Capítulo 2

2.1 – Pistas Férteis para Analisar a Dramaturgia Capelliana

Os textos de Vladimir Capella apresentam uma série de elementos recorrentes: música, brasilidade e questões sociais estão sempre presentes em suas peças, convivendo com certos signos que são também reiteradamente utilizados pelo autor: lua, barco, guarda-chuvas, archotes e fogueiras, aparecem ao lado de outros elementos da natureza tais como ventos, tempestades e outros, incluindo os corpos nus de muitos de seus protagonistas.

O espaço didascálico, a linguagem utilizada pelas personagens e o tratamento do tempo são outros aspectos a serem destacados em sua dramaturgia.

Cada um deles remete a outros caminhos de investigação, diversos do proposto por este trabalho. No entanto, ainda que em largos traços, deixo registrados alguns apontamentos sobre eles, com o intuito de indicar um extenso e rico material para futuras pesquisas a respeito de sua obra. Por outro lado, alguns dos itens aqui levantados fornecem importantes indicadores para alimentar a polêmica discussão sobre a especificidade do teatro para crianças, à qual procurarei acrescentar algumas contribuições.

2.2 – Musicalidade dos Textos e Presença da Música

Não há texto de Capella sem música. Se houvesse, o silêncio provavelmente seria o instrumento intencionalmente escolhido para a provocar a emoção da plateia. Além disso, a estrutura circular (ou espiralada) que se pode extrair da construção dramatúrgica da maior parte de seus textos, remete, por si só, à Música.

Sua utilização cumpre inúmeras funções dramatúrgicas: introduz ou sintetiza motivos do enredo, apresenta personagens, resolve conflitos, substitui o texto.

Avoar, por exemplo, apresenta toda a trama através de canções folclóricas. Os critérios pelos quais Capella as selecionou e ordenou permite que se identifiquem, sem dificuldade, apenas através das canções, o enredo, intriga e até mesmo as estruturas profundas do texto.

Com Panos e Lendas ocorre o mesmo, só que desta vez no interior de algumas das histórias que compõem o conjunto da peça.

Como a Lua utiliza a música para narrar os acontecimentos da história de Payá, que vão sendo simultaneamente encenados.

O jogo entre tons maiores e menores nas composições, a escolha de instrumentos e timbres apropriados para executá-las, dos solos ou da harmonização de vozes em coro para cantá-las são efetuados por Capella, que os aplica para criar diversos climas, contrapondo tristeza e alegria, coro e personagem, solos e polifonia.

Por exemplo, a melodia “Barco Azul”, de Antes de ir ao Baile, composta por ele, começa em tom maior (que expressa alegria) para os primeiros versos:

Pra quem nunca viué só um barco azul comum, mas pra mim não, é um barco meu.

E o tom se altera para menor (que expressa tristeza) no segundo verso, que diz:

mas um dia, eu sei, ele vai partir, virar navio e se perder no fim de um grande rio.

Há algumas indicações de rubrica em que determinada personagem canta uma canção sem acompanhamento algum, para provocar maior dramaticidade à cena, como por exemplo a Iara, em O Colecionador de Crepúsculos que, com profunda tristeza e muita saudade do mar, canta à capela:

Tenho saudade do tempo de outrora.
Saudade que fere e o peito deflora.

Tenho saudade de um tempo sem hora.
Saudade que mata e o peito devora.” (36)

Em Como a Lua a canção tema de Payá é cantada com voz e violão pelo coro. No momento em que ele se transforma em palhaço, Capella introduz a mesma canção em grandioso arranjo de orquestra.

