num determinado momento faz-se um silêncio absoluto, e num dramático segundo. Orfeu pressente que foi enganado. Vira-se. E irremediavelmente, põe tudo a perder.

Grita desesperado vendo Eurídice, braços estendidos tentando alcançá-lo, lentamente desaparecer.

Sob um som aterrador, tudo entra como que num processo de decomposição. Tudo se desmancha entre gritos de horror, fumaça e pânico.

O cenário e a luz transformam-se também.” (79)

É também no espaço mimético que a morte de Orfeu é mostrada. Indiferente às tentativas de sedução das Mênades, ele desperta a fúria das mulheres que, como vingança, acabam por matá-lo:

Batendo pés e palmas, (as mênades) esboçam uma pequena dança , como que possessas mesmo, quando de repente percebem a total indiferença de Orfeu.

Mênade 1: (gritando) Ó Fúrias!!! Ele despreza-nos!!!

Aos gritos, totalmente desvairadas, as mulheres avançam sobre eles a golpes e o matam.

Entra música …as mulheres fogem. Ao saírem cruzam com o coro (grupo de rapazes) que entra em cena correndo. Eles vão até o local onde Orfeu se encontra e fecham-lhe os olhos. Música termina. Põem Orfeu nos ombros e, cerimoniosamente , vão saindo carregando o corpo do poeta…cantando a canção de Orfeu a quatro vozes, sem acompanhamento algum.” (80)

As mortes de Píramo e Tisbe são igualmente mostradas no espaço mimético. Ambos se apunhalam por amor. Píramo vai encontrar Tisbe, para com ela fugir. Na pedra-sem-alegria, encontra o manto que ela ali deixara como um sinal, ao fugir de um leão que a perseguia. Ao ver sinais de sangue sobre o manto, julga-a morta:

Píramo: Oh! Tisbe, Tisbe, chegaste cedo demais! O sol, invejoso de ti, pactuou com a morte. Bebeu teu sangue para tornar-se rubro e belo! Oh! Não… (chora)

O vocal pára. Silêncio. Ouve-se apenas o pranto de Píramo. Tempo. Depois de alguns instantes, Píramo deixa de chorar e, decidido, arranca um punhal da cintura.

Píramo: (de punhal erguido ) Tisbe! Serei tão breve que nem notarás meu atraso!

(Tisbe entra, no fundo)

Coro: (gritando) Não!!!

Píramo: (gritando) Não!!! (apunhala-se)

Tisbe: NÃÃÃOOO !!!” (81)

Tisbe encontra o amado morto. Chorando de dor declara-lhe seu amor. A um determinado momento, Tisbe arranca o punhal de Píramo e empunha-o sobre o peito, declama os mesmos versos de Orfeu e se apunhala.

No epílogo, após a morte de Píramo e Tisbe, o coro os despe e reúne seus corpos nus:

Contrastando com a tragédia de Píramo e Tisbe, na qual a morte interrompe uma história de amor, Vladimir apresenta uma personagem imortal, Sibila, que obteve de Apolo a graça da eternidade. Esquecera-se contudo, de pedir-lhe a eterna juventude. Seu único desejo é morrer. Seu discurso sobre a morte revela que esta pode ser, em algumas circunstâncias, considerada como um alívio:

Sibila: Como são impiedosos os segundos que, inexoravelmente, destroem-me o corpo!

Como são impiedosos os segundos que me condenam a essa abjeta velhice sem fim! Como são impiedosos os segundos!

Por que se arrastam, tiranos, com a insuportável lentidão do tédio?

Tiranos! Carrascos do tempo! Mensageiros perversos do desgosto! (tempo)

Ai, secaram-me as lágrimas!

Por que não me secou também o sangue?” (82)

A transformação de Dóris em pedra, mostrada no início da peça é retomada na última cena, desta vez no espaço diegético, pela voz de uma menina que carrega a gaiola de Sibila, para a curiosidade de alguns camponeses:

Camponesa 1: Maravilhosa e extravagante gaiola!
Camponesa 2: E como a recebeste? Quem a trouxe?
Menina: Achei! Ali na pedra sem alegria.
Camponesa 5: Oh! É informada a pequena. Sabe até o nome da pedra!
Camponesa 3: Esperteza não se vê na idade!

(todos riem)

Menina: Todo mundo sabe que a pedra-sem-alegria foi outrora uma bela jovem que de tanto padecer transformou-se!
Camponesa 2: E de que mal sofria a pobre moça?
Menina: Não sei. De tristeza sem fim! (Tempo. Sorrindo ingênua) De amor, talvez…” (83)

Dóris ressurge no momento final da trama, depois da morte do casal de amantes, trazendo de volta a esperança:

A música tem uma súbita crescida e a iluminação cria um brilhante corredor de luz, diagonal, que vem do fundo do palco até a pedra.

E então, a pedra-sem-alegria rompe-se.

Abre-se ao meio e liberta Doris que levanta-se, apanha de dentro da caixa de Pandora uma pequena luz, e se dirige para o fundo do palco.

Caminha majestosamente pelo corredor de luz, carregando nas nãos o brilho da esperança.

…Doris, no fundo, sobe a escada e, no alto, ergue a luz. Eleva-a como um pequeno e solitário astro luminoso.

Na frente, os atores cobrem o casal de amantes com a capa de Tisbe, que agora mescla sangue e estrelas.

Música cresce ao máximo, enquanto desce, finalmente, o magnífico manto da noite.

E tudo cobre.” (84)

3.10 – O Homem das Galochas (1996. Segunda versão em 1997)

Mais uma vez Vladimir Capella focaliza a morte como uma fonte geradora da vida.

Desta feita, não só apresenta a morte de personagens, como cria uma personagem para corporificar a morte.

Em O Homem das Galochas é a iminência da morte do escritor Hans Christian Andersen o fator determinante para todos os acontecimentos da peça. É a partir de seus últimos instantes que sua vida e obra são mostradas à plateia. Em todos os contos do autor que são encenados ou relatados, a morte se apresenta como um dos temas centrais.

A peça tem início mostrando, no espaço mimético, o corpo morto de Andersen.

A fábula é construída a partir de um inusitado encontro de Andersen com sua infância, representada pelo pequeno Hans e deste com seu futuro, simbolizado pelo poeta. O encontro entre ambos é celebrado através das histórias que o poeta conta ao menino, que são encenadas episodicamente durante o espetáculo.
A primeira delas versa sobre a morte de uma criança, cuja mãe inconformada sai em seu encalço, com o intuito de reavê-lo. Em sua busca, a mulher enfrenta diversas situações difíceis: perde os olhos, os cabelos, abraça uma árvore espinhosa que a faz sangrar. A noite exige que ela lhe cante uma canção de ninar.

