Crítica publicada no Jornal Correio da Manhã
(2 col x 48,5 cm)
Por Paschoal Carlos Magno – Rio de Janeiro – 19.10.1948
O Casaco Encantado, para crianças, é um dos mais belos espetáculos de 1948
A revelação de Jacy Campos e Dary Reis
Sentei-me na primeira fila na madrugada de domingo último para a “avant-première” de O Casaco Encantado da Sra. Lucia Benedetti.
Voltei domingo, às dez da manhã acompanhado de sobrinhos verdadeiros e postiços para de novo me encantar com esse delicioso trabalho em três atos, que dá a Sra. Lucia Benedetti em menos de vinte e quatro horas uma consagração como autora teatral, sonhada por tantos numa vida inteira.
Se Casaco Encantado tivesse acontecido em Londres, a estas horas o retrato, o nome e os dados biográficos da Sra. Benedetti estariam enchendo colunas na primeira página de jornais. Quando é que nossa imprensa copiará esse bom exemplo dando aos que triunfam no teatro ou em qualquer expressão de inteligência e cultura um espaço que os criminosos o recebem tão generosamente?
No mesmo instante em Sra. Lúcia Benedetti triunfava no gênero mais difícil da literatura que é de compreender as crianças e escrever para elas, um crime monstruoso dava-se na Tijuca. Os assassinos ganharam imediatamente primeira página dos vespertinos de ontem e certamente estarão enchendo colunas e colunas de todos matutinos durante dias enquanto pouco se falara do nascimento desse importante fato para todos que olham o teatro como um fator de educação das massas: o teatro de adultos para crianças inaugurado pelos “Artistas Unidos”, o qual nos revela completa, sem uma falha sequer, total na entrega da sua emoção e de sua história um autor que começa por onde os outros acabam: a Sra. Lucia Benedetti.
Se a plateia de marmanjos na madrugada de domingo, não regateou aplausos á história fabulosa que lhe era contada, através de um e texto onde não há uma só palavra a mais onde a coisas misteriosas acontecem como se fossem de verdade – o público que superlotou o Ginástico na manhã de domingo na sua maioria de menina e meninos, não só aplaudia como participava da representação, vivendo os alfaiates que amarravam a megera e faziam dormir o bruxo; saudavam com palmas a aproximação da princesa que trazia a liberdade dos inocentes.
Nunca mais me esquecerei daquelas, centenas de garotos que nos intervalos, e depois do espetáculo se, aproximavam, da “Avozinha” (Sra. Maria Castro) e “Relógio” (Sr. Nilson Penna) para pedir-lhes autógrafos fazer-lhes perguntas, tocar-lhes as roupas e olhá-los de perto. Nunca mais me esquecerei do menino que indagava a Sra. Morineau da voz que era fiaposinho de beleza: – Mas a senhora é mesmo mulher do bruxo?
“De outro que, a passagem da Sra. Nieta Junqueira (Pajem) no final da peça distribuindo balas, tocou-lhe a malha e disse a seu companheiro de cadeira tão pequenino quanto ele: – Mas não é pajem não. É uma mulher”.
A peça da Sra. Lucia Benedetti dá a adultos e crianças o feérico sem luxos de encenação ou excessos de personagens e comparsaria. Tem simplesmente quatorze personagens dos quais três – “os Pajens” e “o Manequim” – são puramente decorativos, dois como “A avozinha”, e “Relógio” intervêm pouco e servem de ponte para conduzir a história e seus heróis ao público.
Os demais – os dois alfaiates, o bruxo e sua mulher, o rei, sua filha e seu ministro, movimentando-se dentro de uma atmosfera que tangencia a irrealidade devido não só a presença do feiticeiro como do personagem mais importante, que dá o título da peça, que é, O Casaco Encantado. Com tais elementos, os reais e os abstratos apoderando-se da poesia que escorre das palavras que a Princesa pronuncia, da angústia que se fragmenta em choro da mulher do Bruxo, que é uma Feiticeira fracassada (lindo assunto para uma peça de maior fôlego, agora para gente crescida somente), da humanidade dos alfaiates com seus sentimentos de alegria, pavor, vingança e ingenuidade do Rei, com sua vaidade ofendida porque lhe estragaram um casaco. O Sr. Graça Mello provou que nele não há somente virtudes, de um ator de qualidade, mas de um diretor também. Por obra de sua direção, os acontecimentos se desenvolvem num ritmo que não dá margem a cansaço e mantém a plateia num interesse crescente. Soube discriminar o que merecia sê-lo por sua natureza concreta ou subjetiva.
E com luz, ruído – bela música do maestro Massarani, buzinar de automóvel, rumor de passos de gente que não se vê – conseguiu criar o mistério da presença do mundo mágico do bruxo, especialmente a caverna deste, povoada de bichos que, segundo de sua mulher, foram moças faladeiras e rapazes simpáticos.
