Apresentação

Já leste um poeta que, com o poder das palavras te tocasse bem fundo o coração?

Tomo de empréstimo uma das falas de O Homem das Galochas, de Vladimir Capella, para mostrar as razões (e sentimentos) que me levaram a realizar este trabalho.

O desejo é que a obra do autor/diretor Vladimir Capella possa ser apresentada ao mundo acadêmico da mesma forma como o foi às plateias que nos últimos 25 anos assistiram aos seus espetáculos: tocando-lhes bem fundo o coração. A pretensão é que, por esse caminho, o teatro infantil brasileiro venha a ser incluído no repertório daqueles que têm o teatro como objeto de suas pesquisas e reflexões.

Se a missão é árdua, não deixa de ser prazerosa: o mergulho no universo de Vladimir Capella, suas histórias, personagens, canções e poemas, nos leva a um encontro profundo com as grandes questões humanas de um modo único e abrangente. Único pela particular sensibilidade poética com que as aborda. Abrangente por dizê-las a todos os que puderem ouvir, sejam adultos ou crianças.

Suas peças redimensionaram a história do teatro infantil brasileiro, não só pelos temas nelas tratados, como também pelo elevado apuro estético com que os coloca em cena. Vladimir traz à tona conflitos como as paixões, a sexualidade, a dor, a velhice, os medos, o poder, a arte, o amor, a vida e a morte, consciente de que o público a que destina seus espetáculos se compõe também por crianças. Para permitir-lhes a fruição estética e o deleite, faz uso de um recurso que lhe é muito próprio: a poesia.

Conheci Vladimir em 1980, quando estava escrevendo Como a Lua, cuja montagem se seguiu à de Panos e Lendas. Conversávamos sempre sobre o processo de criação do texto, que ele não acreditava conseguir terminar. Na época eu já trabalhava em teatro há mais de 5 anos e cursava Mestrado em Ciências Sociais, na PUC-SP. Valorizava sobremaneira a vida acadêmica, que para mim era a principal fonte do saber. Para minha surpresa, Vladimir interrompera os estudos no secundário. Não tinha qualquer conhecimento formal sobre teatro ou dramaturgia.

A estréia de Como a Lua mostrou que nascia um dramaturgo de qualidades surpreendentes. O que poderia parecer um fenômeno isolado, resultou numa obra composta por mais de quinze textos, todos de inegável valor artístico, cujo reconhecimento, circunscrito a premiações da crítica especializada, ainda não corresponde à sua real importância para a história do teatro brasileiro.

Assistir Como a Lua foi para mim uma experiência de múltiplas faces. Por que eu chorava tanto? Pela história de amor quase mítica, com a qual era impossível não se identificar? Pela forma simples como era contada? Pela música triste e tocante? Por ver temas como o amor, a morte e as perdas serem abordados sem nenhuma concessão? Por perceber a qual é a dor que se esconde sob a máscara do palhaço?

Sem dúvida, por todas essas razões.

Pouco tempo depois, pude me integrar a alguns de seus elencos subsequentes: atuei em Filme Triste (1984), Avoar (1985) e Antes de Ir ao Baile (1986). Ao lado disso, passei a me envolver com a problemática do teatro infantil, cujas discussões eram encabeçadas pela Associação Paulista de Teatro para a Infância e Juventude.

Hoje, passados mais de vinte anos, tenho a alegria de estar produzindo uma dissertação sobre a obra de Vladimir. E com ela mostrar que apesar das dificuldades cada vez maiores para se fazer um teatro infantil de qualidade, seu trabalho resiste, cresce, evolui e a duras penas é sistematicamente colocado no palco.

Vladimir Capella nasceu em São Caetano do Sul, onde vive até hoje.

Aspectos de sua biografia são relatados por ele mesmo, na publicação de Maria Borralheira pela editora Letras e Letras em 1999:

Não conheci nada de Monteiro Lobato quando era pequeno; ao contrário de muita gente que hoje tem minha idade e profissão.

Minha literatura foram as biografias de santos. São Sebastião, Nossa Senhora de Fátima, Santa Izildinha… lia tudo que era vida de santo. Lia, relia e ia juntando-as numa velha escrivaninha, com a satisfação de quem guarda um precioso tesouro.

Não sei se eram bons livros, nem se eram indicados pros meus 12 anos; lembro apenas que minha mãe os comprava numa igreja da Penha. (Ah! como era longe a Penha – disso eu me lembro direitinho.)

Atraído pelos desenhos das capas, eu mesmo os escolhia. Uma atração fatal: instantânea, indescritível! Tão bom, só as noites de inverno no antigo Parque Shangai ou as inesquecíveis matinês no cine Vitória.

Eram sempre histórias muito tristes e talvez por isso mesmo é que eu gostava tanto. Achava bonito aquele sofrimento todo, aquela dor pungente… Tinham grandiosidade e beleza. Não sei dizer exatamente porquê, mas ainda hoje tenho uma declarada predileção pelos dramas.

Escrevia novelas também. Novelas mesmo, com muitas personagens, tramas e capítulos. Capítulos e mais capítulos escritos à mão, em cadernos de brochura encapados de espuma ou papel laminado, com o título aplicado em alto relevo. Tudo caprichado e lindo, eu achava.

Depois, com todo o orgulho que cabia na minha pouca idade, eu interpretava os dramalhões que escrevia para minha irmã e minha prima, que por muito tempo foram minhas únicas e fiéis ouvintes.