Cada uma das personagens que encontra lhe diz algo sobre como a morte age.
A Noite, que lhe diz:

A Morte esteve em seu quarto. Eu bem a vi. Saiu sorrateira carregando teu filhinho nos braços… Correu tão veloz como o pensamento…”Ela nunca traz de volta o que leva.” (87)

A seguir encontra um arbusto espinhoso Pergunta-lhe sobre a morte e ele responde:

Passou apressada feito um instante de alegria.” (88)

Mais tarde, um barqueiro lhe diz que a viu passar tão rápida como a felicidade.

Depois de vencer estes obstáculos, a mãe encontra com a própria morte: um velho jardineiro, de longas barbas brancas, cuidando de diversas plantas que simbolizam as vidas humanas. A Morte mostra à mãe a imagem de duas crianças, uma feliz e saudável, outra doente e sofredora. Ambas são representadas por plantas iguais. Pede à mãe que escolha uma das duas plantas para levar consigo, devolvendo assim a vida ao seu filho. Ela então, resignada, ordena que a Morte leve o menino.

O primeiro conto é mostrado sem mediação alguma. Já A sombra é apresentado por um grupo de camponeses que contam a história uns aos outros, simultaneamente à encenação.

A sombra
, conta a história de um poeta que libertou sua própria sombra, a pedido desta. Ela ocupa seu lugar, torna-se um famoso escritor, fica noivo de uma princesa e para não ser desmascarado pelo poeta, manda enforcá-lo.

O corpo do poeta é mostrado mimeticamente balançando na forca, no dia do casamento de sua sombra com a princesa.

… descortina-se aos olhos horrorizados de todos, um patético espetáculo: o corpo de poeta balançando numa forca.” (89)

A morte da pequena vendedora de fósforos, outro conto de Andersen é mostrado no espaço diegético, pelo relato de Hans à sua mãe.

“Hans: Tão começou a riscar os fósforos para se aquecer. Um por um, foi acendendo, acendendo… até amanhecer.

E era como se cada luzinha daquelas pudesse iluminar, por um breve momento, seus doces sonhos de menina.

Mãe: Terminou?
Hans: Não. Na manhã seguinte encontraram-na morta na calçada, com um pedacinho de fósforo queimado na mão.(p.28)
Mãe: Que história mais triste…Hans!
Hans: Melhor a morte do que uma vida tão infeliz…” (90)

Um outro diálogo entre Hans e sua mãe descreve os funerais de algumas margaridas no campo. Através da história, Hans revela a visão sobre a morte que adquiriu do poeta.

Hans: Me entreti com as histórias das plantas. O enterro foi longo, cheio de cerimônias e despedidas…
Mãe: Enterro?!
Hans: Morreram as margaridas que beiravam o rio. Inda ontem estavam tão bonitas, precisavas ver! Mas hoje cedo acordaram pendentes e murchas…
Mãe: Ah! Que susto me destes!
Hans: Todas as flores da redondeza vieram ao velório. Fizeram um cortejo sem fim! Chi! Foram tantas visitas…!( noutro tom, como em segredo, sussurando) Elas pediram para serem enterradas ao lado do canário que perdeu as asas…
Mãe: E ficaste muito triste?
Hans: Não…porque no Verão elas nascerão de novo e serão ainda mais belas!
Mãe: Ah! é? E como sabes…? 
Hans: O estranho visitante me falou. Disse que a morte é apenas uma.

Passagem. Depois a gente vai nascer numa outra vida ainda melhor…

Mãe: Quem disse isso, Hans?
Hans: O homem das galochas…” (91)

O final da peça apresenta a morte de Andersen no espaço mimético. Ele morre depois de o pequeno Hans prometer-lhe que vai continuar contando suas histórias. Depois de mostrar a morte do poeta, Vladimir recomenda que todo o elenco se aproxime de seu leito e o cubra de flores.pobrezinha era ela que fazia dó…Numa noite gelada de Inverno, a neve caía e ela não tinha onde se abrigar; nem casa para voltar…! Encostou-se no canto de uma rica parede toda envidraçada e, tremendo de fome e de frio.

3.11 – Clarão nas Estrelas (1999)

Um tiro de espingarda, vindo da plateia e atingindo o coração do protagonista dá início a “Clarão nas Estrelas”. O mesmo tiro, repetido no final da peça soluciona o conflito do menino-pássaro que desejava morrer para se ver livre da tristeza que o aprisionava.

Maria, a autora do disparo compreende o que deve fazer para permitir que seu amado possa se transformar em alguém livre, capaz de encontrar-se a si mesmo e conhecer o amor.

A morte do príncipe é mostrada mimeticamente. Durante o espetáculo a plateia acompanha, intrigada, o mistério que teria levado o príncipe à morte, para no final, já senhora do drama do rapaz, possa acompanhar seu desenlace e assistir o encontro do jovem com a vida e com a felicidade.

A ideia de que a morte conduz à vida é aqui reiterada.

A jovem Maria, empregada do palácio real e apaixonada pelo príncipe revela sua história a ele. Começa por narrar como morreram seus pais. O objetivo de Maria é que o príncipe, ao ouvir sua história, conte a ela a dele próprio.

A evocação de seu passado ocorre no espaço diegético mas é entremeada pela mimetização da voz e da silhueta do pai. Seu relato é também acompanhado por uma mudança de cenário e de luz:

Maria: Meu nome é Maria. Maria porque nasci do amor, porque nasci no mar…

(Durante a fala de Maria a luz vai alterando-se, azulando lentamente.

Entra som de mar: ruído de água e gaivotas. O cenário vai se transformando. Se possível, de preferência um cenário dentro do cenário. Talvez feito apenas com sombras luz e projeção. O ambiente sugerido deve lembrar uma pequena aldeia de pescadores: lua cheia por detrás das montanhas, homens carregando redes de pesca, jangadas, veleiros, coqueirais).

Maria: Sou filha de pobres pescadores. Meu pai foi quem me ensinou a acreditar nos sonhos e no amor. Meu jovem pai que tão cedo morreu no mar. No mesmo mar azul onde nasci. Morreu chamando ‘Maria’…

(Alguém no fundo, em silhueta grita ‘Maria’… O chamado pode se repetir por algumas vezes feito um eco distante: Maria, Maria…)

MariaMinha mãe – que também era Maria e o amava tanto – por nove semanas inteiras chorou. Chorou como nunca se viu. E de chorar, então, no silêncio de uma noite triste, morreu. Recolhi suas lágrimas de dor num velho pote de barro… e as esqueci no quintal à luz do luar. E nessa mesma noite sonhei…” (92)

O sonho de Maria é então mostrado em cena:

Dos fundos aparece uma linda figura de mulher trazendo um vaso de barro nas mãos. Ela vem acompanhada de um jovem pescador. O homem pára num ponto mais distante enquanto a mulher caminha em direção à menina, aproximando-se. Ajoelha-se perto dela.