Muito o ajudou a obter essa atmosfera, o novo cenógrafo Sr. Nilson Penna. Seu cenário do segundo ato, particularmente aquela árvore esgalhada que mais parece uma imensa mão de longos dedos, faz prever para esse estreante um lugar importante entre nossos cenógrafos.
O Sr. Nilson Penna responsável também pelos figurinos, móveis, adereços, merece grande parte das palmas que O casaco Encantado obteve. Elogiados o diretor e o cenógrafo, que dizer da Sra. Henriette Morineau: esplendidamente caracterizada como a “Mulher do Bruxo”, que surge com sua cabeleira cor de fogo, montada no seu cabo de vassoura que voa. As crianças a amaram imediatamente. A trágica admirável de Medeia está também, diante dos homens de todas as idades, soprando os cabelos vermelhos que lhe caem sobre a testa e tampam-lhe os olhos, torcendo as mãos de unhas sujas, ou fungando o nariz, sobre o qual há uma verruga que é uma pequena bola de vidro preto, com um lenço vermelho de ramagens.
O Sr. Graça Mello, como “Bruxo’ impressionou. A Sra. Flora May é a “Princesa”, aparece bonita, de voz e gestos suaves. O pequenino e inquieto Sebastião Lacerda – filho de Carlos Lacerda – que se sentava à minha esquerda, não se conteve, ao vê-la dirigindo-se ao alfaiate José (Dary Reis) – Princesa é assim, não é? O Sr. Orlando Guy pouco tem a fazer como “Manequim” e Primeiro Ministro. Mas o faz bem. As Sras. Lucilia Perrone e Nieta Junqueira, como pajens, solucionaram a falta de “massas” com suas presenças decorativas.
Há graça dignidade dada pela doçura e pelos anos na “Avozinha” da Sra. Maria Castro. O Sr. Nilson Penna como “Relógio” executa passos de dança e toda vez que aparece às crianças batem palmas e sorriem felizes. O Sr. Fregolente, como o alfaiate João que se transforma em “Sapo” revela-se um esplendido ator cômico, cheio de recursos vocais e de gestos.
Mas o espetáculo me trouxe duas surpresas: as dos Srs. Dary Reis e Jacy Campos. O primeiro cuja carreira acompanho desde que surgiu no elenco de “Os Artistas Unidos”, demonstra também qualidades raras de comicidades. O alfaiate José da Sra. Lúcia Benedetti deveria ser assim mesmo: livre de movimentos, cara infantil, passando do riso para o choro facilmente. A Sra. Morineau devia quanto antes descobrir uma peça em que pudesse usá-lo como galã cômico, de que anda tão precisado nosso teatro.
Em dois anos foi a primeira vez que o vi realmente à vontade, como se não tivesse seguindo as marcações do Sr. Graça Mello, mas as de seus próprios impulsos.
Quanto ao Sr. Jacy Campos, que levei para o “Teatro do Estudante” nunca acreditei que houvesse nele interprete capaz de envelhecer a voz e o andar, de seu papel em todas as suas minúcias, como se pode testemunhar no “Rei” que ora nos apresenta em O Casaco Encantado. Sabia-o inteligente e culto, com um curso de Arte Fotográfica na América, mas obcecado simplesmente pela ideia de voltar ao estrangeiro e dedicar-se ao cinema, como diretor. Ingressou no “Teatro do Estudante” com um só objetivo: estudar direção de teatro. Aceitou mais tarde um pequeno papel em, A Castro do qual se saiu muito bem. A Sra. Henriette Morineau lhe ofereceu um contrato. Apareceu mediocremente em Medéia, melhorou sensivelmente no “espanhol” de Uma Rua Chamada Pecado. Ganhou mais comando de cena e de voz em Só nós três. E agora em O Casaco Encantado, como composição de tipo, capacidade de mudar a voz e o andar de tal maneira a se tornar irreconhecível mesmo a seus amigos, o Sr. Jacy Campos bem merece os louvores que os espectadores fariam ao seu trabalho, alguns dos quais com autoridade dos Srs. João Villaret e R. Magalhães Júnior.
Há os que me acusam de ser exagerado com os moços, como se não o fosse também com os que chegaram antes deles, quando exibem trabalho, estudo a propósito artístico. Mas como só os indiferentes merecem censura, por que não transbordar de alegria diante de moços que se revelam com tanto talento?
Mais uma vez me dirijo a Sra. Henriette Morineau para dizer-lhe “muito obrigado”. Em nome de todos os que, como eu, se batem pelo teatro como fator educacional pelos que vivem há anos pregando a necessidade de se dar a nossa criança espetáculos bonitos, sadios, com atores adultos. Obrigado também porque me ouviu a voz quando lhe levei o original da Sra. Lucia Benedetti, que lhe tornou possível tornar uma realidade, meu permanente sonho de se criar o teatro que inaugurou.
P.S. “Os Artistas Unidos” repetirão no Ginástico O Casaco Encantado na 5ª feira as 14 e às 16 horas em duas matinées.