No mesmo espetáculo, a canção “As flores do jardim de nossa casa”, de Roberto Carlos, é inserida momentos antes de Colom partir. Cesar irrompe em cena para anunciar o nascimento de seu irmãozinho. Ironicamente (como pede a rubrica) ele anuncia seu nome: Roberto Carlos. Ao som da triste e quase piegas canção, colocada em off interpretada pelo próprio cantor, prepara a plateia para, entre risos e lágrimas, assistir o drama de Payá ao descobrir que Colom se fora com outro. Diz a letra:

As flores do jardim de nossa casa, morreram todas de saudades de você…

De modo similar, em Filme Triste, a canção “Suave é a noite”, gravada por Moacir Franco, outro cantor emblemático de um romantismo açucarado, é colocada como fundo musical para o baile que celebra o esperado namoro entre Gaspar e Sulceneide. Diz a letra:
É tão calma a noite, a noite é de nós dois,
ninguém amou assim nem há de amar depois
Tudo tem suave encanto, quando a noite vem
A noite é só nossa, no mundo não há mais ninguém.

Simultaneamente, atravessa no fundo o palco uma procissão, representando a “Marcha com Deus e pela Família”, mostrando os últimos instantes de democracia antes do golpe de 1964.

Além da música propriamente dita, uma série de outros efeitos sonoros compõem seus espetáculos, como sons de pássaros, de chuva, de vento, e muitos outros, ora produzidos às vistas da platéia com apitos, instrumento de percussão, sinos e etc, ora por meio de gravação.

Efeitos sonoros, canções e trilhas somam-se ao texto, criando atmosferas que reforçam ou se contrapõem ao que está sendo dito.

A música, portanto, na dramaturgia de Vladimir muitas vezes equivale à palavra. O mesmo ocorre com os recursos visuais que utiliza. Seu teatro busca, antes de tudo, atingir a plateia por meio dos sentidos, que são, além de tudo, o mais adequado veículo de comunicação com a criança.

Ao longo do tempo o autor foi incorporando maestros e músicos profissionais que assumiram a direção musical dos espetáculos e mesmo a criação de algumas canções e trilhas. Destacam-se Marcos Arthur e Dyonisio Moreno, este último seu parceiro mais constante até o momento.

Finalmente, as dezenas de canções compostas por Vladimir para seus espetáculos têm a propriedade de, fora do contexto da peça, existirem por si mesmas, como belos poemas musicados.

2.3 – Brasilidade

A brasilidade tem forte presença nos espetáculos de Vladimir, não só apenas em relação às fontes das quais extrai o material para seus textos, como também pela utilização de vários símbolos de nossa cultura nas suas encenações.

Em Avoar, o verde e amarelo em tons pastéis foi a cor escolhida para os figurinos, na montagem dirigida pelo autor em 1985.

Panos e Lendas, ao mostrar o nascimento de Macunaíma, coloca em cena representantes dos vários estados brasileiros que, com seu sotaque e trajes típicos, vêem trazer cada qual um presente próprio de sua região ao “herói” brasileiro.

Em O Colecionador de Crepúsculos cada uma das histórias é interpretada com um sotaque particular, de acordo com a região brasileira que as originou. Por vezes sotaques diversos são misturados na mesma cena, como o “gauchês” e o “nordestinês” no conto da velha amorosa. Também neste espetáculo, aparece a bandeira brasileira cobrindo o corpo morto de Câmara Cascudo.

escolha da versão sergipana como a fonte para escrever o texto Maria Borralheira é outro ponto a ser destacado. Resultou uma nova personagem, definida por alguns críticos como a “Cinderela cabocla”, ou “Borralheira do sertão”, com características bem distintas da heroína do conto europeu. Maria Borralheira, assim como o Brasil, busca por sua identidade e luta para conquistar seu lugar no mundo.

A ênfase de Vladimir na escolha de contos e canções nostálgicas e nem sempre alegres talvez mostre um dos traços do caráter brasileiro.

2.4 – Questões Sociais e Políticas

O teatro de Vladimir Capella, apesar de não apresentar as características de um teatro político, ou de tese, aborda direta e indiretamente várias questões sociais. Uma leitura atenta de seus textos poderá revelar a forma pela qual o autor contesta o status quo e apresenta algumas propostas ideológicas para sua transformação.

Forneço aqui algumas pistas que podem comprovar a afirmação, sem pretender esgotar o assunto.