Maria: Mãe?
Mãe: Vim trazer-te o pote de barro que esqueceste ao luar.
Maria: Mãezinha…
Mãe: Minhas lágrimas serão o presente que a ti deixarei… a menina recolhe de dentro do pote um cordão com uma pedra de cristal pendurada na ponta.
Maria: É lindo…!
Mãe: Se precisares, ele te auxiliará.
(…)
Maria: Lágrimas de cristal!
Mãe: Teus sonhos de menina ele realizará!
(…)

Maria fica olhando para o pêndulo enquanto a mãe e o pai se afastam lentamente até sumirem no fundo do palco. Durante a próxima fala de Maria, luz e cenografia vão voltando ao cenário anterior.

Maria: Na manhã seguinte corri até o pote de barro… e lá estava ele brilhando: o meu presente de prata. Como no sonho que sonhei.” (93)

Ocorre nesta cena uma alternância entre os espaços diegético e mimético, no qual o segundo predomina. A narração de Maria dá lugar à mimetização de seu sonho, que também ocorrera no passado e portanto estaria sendo narrado. Através dele a morte dos seus pais é reapresentada, agora não como um trágico acontecimento na vida da menina, mas como algo que pôde ser superado através da herança do pêndulo de cristal, que lhe prognosticaria um futuro feliz.

A rigor, a diegese propriamente dita estaria limitada à fala inicial de Maria relatando a morte dos pais, que o autor optou por não mostrar cenicamente, mas que pela voz de Maria é apresentada em detalhes.

A peça traz também pela voz do príncipe, algumas referências e considerações sobre a morte. Ele diz a Maria que deseja morrer porque a morte traz a vida em seu bojo. Em outro momento, desesperado porque Maria nega-se a matá-lo, ele diz:

Príncipe: (descontrolado, gritando com muita dor) AAAIII !!! Deixa-me em paz!

Ó morte adorada, porque demoras tanto pra vir? Porque não chegas depressa prá selar com teu beijo gelado uma pobre vida que implora prá de novo nascer ?

…Ah! A bela e dolorosa morte há de chegar, para que a vida então possa romper, num triunfante renascer!” (94)

Aqui, assim como Sibila e a pequena vendedora de fósforos, o príncipe vê na morte a solução para uma vida infeliz. Ao matá-lo, como vimos, Maria ouve de um anjo uma frase similar à de Payá: “O dia nasce quando a noite morre e a noite morre para o dia poder nascer”. O ato de Maria liberta o príncipe que então se casa com a ela.

3.12 – Imagens (1999)

O roteiro Imagens traz novamente à tona o tema da morte.

As duas ocorrências de morte aparecem no espaço mimético.

Na primeira, a noiva, que fora raptada pelo mago do mal, é empalada por ele, mas logo a seguir é ressuscitada pelo noivo, o mago do bem.

A seguir, os rivais travam uma luta na qual o mago do mal mata o do bem. Entretanto, ao despir-se ele se revela como sendo o herói da história, o mago do bem. E a rubrica ressalta que é certo pensar que o bem e o mal são a mesma pessoa.

3.13 – Miranda (2000)

A morte da mãe adotiva de Miranda ocorre no espaço mimético. A cena mostra que ela morre de velhice, revelando à menina que não era sua verdadeira mãe. É esta morte que desencadeará toda a trajetória de Miranda na busca de sua identidade. Como na morte da mãe em Maria Borralheira, da professora de artes em O Dia de Alan, e da mãe de Maria em Clarão nas Estrelas, a morte da mãe inicial funciona como propulsor da ação futura de Miranda, como um acontecimento transformador. Entretanto aqui, a herança deixada a Miranda não é um objeto mágico, mas a interrogação sobre sua própria identidade. Ainda assim, as últimas palavras do discurso da velha afirmam que a heroína se parecia muito a uma princesa:

Velha: Ah! como fui tola quando imaginei que um dia poderia ser recompensada pelo trabalho que tive em criar-te.
Miranda: …
Velha: Quem há de me pagar as noites em claro, quando choravas e gritavas como se o mundo fosse acabar? As incontáveis horas de vigília quando adoecias em febre de quase morrer? O pão que por milhares de vezes me roubaste da boca?!
Miranda: Por favor, mãezinha, não…
Velha: Eu não sou tua mãe! És filha de um diabo qualquer!

Relâmpagos. Luz altera-se e entra música. A menina tapa os ouvidos com as mãos e balbucia uma cantiga qualquer de criança, como para não ouvir o que a velha cruelmente lhe diz.

Velha: (Aos berros, feroz) Achei-te, ali! (aponta) No meio do mato. Feito um lixo! Ninguém te queria. Foste enjeitada por todos. Diziam que eras uma pequena bruxa. Amaldiçoarem-te. Todos. Mas eu não, gananciosa e crédula, achei que fosses uma princesinha perdida num naufrágio, roubada por salteadores… a ambição me cegou! Imaginei, em santa inocência, que um dia viriam procurar-te… e então eu pediria uma bela fortuna por ter cuidado de ti como uma boa mãe. Ah! seria dona de um castelo só meu! (Tempo. N’outrotom, quase doce) Parecias mesmo uma pequena princesa embrulhadinha naquele manto real. Eras tão linda…

A velha ajeita-se como quem vai dormir e, serenamente, morre. A música termina. Silêncio. A menina percebe o que aconteceu e desesperada sacode a velha. E chora sobre o seu corpo.” (95)

A mesma cena é reproduzida no espaço diegético quando Miranda, ao tentar curar o rei, conta-lhe sua história:

Miranda: Disse-me, a velha, que eu devia ser filha…( percebendo o engano e corrigindo-se) filho do diabo, porque fui achado envolto num manto de rara beleza. Disse, e morreu nos meus braços. Nem sequer notou os pirilampos que eu tentava mostrar-lhe…

Tempo

Miranda: (Dando-se conta que devaneava) Mas…o que faço? Vim para ouvir a sua história e estou quase chorando com a minha.
(…)
Miranda: Não quereis contar-me a vossa tristeza…?” (96)

A narração reitera o fato, desta vez não como ele ocorreu em si, mas como ecoou na memória da menina. O relato provavelmente fará com que a plateia também se recorde das dramáticas imagens assistidas anteriormente.

A segunda morte apresentada na peça é a de “Amigo”, o cavalo de Miranda. A exemplo do ocorrido com a vaquinha de Borralheira, por ordem na rainha má, o cavalo de Miranda é morto.

Do mesmo modo que a morte da vaquinha (ocorrida logo depois que Borralheira ouvira versos de amor do príncipe quando se banhava na cachoeira), a morte do cavalo acontece no momento seguinte em que o príncipe descobre que Miranda é uma menina.

A morte do animal de estimação vem novamente representar a despedida da infância e o encaminhamento da heroína em direção à descoberta do outro.

