Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Hélio Silva – Rio de Janeiro – 21.10.1948
O Casaco Encantado
Hoje, à tarde, no pequeno salão do Teatro Ginástico, a maior atriz que pisa nossos palcos, a frente do mais brilhante elenco que representa em nossos teatros, vai repetir o prodígio a que assisti na manhã de domingo, apresentando as crianças da cidade uma jóia de literatura.
Desejaria convidar todos os meus leitores que tem crianças a irem ver as duas vesperais hoje. O que Henriette Morineau e seus companheiros realizam é algo que nunca se fez. E a peça de Lúcia Benedetti consagraria, em qualquer pais civilizado, o nome ilustre de sua autora.
Imagine, na manhã de domingo uma multidão de crianças de três a dez anos, acompanhando duas horas a fio um espetáculo teatral, cujos intervalos valiam por outros tantos atos.
Porque nos Intervalos a figura doce de uma avozinha – a Sra.Maria Castro – continuava em cena, e nem seus “netinhos” deixavam que ela saísse. Continuava em cena, no canto do palco, ao lado da mesinha onde se, arrumavam à cesta de costura e as meias para cerzir. E tão real, tão vovozinha, que as crianças iam todas á ela, perguntavam o que sucederia na história que ouviam, pediam-lhe a benção e beijavam-lhe a mão tremente de emoção, que se erguia depois pelos ares, fazendo o sinal da cruz.
A história é uma história de fadas e de bruxas, mas tecida com tanta felicidade que não ouvi um grito de susto, nem uma expressão de medo. A bruxa – a admirável bruxa que Henriette Morineau incorporou á teoria de suas grandes interpretações – bruxa de cabelos vermelhos e roupas em farrapos, de nariz grande com uma verruga enorme e um buraco por onde o ar expirado levantava os cabelos postiços, era uma pobre bruxa fracassada e seu fracasso era o fracasso da maldade, a incapacidade do mal em face da bondade de uma princesa linda, vivida por uma atriz patrícia que nesse elenco revelou uma de nossas Interpretes mais ricas de plasticidade, mais cheias de sensibilidade, mais capazes de encarnar sinceramente desde o tipo banal da companheira do operário de Uma Rua Chamada Pecado, até a mulher do coro corintio, que salmodeia a tragédia de Medeia.
Pois esta peça que é uma grande, traçada em um gênero dificílimo, capaz de interessar as crianças e comover os homens e as mulheres, representada por um grupo de artistas dentre os quais qualquer destaque é arriscado, desde Nilson Penna (o Relógio), que representa pela mímica e pelos passos de dança, até Dary Reis, que fala o tempo todo como um menino bom e tonto, corajoso e tímido passando rápido da tristeza para a alegria – como aquelas crianças todas que o aplaudiam – é um acontecimento.
Mostra o que é possível fazer de bom, em teatro Infantil, com elementos que apenas precisam ser mobilizados.
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Um outro nome, já agora ligado indissoluvelmente ao movimento de renovação teatral, que ameaça os lamentáveis “donos” de plateias que não estudam, não progridem, e fazem do teatro apenas um meio de ganhar dinheiro, deturpando, cada noite, mais e mais, o gosto da plateia a que só apresentam banalidades, imoralidades e mediocridades, esse valoroso Paschoal Carlos Magno, a quem se deve o Teatro do Estudante e tantos outros empreendimentos, fez um curioso e oportuno comentário na critica de O Casaco Encantado.
“Se O Casaco Encantado tivesse acontecido em Londres, a estas horas o retrato, o nome e os dados biográficos da Sra. Benedetti estariam enchendo colunas na primeira página de jornais. Quando é que nossa imprensa copiará esse bom exemplo, dando aos que triunfam no teatro ou em qualquer expressão de inteligência e cultura um espaço que só os criminosos o recebem tão generosamente? No mesmo instante em que a Sra. Lucia Benedetti triunfava no gênero mais difícil da literatura, que é de compreender as crianças e escrever para elas, um crime monstruoso dava-se na Tijuca. Os assassinos ganharam imediatamente a primeira página dos vespertinos de ontem e, certamente, estarão enchendo colunas e colunas de todos os matutinos durante dias, enquanto pouco se falará do nascimento desse importante fato para todos os que olham o teatro como um fator de educação das massas: o teatro de adultos para crianças, inaugurado pelos “Artistas ‘Unidos”, o qual nos revela, completa, sem uma falha sequer, total na entrega da sua emoção e de sua história, um autor que começa por onde os outros acabam: a Sra. Lucia Benedetti.”
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Criminosos de hoje… Foram às crianças abandonadas de ontem, aqueles que se vingam de uma sociedade que não cuidou delas não as educou, não as sarou de seus males, não favoreceu o desenvolvimento de seus espíritos dando-lhes exemplo e diversão, porque é com o brinquedo que se educa a criança.
O que vemos, ainda hoje, é, sobretudo, uma obra de fachada, mais um aspecto da polimorfa filantropia com que uma sociedade egoísta procura esconder a injustiça social com o “donativo” e o desamparo com “previdência”. Não se cuida de elevar o povo e nem mesmo de educar as crianças das camadas que se intitulam “elites”. O que a criança aprende, desde cedo, é um materialismo brutal, destruindo o Papai Noel, mas cultuando o Superman, descrendo de Deus, mas adorando o Dinheiro, menosprezando a Moral, mas respeitando as Conveniências…
A recuperação do homem e a salvação da Criança, para nós católicos, só serão possíveis dentro daqueles ensinamentos eternos que os Santos Padres repetem insistentemente. “A origem e o fim essencial da vida social – lembrava Pio XII em uma véspera de Natal – têm de ser a conservação, o aperfeiçoamento da pessoa humana, ajudou-a a atuar retamente as normas e os valores da religião e da cultura, assinalados pelo Criador a cada homem e a toda humanidade, quer no seu conjunto, quer nas suas naturais ramificações. Uma doutrina ou construção social que negue essa interna e essencial conexão com Deus, de tudo que se refere ao homem ou prescinda dele, segue caminho errado”.
Pois bem, é o contraste entre o que devia ser feito – como, por exemplo, dar as crianças verdadeiros espetáculos infantis – e o que se faz, exaltando a brutalidade, sob todas as formas, inclusive na consagração de criminosos, que assim emergem do anonimato exaltando as vaidades de seus antigos companheiros, para os quais a vida, a honra, a moral não tem grande valia – que serve de medida ao descalabro do nosso tempo.
A peça de Lucia Benedetti devia ser vista por toda gente. Aquele casaco encantado, que uma vez vestido, põe seu portador aos pulos sem ter mais sossego, é a imagem dos vícios de nossa época. Acumulamos miséria física e moral. Materialismo e egoísmo. Desprezamos o pobre e o atiramos ao comunismo. Escandalizamos os jovens e deixamos que a mocidade se perverta.
Encareceremos o custo de vida e permitimos que as crianças andem famintas, não bebam leite, não comam pão, não tenham frutas. Nem se divirtam, porque não há divertimentos senão para os ricos.
E depois que vestimos o casaco que encantamos – ficamos encantados, porque estamos pulando…
Tão assustados com a alta dos preços que esquecemos o mercado negro e os nomes dos nossos conhecidos que enriqueceram nestes últimos tempos de miséria geral.