Crítica publicada no Jornal do Brasil
por Carlos Augusto Nazareth – Rio de Janeiro – 18.07.2004
Este bobo da corte não é bobo
O Duende e a Moça Rainha se vale de um interessante equilíbrio no uso de linguagens
O Duende e a Moça Rainha é uma adaptação do conto Rumpelstiltskin, recolhido pelos Irmãos Grimm. Volta à cena, no Teatro Ziembinsky, depois de ter sido indicado, em 2003, para o Prêmio Maria Clara Machado, nas categorias de melhor texto, para Fátima Café, e melhor ator, para Ricardo Romão.
Um moleiro diz ao rei que sua filha é capaz de fiar palha de modo a transformá-la em ouro. O rei a chama e diz que matará o pai dela, caso ela não consiga realizar o feito. Surge então um duende que lhe oferece ajuda em troca de pequenos agrados. Mas pede mais: se conseguir fazer com que ela se case com o rei, quer seu primogênito como presente. Ela se casa e o recém-nascido acaba sendo realmente levado pelo duende, que diz que só o devolverá se a rainha adivinhar o seu estranho nome. O bobo da corte descobre o verdadeiro nome do duende: Rumpelstiltskin. Assim, o duende perde sua força mágica, desaparece e a moça rainha fica livre.
É mais uma peça que busca reunir técnicas teatrais e técnicas não teatrais num só espetáculo, em que a presença do contar é bastante forte. Bonecos, de diversos tipos, têm importância fundamental na concepção: são criativos e manipulados com destreza. Experiências desse tipo têm sido inúmeras, nem sempre bem-sucedidas – não é o caso de O Duende e a Moça Rainha, que caminha bem nesta trilha de descobertas.
Nos espetáculos para esse tipo de experimentação, muitas vezes o foco é a narração e as diversas linguagens teatrais servem ao contador. Outras vezes, como neste caso, o foco é a cena teatral, mas sem deixar de lado o tom narrativo, que mantém o clima do reconto popular.
A concepção de Fátima Café consegue o equilíbrio destas linguagens diversas e introduz, especialmente bem, a figura do bobo da corte. Este funciona como narrador, e contando a história e interferindo na narrativa. Quando esta ganha vida própria e escapa a seu controle, interage com a plateia, numa costura eficiente que lembra a figura e função do personagem Mateus, presente em diversas manifestações populares. Em nenhum momento se confundem cena e narração cênica. Ambas se complementam.
O público é convidado de forma delicada a presenciar a história que se conta e a participar da encenação, de forma alternada, num todo harmônico. Esta interação se faz naturalmente sem necessidade de se utilizar o duvidoso recurso de excitar a plateia.
Contribui decisivamente para o resultado positivo, a excelente adaptação de Fátima Café – clara, estruturada, fiel à história, que introduz os elementos necessários para transformar a fábula em um espetáculo teatral.
A proposta é muito criativa, seja na execução dos bonecos, seja nos figurinos e mesmo na ambientação cênica. A tão necessária unidade de materiais utilizados em cenário – adereços e figurinos – acontece de modo harmônico criando uma linguagem plástica adequada para um conto popular.
A música de Carlos Café, que abre e encerra o espetáculo, também remete ao universo popular, tocada e cantada ao vivo. E por ser agradável e de boa qualidade, nos ressentimos até de uma presença mais significativa de música no espetáculo.
A luz de Renato Machado é precisa e pontua bem a peça. Alguns climas poderiam ser mais acentuados, alguns efeitos mais explorados, mas a iluminação é bastante eficiente no geral.
Ana Carvalho, que faz a moça rainha, se desincumbe bem de sua personagem. Sérgio Miguel Braga (ator substituto) monta um bobo da corte com bastante sutileza, humor e presença cênica. Ricardo Romão, enfim, faz jus à indicação que teve para o prêmio de melhor ator, numa composição especialmente acertada para o seu duende, que é a figura central do espetáculo.
Falta ao elenco acreditar que tem em mãos um excelente espetáculo e imprimir uma maior energia em cena. Falta conquistar o público em suas cadeiras e contagiá-lo com o espetáculo, o que é possível. Pois há uma boa história, uma concepção inteligente, uma montagem criativa, uma direção segura e uma simples e bela composição plástica, que agrada claramente ao público infantil.