Talvez por esta razão o autor mostre o cavalo morto à plateia no espaço mimético, sem quaisquer subterfúgios:

Cena 8 – Uma imagem cruel

…veremos no fundo do palco vazio, o cavalo de Miranda pendurado por duas cordas, a mais ou menos um metro do chão, com várias lanças trespassando-lhe o peito.

Uma imagem forte para provocar, intencionalmente, uma sensação forte de dor e beleza cênica” (97)

Em seguida, Miranda é levada ao cadafalso pela rainha; o rei então aparece no momento da execução e a salva. A rainha tenta fugir e é morta pelos cavalos que dividiram a estrebaria com “Amigo”. A cena também ocorre no espaço mimético. É a última situação de morte mostrada no espetáculo. É a primeira vez que o autor mimetiza a morte de um vilão. Com certeza, a rainha má em Miranda é a personagem mais ignóbil de toda a dramaturgia capelliana. Difere da madrasta de Borralheira, por exemplo, que tinha no excessivo amor pelas filhas o motivo de seus atos vis para com a heroína ou da professora de Inglês, em O dia de Alan que provavelmente se submetia cegamente aos padrões da instituição escolar na qual trabalhava.

Aqui o obsessivo desejo de poder é o grande responsável das ações da rainha. Estas, são contrapostas em diversas cenas por manifestações do povo, que aparece com suas bandeiras e palavras de ordem, clamando por justiça e liberdade.

O castigo que lhe é impingido talvez mostre a punição que instintivamente desejamos a todo e qualquer político que usa o poder em causa própria, penalizando o povo que depende de suas decisões:

Cena 11 – Um castigo exemplar: a vingança dos cavalos

Entra uma música de caráter misterioso que sugira a estranheza de uma espécie de culto ou ritual. A iluminação deve ressaltar uma ideia de algo entre cerimonioso e opressivo.

E, nesse clima meio que assustador, vão entrando, um a um, os cavalos da cena da estrebaria. Entram e vão como que rodeando a rainha má, que vai esgueirando-se sorrateira por todo o espaço e esquivando-se deles, com o pânico de quem não tem saída.

Fazem uma coreografia, uma seqüência de movimentos que deve resultar, por fim, num círculo de cavalos em torno da rainha. O círculo, então, vai se fechando até culminar com o grito da malvada sendo esmagada por eles. O grito deve se dar junto de um black-out.” (98)

O epílogo mostra Miranda realizando, ao lado do príncipe, seu sonho de felicidade.

3.14 – O Clone do Visconde (2001)

A trama é construída a partir da morte do Visconde de Sabugosa.

A primeira referência ao fato é dada pela passagem de um cortejo fúnebre, que interrompe algumas lembranças que Monteiro Lobato relata à plateia sobre o Sítio do Picapau Amarelo. Nele pode se ver o corpo do Visconde sendo carregado em seu leito de morte:

A segunda menção ao fato, corre simultaneamente ao cortejo, mas agora no espaço diegético. Numa espécie de entrevista, ouve-se a voz de Tatiana Belinki, gravada em off, relembrando o episódio:

Repórter: Tatiana Belinky, você se lembra do dia em que o Visconde de Sabugosa morreu?

Tatiana: Bem… teve uma vez que o Visconde sumiu por muito tempo e depois acabaram por encontrá-lo atrás de uma estante todo embolorado… Aliás, foi nessa ocasião que ele virou sábio porque ficou no meio de tantos livros que acabou aprendendo muita coisa, não foi?Depois… É teve a morte do Visconde, sim. Estou me lembrando. Isso foi da segunda vez que ele sumiu. Tudo começou numa certa manhã quando a Narizinho…” (99)

Vladimir Capella faz aqui um jogo entre ficção e realidade. Tatiana Belinki, como se sabe, é uma personalidade cujo nome está profundamente ligado ao Teatro e à Literatura infanto-juvenis, tendo inclusive atuado, ao lado de Julio Gouveia, seu marido, na direção de episódios do Sítio do Picapau Amarelo, na extinta TV Tupi. Ao trazer a morte do Visconde através de sua voz, como uma lembrança de algo ocorrido de fato, o autor convida o público a acreditar na história que vai presenciar como se fosse um acontecimento real.

Emília toma conhecimento do fato por meio de alguns duendes, que trazem o corpo recém destruído do Visconde e revelam a ela como ocorreu sua morte. Aqui, uma brincadeira duplica o relato, pois os duendes falam com a boneca numa língua ininteligível, que ela traduz em voz alta:

E (Emilia) vê, entrando pelo corredor do teatro, três duendes, numa profusão de cores, carregando o corpo do Visconde. Se encaminham para o palco e largam o Visconde no chão.
Duende 1 Muzimbiquimlalautroversa!
Duende 2:  Atrofapaziguadaliliukaia!
Duende 3:  Tretatointoincabousenopuf!
Emilia:  Morreu…?! Como?!
Duende 1:  Najacadajaquerajacajacacajobá!
Emilia:  Debaixo do pé de jaca…?
Duende 2:  Catapumcabôdemassáchatácapum!
Emilia:  Uma jaca caiu em cima do coitado…?
Duende 3:  Zagataliberô!
Emilia:  Desse tamanho?

Os três fazem que sim com a cabeça.

Emilia: Ah! pobre Visconde. Foi buscar um caramujo na jaqueira e morreu assim todo amassadinho por causa de uma jaca assassina que caiu do pé.” (100)

A constatação da morte do Visconde gera um diálogo através do qual é mostrada, pela voz de Nastácia, a inevitabilidade da morte:

Os dois vão até o Visconde, tentam erguê-lo mas ele não pára em pé. Tentam novamente, mas ele volta a cair.

Emilia: Num adianta. Tá morto-mortíssimo.
Narizinho: E agora vozinha, o que vamos fazer…?
D.Benta: Enterrá-lo. Que mais se pode fazer, minha filha? Enterrá-lo ao pé da jaboticabeira onde tem muita sombra pra que ele descanse em paz.
Pedrinho: Ah! não. Podíamos queimá-lo numa pira como faziam os povos da Índia.
Narizinho: E o seu faz-de-conta Emilia, cadê?! Pra que que serve aquela porcaria então?!
Emilia: Não funcionou Narizinho. Acho que o meu faz-de-conta encrencou de uma vez!
NastáciaÉ que c’oa morte ninguém pode não, minha filha, num tem faiz de conta argum capaiz de arresorvê.” (101)

A cena do funeral do início é mostrada novamente, desta vez através de projeção de filme. A projeção, ao nível da fábula, mimetiza um pensamento da Emília. Para ela, um belo funeral seria a forma mais adequada de homenagear o amigo morto.

Emilia: No meu pensamento o inesquecível enterro do Visconde de Sabugosa vai ser assim!

Faz um gesto de regente de orquestra, todos congelam, entra música e desce um telão, no fundo ou na frente do palco, como se prefira.