Personagens como Alan, Miranda, Borralheira e Maria (de Clarão nas Estrelas) e o pequeno Hans remetem às crianças em situação de exclusão. É através da transgressão que eles fazem predominar seus objetivos e tornam-se capazes de criar uma nova ordem. E também através do trabalho: Alan constrói o seu boneco, Miranda tece uma rede de pirilampos, Borralheira e Maria fazem todo o serviço da casa. Nenhum deles parte de fórmulas mágicas ou pré estabelecidas para realizarem seus projetos, mas os realizam, sobretudo por meio da intuição e da criatividade, simbolizadas pelo boneco de Alan, a vaquinha de Borralheira, o cavalo de Miranda e o pêndulo de Maria.

Por outro lado, Léo (o antagonista de Alan), as irmãs de Borralheira e as cinco filhas da rainha de Clarão nas Estrelas caracterizam a condição existencial do jovem burguês contemporâneo, cujo objetivo primeiro é vencer a qualquer preço.

O poder também está focalizado em diversas personagens, como as rainhas de Miranda e Clarão nas Estrelas.

Em O Dia de Alan a opressão está corporificada por uma autoritária professora. Talvez não por acaso, a disciplina que ela leciona é o Inglês.

Imagens, assim como Maria Borralheira, salienta a hipocrisia da classe dominante, mostrando-a de forma crítica, através de figuras estáticas e sem alma.

Em Miranda o coro assume o papel do povo de um reino que exige a volta da legitimidade, roubada pela ganância da rainha. Em muitos momentos da trama ele se torna o sujeito das situações dramáticas, conduzindo a história a seu favor.

Pedrinho e o Saci podem ser vistos como dois jovens de distintas classes sociais, convivendo com suas diferentes visões de mundo, numa mesma aventura, transformando-se mutuamente. A mesma transformação é operada entre Léo e Alan.

2.5 – Os Corpos Nus

Um outro elemento comum em vários textos do autor é a ocorrência de cenas de nudez.

Desde 1980, em que Como a Lua mostrava a bela Colom, interpretada por Mariana Suzá, de seios nus durante todo o espetáculo, o procedimento é reiterado pelo autor/diretor.

Maria Borralheira aparece nua nos banhos de cachoeira em que seduz Bernardo. A cena foi criada por Capella, mostrando o momento em que a heroína e o príncipe descobrem o amor. A opção por mostrá-la nua, segundo o próprio autor, traduz sua preocupação em ser fiel às raízes do conto que, segundo Bettelheim, tem a sexualidade como um dos temas centrais.

Do mesmo modo, Iara de O Saci, fascina Pedrinho com seu canto e sua nudez.

Rosa, de Filme Triste, na versão revista em 2000, também deverá ser mostrada nua, no momento em que se entrega a Humberto. A cena assim construída, entre outros significados, tornará claras as diferenças entre a protagonista e as demais personagens da história, cujos romances obedeciam às convenções da época retratada.

Os cavalos de Maria Borralheira e os de Miranda igualmente são colocados em cena seminus.

A própria Miranda, como vimos, despe-se diante do rei para mostrar a condição de mulher que ela escondia sob suas vestes de homem, para então talvez trazê-lo de volta à realidade e curar sua loucura.

Os corpos mortos de Píramo e Tisbe são desnudados pelo coro que os coloca abraçados sobre um praticável.

Alan se despe diante da professora de inglês, mostrando-se por inteiro e dizendo-lhe todas as suas verdades, conquistando assim o respeito e a amizade dos colegas.

A nudez nas peças de Capella cumpre funções intimamente relacionadas com os temas que aborda, como o amor, o desejo, o despertar da sexualidade e a morte.

As encenações por ele realizadas denotam um cuidado em conferir a estas cenas uma elevada beleza plástica. Os cavalos de Maria Borralheira , na montagem de 1987 e de Miranda, na montagem de 2003 eram interpretados por jovens e belos atores. A nudez de Miranda, no mesmo espetáculo ocorria em uma cena realizada com uma luz bastante velada, acompanhada de uma música suave, executada ao vivo com cello e violino.