Um dia, quando ainda muito pequeno, me lembro, quis ser padre; queria e pronto! Depois mudei: queria ser desenhista; depois, artista; e um pouco mais tarde, cantor. Mudava assim de uma coisa pra outra com tanta convicção que impressionava qualquer adulto. Apesar de uma indisfarçável timidez, acho que fui uma criança que parecia saber muito bem o que queria; e quando não queria mais também.

Minha mãe, muito atenta no papel de cúmplice silenciosa, buscou de todos os modos incentivar minhas várias descobertas. Incansavelmente.

E me proporcionou uma infância repleta de fantasia, sonhos e todo tipo de contato com as Artes. Aulas de canto, dança, violão, sapateado e acordeom. Teatrinho de marionetes no fundo do quintal, programas de rádio, televisão…de tudo pude experimentar um pouco.

Até que, aos 16, adolescente então, resolvi parar de vez com tudo. Decisão repentina, de estalo, que provocou um espanto gera: quero ser igual a todos na escola, disse. E parei. Atitude típica da idade.

Alguns anos, não muitos depois, porém, voltei a fazer música e através da música descobri o Teatro. E aí foi definitivo, encontro que deu certo, não larguei mais.

O Teatro me surgiu assim como uma grande caixa de surpresas onde vi que tudo podia acontecer. Um jogo emocionante de luz e sombra, idéias, criação, palavras, gestos, dança, plástica, música… combinações sem fim para explicar a vida. A mais nobre manifestação humana. A mais infinita de todas as possibilidades.” (01)

Debruçar-me sobre a obra de Vladimir Capella para dela extrair um aspecto a ser focalizado por esta dissertação, foi algo bastante complexo. Que recorte poderia mostrar a essência de sua obra e ao mesmo tempo satisfazer minha necessidade de mostrá-la por inteiro?

Optei por trabalhar sobre o tema da morte, presente em todas as suas peças. Uma questão fundamental em nossas vidas e em nossas inquietações, sejamos adultos ou crianças.

Um segundo recorte foi efetuado, por sugestão de minha orientadora, estudar a dramaturgia de Vladimir Capella e deixar suas respectivas encenações para eventuais referências.

Devo dizer que o material pesquisado me levou a um sem número de descobertas imprevistas. Algumas delas pude formular sob a forma de apontamentos e sugestões para futuros estudos, que certamente resultariam em múltiplas outras dissertações de mestrado.

Resigno-me então, a convidá-los a conhecer alguns aspectos da dramaturgia capelliana, que exponho a seguir.

Para orientar a leitura, apresento a lista dos textos teatrais de Vladimir Capella que integraram o universo de minha pesquisa, bem como as referências bibliográficas dos que já estão publicados. Esclareço que a leitura de Como a Lua foi efetuada com um texto digitado e não com o publicado em Belo Horizonte.

1 – Panos e Lendas (SP: Letras & Letras, 2001).
2 – Avoar (SP: Letras & Letras, 2001).
3 – Como a Lua (BH: Hamdan, 1997).
4 – Filme Triste.
5 – Antes de Ir ao Baile.
6 – Maria Borralheira (SP: Letras & Letras, 1999).
7 – O Dia de Alan.
8 – Píramo e Tisbe.
9 – O Saci.
10 – O Homem das Galochas.
11 – Clarão nas Estrelas (SP: Letras & Letras, 2001).
12 – Imagens.
13 – Miranda.
14 – O Clone do Visconde.
15 – O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá.
16 – O Colecionador de Crepúsculos.

A obra de Capella conta ainda com um pequeno romance infanto-juvenil: Fim que Vira Começo que Vira, publicado em 1988 pela editora Acadêmica. Escreveu também dois textos para teatro de bonecos: Do outro Lado e Sonhos, aos quais não tive acesso. O texto Forrobodó, cujo espetáculo foi encenado por Vladimir em 1980, não foi aqui analisado, por se tratar de uma criação coletiva do Grupo Pasárgada.

Como músico, compôs diversas canções, algumas gravadas por cantores profissionais.

Todas as montagens dos textos aqui mencionados foram dirigidas por ele.

Atualmente, Vladimir está escrevendo um livro sobre sua trajetória como autor e diretor. O título provável será Conversas de Algumas Horas e Muitos Anos. Trechos destes escritos foram por mim citados neste trabalho e assinalados como provenientes de “V.C.”.

A presente dissertação se compõe de quatro capítulos:

O primeiro, “Trajetória Dramatúrgica”, indica as fontes e influências da dramaturgia capelliana e procura mostrar quais as contribuições de sua obra para a história do teatro infantil brasileiro.

No segundo capítulo: “Pistas férteis para analisar a dramaturgia capelliana”, descrevo alguns elementos da obra do autor que julguei importante destacar, com o intuito de sugerir alguns caminhos para estudos futuros.

O terceiro capítulo, “A presença da morte em cada uma das peças”, expõe os resultados obtidos pela pesquisa. A identificação e a análise das ocorrências de morte são apresentadas em cada texto, segundo sua ordem cronológica.

O último capítulo, “Mortes no espaço diegético x mortes no espaço mimético” procura agrupar os recortes efetuados e revelar algumas das opções estéticas de Vladimir Capella.

Notas

(01) CAPELLA, Vladimir. Maria Borralheira. SP: Letras & Letras, 1999, p.47.