E nele é projetado um filme com um cortejo fúnebre como já foi visto e descrito no começo do espetáculo. (Pode ser até mais grandioso, filmado na Av. Paulista com pessoas acenando lenços brancos e etc.)

Durante a projeção, Monteiro Lobato entra pelo corredor lateral do teatro até chegar na beira do palco onde estava no começo. Caminha como se estivesse vendo a cena ou assistindo a um filme.No final a imagem congela na tela, o telão vai subindo e revelando novamente os personagens estáticos na posição em que estavam. Um pequeno foco de luz ilumina o escritor.” (102)

O funeral é assistido por Monteiro Lobato, que desta vez compreende o ocorrido e se sensibiliza com a intenção da boneca.

MLEntão foi isso…?! Claro! Como é que eu pude não perceber uma coisa tão simples? Pensamento da Emilia. O enterro do Visconde foi… um pensamento da Emilia! Ah! Só isso daria um livro tão bonito quanto foi bonita a homenagem que ela quis lhe prestar. É… pensamento digno assim merece um final mais feliz.

Lobato então decide trazê-lo de volta, obedecendo as ordens de Emília. Ela faz uma oração, pisca para o escritor, que a ajuda a fazer o Visconde renascer, para alegria de todos. Lobato se retira discretamente e Emilia lhe faz um sinal de “positivo”, em tom de cumplicidade.

3.15 – O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá (2001)

A personagem central de O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá vive um drama muito próximo ao de Payá, de Como a lua.

Payá foi abandonado por Colom, que não o considerava um índio suficientemente forte e bonito. Sinhá abandona Malhado por imposição da sociedade que a cerca. Sua família não permitiria que ela se casasse com alguém de posição social inferior.

A tristeza causada pelas respectivas perdas conduz os dois personagens à morte.

Payá, entretanto, renasce transformado. Não é o que ocorre com o Gato Malhado.

A sua morte é exposta diegeticamente, nas entrelinhas do discurso final de Jorge Amado, que narrara a história a seu filho.

Simultaneamente à narração, o gato vai desaparecendo lentamente de cena:

Jorge Amado: Mas prefiro falar da tristeza que se apossou do coração do Gato Malhado. Tristeza justa porque a felicidade não pode se alimentar apenas das recordações do passado. Precisa dos sonhos do futuro. E pra ele já não havia futuro que alimentasse seu sonho de amor impossível. Tomou do buquê de flores, apertou-o contra o peito, olhou mais uma vez o parque coberto pelo Inverno e saiu andando devagar. Tomou a direção dos estreitos caminhos que conduzem à encruzilhada do fim do mundo. E nunca mais ninguém o viu. (tempo) Aqui termina a história que a Manhã ouviu do Vento e contou ao Tempo pra ganhar a rosa azul. (tempo) Boa noite, meu filho. Feliz aniversário!

Durante a narração, depois que todos já tiverem saído, o gato malhado, de costas para a plateia, caminha lentamente para o fundo do palco num facho de luz. Quando a narração terminar a música sobe e a luz vem apagando até o black-out final.” (103)

A imagem do gato partindo, no espetáculo dirigido pelo autor em 2003, é mesclada à de uma tela, na qual vai sendo projetada a ficha técnica do espetáculo.

3.16 – O Colecionador de Crepúsculos (2001)

Inúmeras situações de morte são apresentadas em O Colecionador de Crepúsculos. A própria fábula tem o tema como eixo central.

A morte é aqui corporificada, tornando-se uma personagem de destaque na trama.

Sua imagem, segundo a recomendação do autor, pode ser a de uma mulher bonita, uma figura meio andrógina ou uma espécie de cavaleiro do século passado.

Vladimir Capella dedica o texto à sua “vó Albertina”, com esta espécie de hai-cai japonês:

À minha vó Albertina, que a gente tanto gostava e, mesmo assim, a morte levou.

Novamente Capella expõe uma faceta autobiográfica, através da qual ele aparece como “narrador”, nos moldes descritos por Walter Benjamin: transmite uma experiência vivida. E não uma experiência qualquer. Trata-se de uma narração sobre a morte de um ente querido.

Neste caso, o autor narrador não exprime um sentimento individual (como ocorreu emMaria Borralheira), mas o amplia, na medida em que o exprime na primeira pessoa do plural: “que a gente tanto gostava…” Significa dizer que não estamos diante do discurso de um indivíduo isolado, mas de alguém que “fala exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes.” (104)

Não por acaso, O Colecionador de Crepúsculos versa sobre a vida e obra de uma personalidade de suma importância para a cultura brasileira – Câmara Cascudo. Sua maior contribuição foi a de manter vivas nossas tradições orais. A menção ao sentimento coletivo sobre a perda da “Vó” Albertina, (as avós sempre são transmissoras das tradições aos netos) funciona como uma metáfora em relação à morte de Cascudo, que será tratada no texto.

A peça tem início com o elenco fazendo uma oração a Cascudo. Os atores vestem preto e portam velas. Deixam claro que ele já está morto. Pedem-lhe permissão para acrescer “ao seu rico cabedal uma lenda que urge nascer.

O “velório” aqui encenado cumpre uma função similar àquela analisada em Maria Borralheira: indica uma morte não através de sua encenação propriamente dita, mas pela mimetização do ritual que dela decorre.

No presente caso, entretanto, não aparece o corpo morto de Cascudo. Pelo contrário, finda a oração, os atores vão abrindo o quadro de cena, no qual se descortina a figura de Câmara Cascudo, sentado de costas, apreciando o entardecer.

A cena será retomada no final do espetáculo, na qual será mostrado seu leito de morte, recoberto com a bandeira brasileira.

A seguir, com o Caipira e a Morte caminhando por entre as velas deixadas no palco, a cena 1 tem início.

Trata-se de um sonho do Caipira, no qual a Morte lhe explica que cada uma daquelas velas representa uma vida humana. Avisa-lhe que sua vida está chegando ao fim e que em breve virá buscá-lo.

Assim como o barco em Avoar e em Antes de ir ao Baile e as plantas em O Homem das Galochas, as velas constituem uma nova metáfora formulada por Capella para simbolizar a vida e a morte.

A cena 2 introduz o conto A Menina Enterrada Viva, recolhido por Câmara Cascudo. Vladimir optou por colocá-lo na peça de forma segmentada, ao contrário dos demais que compõem o enredo, mostrados linearmente.

Trata-se de um conto classificado por Cascudo como pertencente ao ciclo da natureza denunciante: depois da morte da esposa, o pai de Aninha casa-se com uma viúva que maltrata a menina. Ela tem uma figueira no jardim e obriga Aninha a cuidar dos figos e impedir que os passarinhos os biquem. A menina falha e a madrasta a enterra viva numa cova. O pai ao ser informado pela mulher do desaparecimento da filha fica desconsolado. Passado algum tempo, a madrasta manda um jardineiro ceifar o jardim cujo mato não parava mais de crescer. Este ouve a voz de Aninha, vinda de dentro da cova, cantando uma canção. Por meio dela descobre que a menina estava viva e a salva, para regozijo de todos, menos da madrasta que é castigada com a morte.