A cena da nudez de Alan é relatada pelo próprio Capella, referindo-se à encenação dirigida por ele em 1988:

Criei uma luz adequada para a cena e coloquei o ator numa posição estratégica que não dava pra ninguém ver nada. Era, e só poderia ser, uma cena muito delicada. Mas acho também que, talvez por causa disso, durante nossa curta temporada nunca fizemos apresentações para escolas. Esse foi o preço da minha opção.” (V.C.)

Mais do que uma ousadia, o radicalismo de Capella responde com arte e beleza aos apelos sexuais que marcam a mídia contemporânea e a erotização precoce a que a criança está submetida.

Mostra que o corpo não deve ser visto como um mero veículo para aparentar padrões estéticos que lhe são externos, mas como um meio de auto-descoberta. Através do corpo torna-se possível conhecer a dor e realizar o amor.

A nudez, tal como a concebe Capella é, o que Patrice Pavis descreve como “a caixa de ressonância da visualização da vida e da morte, do gozo e do prazer.” (37)

Resta dizer, para que fique aqui registrado, que a cena de nudez de Miranda impediu que a peça pudesse, em 2003, estrear no teatro previsto, por determinação do diretor da escola que o administra. Capella não se submeteu a cortar ou modificar a cena tal como a concebera, por considerá-la essencial ao que desejava comunicar à plateia.

A proibição interrompeu bruscamente o compromisso, firmado pela escola, de oferecer seu espaço para uma temporada estável do espetáculo. Sem contar com qualquer outro patrocínio, Miranda esteve em cartaz por curtíssimo período em uma unidade do SESC SP.

2.6 – O Espaço das Rubricas

Um outro fator da escrita dramatúrgica de Vladimir que chama a atenção é o conteúdo de suas rubricas. As indicações cênicas que efetua tornam difícil a distinção entre o dramaturgo e o encenador. Ao longo de sua obra, as rubricas foram ganhando cada vez maior espaço.

No início, a intenção de Capella era tornar “inteligíveis” os textos que escrevia, os quais sem qualquer indicação, resultavam de difícil entendimento para outros grupos, que muitas vezes por não terem a oportunidade de assistir as montagens originais do diretor, frustravam seu desejo de montá-las. Assim, reescreveu seus primeiros textos, acrescentando-lhes as rubricas.

Com o tempo, elas passaram a integrar o texto antes de sua montagem. Suas peças mais recentes contam com rubricas bastante extensas, que não só antecipam uma possível direção do espetáculo, como, em alguns momentos, chegam a se aproximar da literatura.

Em Clarão nas Estrelas, por exemplo, pode-se ler:

…o importante é que o anjo esteja, nessa travessia pelo palco, envolto numa indescritível luz.” (38)

Um outro exemplo está em O Colecionador de Crepúsculos:

Entra em cena a velha amorosa, toda caprichada no vestir, cheirando a pó de arroz, sombrinha aberta. E, toda prosa, caminha como jovenzinha passeando no parque.” (39)

Um texto exemplar para ser objeto de um estudo dessa natureza é Imagens, o roteiro para um teatro sem palavras, que se constitui em uma grande rubrica.

Estas constatações remetem aos diversos temas que a dramaturgia contemporânea tem despertado, principalmente sobre a relação entre texto e cena.

Claudia de Arruda Campos, em seu citado livro sobre Maria Clara Machado, aborda a questão trazendo-a para o campo específico do teatro infantil:

Uma irresolvida discussão, que nos vem do século XIX, opondo posições que restrigem o teatro ao texto e aquelas que o confinam ao domínio da encenação, resolve-se, no teatro infantil, pelas próprias exigências da prática, diante dos materiais com que trabalha e a especificidade do público.

Este é um teatro sem pretensões literárias, no sentido que ‘literário’ assume na velha polêmica. É um teatro que busca, assumidamente o caminho dos sentidos, por todas as vias que se lhe oferecem. E, nessa consideração, não é um ‘teatro-texto’, mas incluindo no seu arsenal os recursos da palavra, um ‘teatro-espetáculo’, o que, entre outras coisas, quer dizer que a leitura da peça infantil precisa, necessariamente, dar grande peso às rubricas, e mais, ir além das rubricas, brincando um pouco com as possibilidades cênicas do recurso.” (40)

Por outro lado, Capella parece reconhecer o caráter literário de suas rubricas:

Eu escrevo tudo o que eu estou vendo para que o leitor consiga uma conexão, a mais completa possível, com a história que eu estou contando. Ou, ainda com a idéia do que eu pretendo passar.

