Os atores nos seus verdadeiros papeis

Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 28.10.1978

 

Barra

O dragão tem razão; a fada não tem, não 

Com O Dragão e a Fada, Carlos Lyra e Nelson Lins e Barros mostram que o aspecto exterior pode enganar muitas vezes; e revelam que certas verdades definitivas nem sempre são tão definitivas assim. Ao desmistificar a maldade absoluta do dragão e a bondade eterna da fada, os autores tentam tirar as crianças das garras do maniqueísmo mentiroso; e encostam na parede os pais acostumados a educar pelo medo. Além disso, a peça busca a transformação do que está errado através de uma ação consciente e coletiva e não através de um simples toque de varinha de condão. O dragão afirma que “sozinho não dá para transformar nada, mas se estivermos unidos poderemos modificar as coisas”. Esse aspecto positivo do texto, entretanto, é bastante prejudicado pela sua estrutura dramática frágil e que se baseia ainda na figura ultrapassada do narrador. Além do mais, ao dar tempo para os atores trocarem de roupa, cria-se um intervalo arbitrário e o narrador fica num papo furado, com a plateia que acaba sendo absolutamente inútil.

A minha história particular com esse espetáculo tem que ser contada através da doença. Quando eu me preparava para ver a peça recebi um telefonema pedindo para ir apenas na semana seguinte porque uma das atrizes ficara doente. Para que o espetáculo não parasse foram feitas substituições de última hora que deram que deram um resultado menos significativo. A atriz voltou. Fiquei eu doente. Recuperado, fui ver a peça. Uma atriz pegou rubéola e sua ausência determinara que cinco atores fizessem papéis que não os seus. É evidente que não há ritmo e nem clima num espetáculo que resista a uma mexida dessas. Assim, vi uma encenação muito descosida e frouxa chocha, bem para baixo; mas, ao mesmo tempo, tenho consciência de que não assisti o verdadeiro O Dragão e a Fada; tanto a direção de Carlos Lyra, como a atuação do elenco não podem ser analisadas, honestamente, a partir de uma apresentação com tanta troca entre atores e personagens. As músicas bonitas de Carlinhos Lyra foram cantadas com tal falta de expressão que quase não foram percebidas. Isso tudo, espero, deixará de existir quando a rubéola devolver a atriz doente (parece que hoje o elenco já se recompõe).

Algumas observações, entretanto podem ser feitas: apesar da existência de uma árvore com uma frondosa copa verde o tom visual é muito morto, muito triste, bem mais próximo a um Esperando Godot do que a uma peça para crianças: a bonita apresentação da ficha técnica através dos slides na parede é feita tão apressadamente pelo operador que a plateia não consegue o tempo necessário para curtir os desenhos; perde-se muito texto quando alguns atores falam ao microfone. Deixo para o fim a observação que me parece a mais importante: no final da peça os atores perguntam às crianças da plateia se elas aceitam que o dedo-duro arrependido brinque junto às demais crianças da peça. No dia em que fui ver o público infantil quase que unanimemente vetou a anistia ao dedo-duro. Foi feita uma votação e o ator forjou o resultado transformando, de repente, a minoria em maioria. Pena que uma peça que proponha uma ação consciente e coletiva acabe frustrando a manifestação espontânea do público infantil.