A história é introduzida por um grupo de crianças que cantam uma canção folclórica. A canção afirma a inevitabilidade da morte e fecha a cena do sonho do caipira:

“O BANDOR, VIVA O BANDOR, O BANDOR DE NÓS TAMBÉM PASSAREMOS, NÃO PASSAREMOS , ALGUM DIA FICAREMOS.” (105)

O caipira encontra então seu filho, que entra acompanhado de Aninha e informa ao pai que sua amiga estava triste porque sua mãe morrera.

Desta vez o relato propositalmente não esclarece as causas da morte, pois esta é tratada ao longo do texto como algo próprio da vida. Eis o trecho:

Menino: Dia nhor pai! Bença! Esta aqui é a Aninha, ó. Tá cuessa cara assim mode que tá triste. A mãe dela se morreu presses dia gorinha…

CaipiraÔ cuitadinha. Morreu diquê a povre? MeninoDe morte, nhor meu pai! Intãocê de que havéra di sê?!” (106)

Ainda no espaço diegético, a plateia toma conhecimento de que o pai de Aninha já havia se casado com a viúva, definida pelo caipira como a “tarasca do gênio ruim” que possuía pés de figo no quintal de sua casa.

O relato termina com a mesma canção do início, com as crianças ao fundo, às quais se misturam Aninha e o menino. Durante a brincadeira, uma mudança de luz e de música introduz um diálogo entre Aninha e sua mãe, mostrado de forma onírica, tal como o de Maria com seus pais, em Clarão nas estrelas. Através dele a menina expressa sua perplexidade diante da morte, enquanto a mãe silenciosamente lhe penteia os cabelos.

Aninha…Meu paizinho viaja tanto! E quando fico sozinha me encho de lembranças… Mas o que eu mais penso mesmo, porque não consigo entender, é por que que você partiu assim tão de repente. Penso, penso, penso até… Hein mãezinha, você pode me responder por que que você morreu?” (107)

Assim como a morte dos pais de Maria em Clarão nas Estrelas, a morte da mãe de Aninha é mostrada no espaço diegético. Mas em ambos os casos, o autor torna patente que ela existe e é inevitável. Mostra ainda como o afeto recebido é uma herança mágica que pode ajudar a superar as dores da perda e os obstáculos da vida futura.

Aninha promete à mãe que jamais vai cortar os cabelos, para conservar a lembrança dela os penteando com tanto carinho. São eles que vão fazer o mato do jardim da madrasta crescer compulsivamente e assim salvar a vida da menina. A cena termina com Aninha sendo arrastada pelo grupo de crianças que entoam novamente a mesma canção do “Bandor”. Sua mãe vai desaparecendo no meio deles.

A história é então interrompida, dando lugar ao próximo conto, introduzido por um grupo de lavadeiras cantando uma canção que versa sobre amor e morte:

Mama mama meu filhinho
Dão darão darão
Este leite de amargura
Dão darão darão
Que amanhã por esta hora
Dão darão darão
Tarei eu na sepultura
Dão darão darão
Os sinos tão tocando
Dão darão darão
Meu bom deus quem morreria
Dão darão darão
Prá me fazer companhia
Dão darão darão
Foi aquela bela infanta
Dão darão darão
Que quis casar o bem casado
Dão darão darão
Coisa que Deus não queria
Dão darão darão
Coisa que Deus não queria
Dão darão darão…”

A canção é interrompida por um pescador que aparentemente perdeu o juízo.

Elas param de cantar e tecem alguns comentários sobre o homem. Referem-se a ele com as mesmas palavras com que o grupo de teatro itinerante, em “Miranda” descrevera o estado do rei: ele estaria esperando pela morte ou pelo amor:

“Izabé: Ficou assim o infeliz.
Lavadeira 1: Todo dia a mesma coisa…
Lavadeira. 3: Só faz esperá.
Lavadeira. 2: Por um grande amor, eu creio…
Lavadeira 1: Pela morte decerto! 
Lavadeira 3: Tadinho…
Lavadeira 3: Isso é um louco que só a pedra!
Lavadeira 2: Mal de amor é que faz ficar assim aluado.” (108)

A lenda do pescador e a Mãe D’Água, é então relatada por Izabé, que diz saber os motivos de sua loucura. A história aparece então não como um conto, mas como se fosse um caso “real”.

Em diversos textos de Capella o narrador está personificado por pessoas do povo. De fato, verificando as anotações que Vladimir fez para escrever esta peça, encontrei a seguinte reflexão:

Quem são as Sherazades brasileiras? As amas secas, as negras escravas, o povo.

Izabé conta que a mãe d’água para superar sua profunda solidão e comovida com a aflição do pescador que lutava em vão pela sobrevivência, propôs-lhe casamento. Pediu-lhe que nunca arrenegasse nada que fosse das águas. Ele se apaixonou e fez a promessa. Eles se casaram e viveram felizes e com fartura por algum tempo. Ele então começou a perceber que a esposa andava cada dia mais triste. Passado algum tempo e vendo que nada a alegrava, o pescador, compadecido com o seu sofrimento, a arrenegou, permitindo assim que ela voltasse para o fundo do rio. Essa fôra a razão de sua loucura.

A narração de Izabé é entrecortada pela encenação da história e pelos comentários das demais lavadeiras.

No momento em que, no espaço mimético, o pescador e a Iara se beijam, prometendo amor eterno, Capella interrompe a cena inserindo um interessante diálogo entre as lavadeiras sobre amor, morte e drama:

Lavadeira 3: Tu bem que podia pará de contá a história por aí, né não Izabé?
Lavadeira 2: Vixe, que abestamento é esse? Por que?!
Lavadeira 3: Tá tudo tão bonito. Certo é que, se continuar, há de vir tristeza pela frente.
Lavadeira 1: Vixe! Tu prefere então que se páre de contá a história pela metade? Sem sabê os finarmente ?
Lavadeira 3: Tô preferindo…
Lavadeira 2: Por mim, não. Quero ouvi até o fim. Mesmo porque aprecio com muito gosto um drama de fazê chorá.
Lavadeira 1: V’ambora. Termime logo de contá Izabé, que eu já tô curiosa prá saber o que assucedeu-se.
Lavadeira 3: Prá que? Já se sabe que vai terminá em morte.
Lavadeira 2: Morte é coisa da vida.
Lavadeira 3: Prefiro história de amor.
Lavadeira 2: Oxente! Então tu não sabe que morte e amor tão ali, ó…

(faz gesto com os dedos indicando que andam lado a lado)

Lavadeira 3: E tu? Não diz nada não Izabé?
Izabé: Que hei de dizê? Só sei uma coisa, minha filha: A vida da gente é mesmo incerta, tá se vendo. Mas a morte não. Essa não falha nunca.
Lavadeira 2: Pois então prossegue Izabé. Conte o resto, vá!
” (109)

Ela retoma a narrativa, que volta a ser encenada pelo pescador e a Iara. Desta forma, um jogo entre passado e presente, entre diegese e mímese se estabelece, com clara subordinação da primeira, como pode ser observado com mais clareza pela sugestão de rubrica para a encenação da “morte” da Iara, que finaliza o episódio:

…vários atores saem das coxias trazendo metros de tecidos esvoaçantes e azuis que entregam em suas mãos. Do urdimento e de todos os lados do palco podem surgir panos, tules e véus muito azuis, criando uma profusão de tecidos e cores.