Gostaria que o leitor pudesse ‘ver’ o que ele está lendo. Pudesse sentir a sensação bucólica de uma cena, ou dramática de uma outra, tão somente através da leitura. Conseguisse ouvir a música do que ele está lendo.

Acho que as rubricas fazem parte intrínseca do texto. Pertencem a ele. Acho até que, não raras vezes, a própria poesia que o texto deve conter está explicitada na rubrica. Sem ela ele ficaria manco, faltando um pedaço. Às vezes até sem alma.” (V.C.)

E prossegue, fornecendo pistas sobre sua própria concepção sobre a dicotomia texto x cena:

…isso que eu falei não é uma imposição, nem pode ser, não vejo assim. Acho que se alguém quiser montar o texto vai sabê-lo fazer, até mesmo de outra maneira, porque o compreendeu muito bem. Inclusive com todas as suas sensações. Pode até, se quiser, negá-lo.” (V.C.)

2.7 – As Epígrafes

As epígrafes são também um importante componente didascálico para a compreensão da obra de Capella. Com raras exceções o autor as coloca em seus textos, ora com falas que serão ditas por algum personagem, ora com depoimentos pessoais. Esta prática foi utilizada desde o seu primeiro texto.

As epígrafes de Capella introduzem o leitor às respectivas fábulas que serão apresentadas. Suas peças podem ser lidas como um desdobramento da idéia nelas contida. Por exemplo, a epígrafe de Clarão nas Estrelas diz:

Houve uma vez, num país muito distante, um belo príncipe que fora enfeitiçado. E só o amor e a coragem de uma jovem donzela poderia desencantá-lo.

O Dia de Alan traz a seguinte epígrafe:

Em algum lugar do universo deve haver um lugar que seja só meu. Um canto qualquer do planeta onde eu caiba inteirinho do jeito que sou. Eu e meu mundo de afetos. De qualquer maneira sei que há!

Com exceção das epígrafes de Antes de ir ao Baile, na qual Capella cita um poema de Gonçalves DiasNo segredo da larva delicada a borboleta mora, antes que veja a luz, que estenda as asas que surja fora” e a de O Saci, em que cita uma trecho do livro de Monteiro Lobato, as demais epígrafes são frases ou poemas criados por Capella, por vezes com teor autobiográfico, como veremos no capítulo 3.

Vladimir, ao digitá-las, escolhe diferentes fontes de ortografia, de forma que algumas epígrafes aparecem como se tivessem sido manuscritas, outras em “caixa alta”, outras ainda em negrito, de modo a conferir-lhes uma característica visual particular, de acordo com seu conteúdo, destacando-as do texto propriamente dito.

O estudo da relação entre as epígrafes e o texto teatral revela o caráter narrativo de sua dramaturgia, que aliás, como vimos, sempre torna presente a figura do narrador, outra constante na dramaturgia capelliana.

No início o narrador aparecia como personagem coletivo, através dos atores/contadores de histórias, que ao longo do tempo se transformaram em gente do povo, como camponeses, lavadeiras, pescadores e outros. Por vezes, o narrador é colocado por meio de uma voz gravada. Em outras, pela própria música. Algumas das funções desempenhadas pela figura do narrador em cada um dos espetáculos são discutidas nos capítulos 1 e 3 desta dissertação.

2.8 – Linguagem Coloquial × Linguagem Formal

As personagens de Capella usam diferentes níveis de linguagens para se expressar. Há caipiras, cariocas, nordestinos, gaúchos, americanos e outros estrangeiros. Há personagens que falam línguas inexistentes.

