Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Ana Maria Machado – Rio de Janeiro – 27.10.1978

Barra 

Entre A Fada e O Dragão

Desde sua primeira montagem no início dos anos 60 no Teatro de Arena da Guanabara, O Dragão e A Fada de Nélson Lins e Barros se revelou uma instigante proposta de desmitificação de estereótipos e revisão de clichês. Num país de tão pobre dramaturgia infantil como o nosso, é espantoso que a amnésia cultural tenha deixado esse texto tanto tempo adormecido. Mas Carlos Lyra, parceiro de Nélson desde a primeira versão, ao resolver agora remontar a peça, cercou-se de todos os cuidados merecidos e o resultado é compensador.

Evidentemente, os tempos são outros e o sentido político da proposta inicial teria que sofrer retoques que atenuassem seu tom panfletário – embora se tenha carregado a mão de tal maneira nessa atenuação que a plateia acaba votando pelo súbito perdão à fada, o que provavelmente arrepiaria Nélson. Mas o espetáculo está bem produzido, bem montado, com bom ritmo e bom elenco – e isso é importantíssimo, denotando respeito ao texto e à plateia.

As músicas de Carlos Lyra são realmente maravilhosas, com a força do que é belo de verdade, mostrando a falta que ele anda nos fazendo como compositor e dando vontade de rever uma boa montagem de Pobre Menina Rica ao alcance de um público infanto-juvenil. No elenco, impossível não destacar o desempenho dos que fazem os três meninos, Cacá Silveira, Alice Viveiros e Pratinha. Quanto a Lígia Diniz, embora seja sempre uma magnífica presença em cena, se vê grandemente prejudicada pela linha equívoca que a direção imprime a seus personagens através de sua definição e dos figurinos. Um feliz habitante daquela floresta cuja força está no trabalho, que gera a igualdade de todos, jamais poderia ser a pantera cor-de-rosa dos desenhos animados que marcam o colonialismo cultural agindo sobre nossas crianças. Ou será que o diretor não soube ler a peça e perceber que a floresta é o anti colonialismo? E uma fada em que todos confiam e acreditam até que desenvolvem uma visão crítica em relação a seus conselhos não poderia, logo de saída, vir marcada por uma roupa que evoca uma bruxa. É uma questão elementar de lógica: a negação de uma negação é uma afirmação. A desmitificação da fada protetora e conselheira perde todo o sentido se já no ponto de partida ela se parece com o contrário de uma fada tradicional. Como se houvesse implícito o conselho: desconfiem das fadas que não parecem fadas. Fica-se na dúvida se a interpretação dada ao texto pela direção não entendeu seu significado ou se entendeu tão bem que teve medo. E isso é uma pena porque, teatralmente, o espetáculo é excelente e merece ser recomendado.