Ela os recebe, se envolve neles e, sempre sorrindo, vai se afastando para o fundo do palco até sair de cena como quem volta definitivamente para sua morada. Enquanto isso as lavadeiras recolhem suas trouxas de roupas e misturam-se a eles e à própria história.” (110)

Na cena seguinte, o caipira encontra a morte e a convida para batizar seu filho. Ela lhe revela sua identidade e pergunta se ele mantém o convite. A resposta do caipira nos mostra um atributo da morte, o de ser mais justa do que o próprio Deus:

Caipira: Pére lá Qui eu tô aqui matutano cás cachola. Um minutinho, pur obséqui. Óia, se vassunê fosse Deus ieu num ia querê de jeito manêra, mode que prus rico ele dá tudinho e prus povre num dá nadica de nada. Agora se fosse o Dianho tamém não, porque ele atenta os inocente cóas ideia torta de fazê mar pros ôtro. E isso ieu num havia de querê mêmo! Mai em si tratano da Morte, acho que vassuncê é muito da justa mode que leva tudo pru mêmo logar: os que é bão e os que é ruim, os povre e os rico, os bunito e os feio.” (111)

Finda a cena, em que ambos travam o pacto que tornará o Caipira um eminente médico, é apresentado o segundo segmento do conto A menina enterrada viva. Aqui, às vistas da plateia, a madrasta joga a menina na cova.

Madrasta: Chegou a hora de eu me livrar de você para sempre. Acabar de vez com essa história. (TEMPO) Vá até o poço. Vamos, anda.
Aninha: O que a senhora vai fazer comigo?
Madrasta: Enterrá-la viva. Ainda não percebeu?
Aninha: Por que?
Madrasta: Prá não Ter que dividir o amor de meu marido com mais ninguém!
Aninha: A senhora não pode fazer isso comigo.
Madrasta: Você prefere que eu a empurre?

Aninha: Meu pai vai vir me salvar!
Madrasta: É o que veremos! Vou contar até três! UM!
Aninha: Não, por favor, senhora, não.
Madrasta: DOIS!
Aninha: Não, não…
Madrasta: TRÊS!

A madrasta vai indo até ela, empurra a menina e as luzes se apagam. No black-out ouve-se a menina gritando: Paizinhooooo!” (112)

A velha amorosa é o episódio seguinte. Nas anotações feitas por Capella no processo de construção do texto, encontrei a seguinte observação a respeito do conto:

A velha amorosa: Está no ciclo das facécias mas eu sinto a história de uma outra maneira.Não acho uma piada, embora para alguns possa parecer. Acho que é dramática. Acho a historinha triste e linda e deve resultar numa bela encenação.

A velha amorosa é colocada em cena pela voz de um grupo de pescadores. Um deles, Ramiro, inicia o conto, dizendo que o ouvira de seu avô. Uma rubrica indica que deverá entrar uma música leve e uma luz no centro do palco, de modo a dividi-lo em dois planos. Simultaneamente à narração de Ramiro, a história é encenada. Uma velha feia se apaixona por um dos estudantes de um grupo. Este, para fazer graça aos amigos, promete casar com ela, com a condição de que ela faça uma vigília, numa noite fria de junho, na porta da igreja. Ela concorda e acaba por morrer de frio e de fome, esperando o amado sob a chuva.

A cena se dá de modo a alternar as falas de Ramiro com as dos personagens da história que ele narra. A história da velha amorosa portanto, se insere em outra, a dos pescadores. Ambas, por sua vez, constituem uma trama paralela, relacionada à principal por sua temática (a morte).

Os pescadores que ouvem o relato de Ramiro, por vezes se imiscuem na história narrada e manifestam suas opiniões a respeito do que ocorre com as personagens do conto. Além disto, durante o tempo em que a velha aguarda seu amado na porta da igreja, Capella recomenda, através de rubrica, que dois atores contra-regras montem duas escadas de armar, (para simular a porta da igreja) e subam nelas, permanecendo durante o resto da cena jogando papeizinhos picados sobre a mulher, como se fosse uma chuva. O autor, ao explicitar a convenção, distancia momentaneamente a plateia da fábula, para em seguida reaproximá-la com emoção redobrada: no momento em que a velha morre, um dos pescadores penetra o espaço em que ocorreu a encenação do conto, se aproxima do corpo morto e constata:

Pescador 1: (levantando o rosto da velha e depois olhando para os amigos) – Está morta..” (113)

O corpo da velha é retirado pelos pescadores e pelos atores contra-regras, enquanto uma procissão atravessa o palco.

A morte da velha amorosa, portanto, é mostrada em cena através de um diálogo entre o épico e o dramático, no qual o novamente o segundo prevalece, na medida em que Capella subordina o narrador à ação narrada.

A cena está colocada no momento anterior em que o caipira é informado da grave doença de Cascudo e o salva, enganando a Morte. O Caipira toma conhecimento de que Cascudo é um homem sábio, que compartilha suas descobertas com o povo da região e conclui:

“…Um homem desses num deve morrê, uai. De jeito manera! Pruque prá quem nóis vai preguntá as coisa dispoi ?

Assim, pede à comadre Morte que o poupe. Ela não aceita e então ele a engana. O trato que tinham é que sempre que ela estivesse à cabeceira da cama de um moribundo este seria salvo. Ele então vira a cama e a Morte, que se encontrava a seus pés, fica na cabeceira. Furiosa, ela reconhece a esperteza do caipira e Cascudo é salvo. O caipira prediz que o pensador morrerá no mesmo dia que ele morrer. Capella assim faz confundir a morte do artista com a de sua obra.

O conto “A menina enterrada viva” é então retomado, com o pai salvando a vida de Aninha e decretando a morte da madrasta, que é mostrada no espaço diegético, através de seu discurso. O pai ordena que ela seja atirada aos peixes. Ela então sai carregada pelos camponeses, que gritam por justiça.