Entretanto, em muitas ocasiões o autor utiliza a norma culta, colocada na segunda pessoa. Assim procede quando trabalha sobre os contos de fadas. O uso da linguagem formal nestes casos, tem a função de situar a história em um tempo distante.

Em outros textos, como Píramo e Tisbe, o recurso parece ser exigência da própria fábula, por seu caráter trágico. O objetivo é, igualmente, localizá-la em um plano diverso do cotidiano da platéia.

Note-se que em Capella, o uso da norma culta é praticado sem nenhuma pretensão didática ou rebuscamento de estilo. Ao contrário, dela resulta uma maior aproximação da platéia com a história que assiste, permitindo que as mais cruéis e trágicas cenas possam ser assimiladas pelas crianças sem tensões ou temores, pois elas não estão ocorrendo “aqui” mas no mundo do “era uma vez”.

As grandes tragédias e as grandes questões humanas são assim mostradas à crianças como um conto de fadas, ou, no dizer de Bettelheim, como “uma dádiva de amor”.

É curioso perceber que Capella vem resgatar aos ouvidos infantis a mesma linguagem que os afastava da literatura anterior a Lobato e o faz com a mesma afetividade que levou o Mestre a romper com ela.

Com estes recursos linguísticos, Capella também proporciona ao público adulto o prazer de estar ouvindo toda a diversidade de sons e construções que o idioma pode apresentar.

Em O Colecionador de Crepúsculos, a Morte igualmente usa a norma culta. Desta vez a escolha provavelmente se deve não só ao fato de se tratar de uma alegoria, como para lhe imprimir ares de antipatia, contrapondo-a ao simpático caipira.

Um breve e elucidativo diálogo entre ambos mostra como Vladimir, com muito humor, presta uma homenagem à linguagem oral, talvez a única com o poder de enganar a morte:

Morte: Está bem. Por ora venceste, meu compadre! Mas isso não vai ficar assim. Não se engana a morte mais de uma vez. Escreve o que estou te dizendo! Escreve!

Caipira: Ieu num sei escrivinhá…

2.9 – Tratamento do Tempo

Desejo destacar ainda o tratamento conferido o tempo e ao espaço em seus espetáculos.

A já mencionada circularidade de grande parte de suas tramas, é colocada quase sempre em espaços indefinidos e atemporais.

A única exceção é Filme Triste, que localiza a fábula no tempo e no espaço.

Os demais espetáculos remetem a um tempo mítico, que às vezes convive com o tempo “presente”, como ocorre com Como a Lua. Em outras ocasiões, como em Avoar o autor parte do presente e retoma o passado, não um passado de um tempo historicamente determinado, mas o que remete às mais longínquas raízes da cultura brasileira, para a seguir, trazê-lo novamente à atualidade.

De todos os textos estudados, apenas O Dia de Alan se passa no presente e obedece a uma estrutura estritamente linear.

Nos demais o tempo é tratado de forma descontínua. Até mesmo alguns de seus contos de fadas, a linearidade é quebrada. Em Maria Borralheira, há um flash back possibilitando no mesmo espaço do velório da mãe, um diálogo desta com Borralheira.

Em Clarão nas Estrelas, o “clímax” é antecipado à plateia no início da peça.

Em outros espetáculos, há uma construção episódica, em que cada pequena fábula é colocada de forma fragmentada, mas sempre com um fio condutor, que unifica e dá sentido um sentido a todos os episódios apresentados.

Cada uma das observações efetuadas neste capítulo procura indicar, ainda que de forma incompleta, uma determinada poética, que longe de se constituir em um conjunto de regras a serem seguidas, podem trazer novos conteúdos para a discussão sobre especificidade do teatro para crianças.

É o que tentarei demonstrar mais adiante, nas considerações finais desta dissertação.

Notas

(36) CAPELLA. Vladimir. O Colecionador de Crepúsculos. Texto digitado, p.10.
(37) PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. SP: Perspectiva, 1999, p. 263.
(38) Op.cit. p.44.
(39) CAPELLA, Vladimir. O Colecionador de Crepúsculos.Texto digitado, p.23.
(40) Op.cit. p.20.