A morte do Caipira é anunciada por intermédio de um recurso metateatral. Ele e seu filho assistem um espetáculo de mamulengos, cuja fábula é o conto cumulativo A formiguinha e a neve. Os bonecos estavam sendo manipulados pela comadre Morte. A história termina mostrando a força da morte sobre o homem:

Boneco 1: Então a formiguinha foi ao hôme: Ô hôme, tu é tão forte e caça a onça que devora o cachorro que bate no gato que come o gato que rói a parede que pára o vento que encobre a nuvem que tapa o sol que derrete a neve que prende meu pezinho? E o hôme arrespondeu: Sô forte mas a morte me leva!

Dizendo isso o boneco desaparece. O outro boneco olha, olha e desaparece também como quem vai atrás do amigo enquanto se ouve ainda, por trás do pano, o boneco gritando:

Boneco 1: A morte me levaaaa!!!

Nisso o pano da empanada cai. E se descobre a Morte por trás dele. Ela veste os dois bonecos na mão, como se ela os estivesse manipulando.

Entra música, ou melhor, um som que provoca estranhamento.

Morte: Chegou a tua hora, meu compadre. Não te avisei que voltaria em breve para buscar-te ?” (114)

Entretanto, o caipira consegue enganar a morte por mais uma vez, pedindo-lhe permissão para rezar um pai-nosso que ele não logra terminar. Furiosa, ela se retira. O Caipira, algum tempo depois depara com um defunto em seu caminho. Reza-lhe um Pai Nosso. Era a Morte disfarçada, que finalmente o vence. Antes de fechar-lhe os olhos e cobri-lo com uma manta, ela lhe confessa que sua teimosia em viver fizera com que ela percebesse como é bonita a vida do homem.

À morte do caipira, segue-se a notícia da Morte de Câmara Cascudo, em off.

Morreu hoje, aos 87 anos de idade, na cidade de Natal, o professor Luis da Câmara Cascudo. A cidade se cobriu de luto, o Brasil sofreu uma perda que não se pode reparar e o mundo ficará sem o maior folclorista de todos os tempos.” (115)

Durante a narração, o corpo do caipira é retirado e o de Cascudo é trazido ao palco e recoberto com a bandeira brasileira. Terminada a narrativa, o leito é puxado para o fundo do teatro, como que desaparecendo. Surge um sol vermelho e os atores fazem-lhe uma oração:

Que seja linda tua viagem ao céu, como foram lindas as histórias que contaste na terra.

A morte, conforme pudemos observar, é um acontecimento constante no teatro de Vladimir Capella. Sua ocorrência adquire maior espaço nas peças mais recentes do autor. Se nos seus primeiros textos mortes foram mostradas de forma lúdica ou foram apenas sugeridas, a partir de Maria borralheira elas passam a aparecer de modo mais contundente. Nos últimos textos analisados vimos que a morte ganha estatuto de personagem, até se tornar protagonista, como ocorre em O Colecionador de Crepúsculos.

As diferentes maneiras pelas quais a morte é apresentada serão o tema do capítulo 4, no qual busquei agrupar os recortes efetuados, de acordo com sua posição no espaço dramatúrgico de cada peça.

Notas

(41) FROIDMONT, Hélinand. Os Versos da Morte. SP: Ateliê Editorial e Editora Imaginário, 1996, p.14.
(42) BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Vol. 2: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.207-208.
(43) Paris: Corti, 1985.
(44) FACHIN, Lídia. O espaço da narrativa no teatro. Araraquara: Revista Itinerários, número 12, 1998, p.105.
(45) Idem, p.108
(46) CAPELLA. Vladimir. Panos e Lendas. SP: Letras & Letras, 2001, p.34.
(47) idem. p. 6
(48) Idem, p.16.
(49) Idem, p.16.
(50) Idem, p.17-19.
(51) CAPELLA,Vladimir. Avoar. SP: Letras &Letras, p.6.
(52) Idem, p.9.
(53) Idem, p.10.
(54) Idem, p.15.
(55) Idem, p.24.
(56) Idem, p.30.
(57) Idem, p.34.
(58) CAPELLA, Vladimir. Como a Lua. Texto digitado, p.9.
(59) Idem, p.19-20.
(60) Idem, p.22.
(61) Idem, p.23.
(62) Idem p.24.
(63) Idem, p.28.
(64) Idem, p.10.
(65) Idem, p. 27.
(66) CAPELLA, Vladimir. Maria Borralheira. SP: Letras & Letras, 1999.
(67) Idem, p.5.
(68) FACHIN, Lidia. O espaço da narrativa no teatro, Revista Itinerários, número 12, 1998. Araraquara, p.104.
(69) CAPELLA, Vladimir. Maria Borralheira. SP: Letras & Letras, 1999, p.4.
(70) Idem, p.31
(71) BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. RJ: Paz e Terra, 1999, p.289.
(72) CAPELLA, Vladimir. O Dia de Alan.Texto digitado, p.15.
(73) Idem, p.15/16.
(74) Idem, p.21.
(75) CAPELLA, Vladimir. Piramo e Tisbe. Texto digitado, p.2.
(76) Idem, p.8.
(77) Idem, p.10.
(78) Idem, p.17.
(79) Idem, p.21.
(80) Idem, p.21-22.
(81) Idem, p.53.
(82) Idem, p.30.
(83) Idem, p.50.
(84) Idem, p.55.
(85) CAPELLA, Vladimir. O Saci. Texto digitado, p.23.
(86) Idem, p.13.
(87) CAPELLA, Vladimir. O Homem das Galochas. Texto digitado, p.3.
(88) Idem, p.5.
(89) Idem, p.24.
(90) Idem, p.28.
(91) Idem, p.25.
(92) CAPELLA, Vladimir. Clarão nas estrelas. SP: Letras & Letras, 2001, p.21-22.
(93) Idem, p.23.
(94) Idem, p.25.
(95) CAPELLA, Vladimir. Miranda. Texto digitado, p.6.
(96) Idem, p.29.
(97) Idem, p.34.
(98) Idem, p.48.
(99) CAPELLA, Vladimir. O Clone do Visconde. Texto digitado, p.3.
(100) Idem, p.19
(101) Idem, p.20.
(102) Idem, p.21.
(103) CAPELLA, Vladimir. O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. Texto digitado, p.29.
(104) BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Vol. 2: Magia e Técnica, Arte e Política. SP:
Brasiliense, 1994, p.201.
(105) CAPELLA, Vladimir. O Colecionador de Crepúsculos. Texto digitado, p.3.
(106) Idem, p.4.
(107) Idem, p.5.
(108) Idem, p.6.
(109) Idem, p.10.
(110) Idem, p.11.
(111) Idem, p.14.
(112) Idem, p.21.
(113) Idem, p.29.
(114) Idem, p.40.
(115) Idem, p.46.
(116) Idem, p.47.