Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Ricardo Schöpke – Rio de Janeiro – 01.05.2010
O palco é de Fígaro
Leandro Castilho brilha na pele do protagonista
O cinema é a arte do diretor a televisão, dos efeitos técnicos, e o teatro, a arte do ator. Ainda que todos os elementos no palco precisem se harmonizar – direção, cenografia, iluminação, entre muitos outros – o ator é o responsável em ser o elo de ligação entre o espetáculo e a plateia. A sua verdade e fé cênica é o que nos faz acreditar na possibilidade da recriação do real. E assim, em O Barbeiro de Ervilha, o ator Leandro Castilho, na pele do protagonista Fígaro, consegue com paixão e grande empenho nos levar a passear por todo este mundo onírico. Castilho nos arrebata desde o primeiro instante em que entra em cena, e rege com maestria toda a bonita encenação. Seja como ator, músico ou maestro, Castilho tem uma performance arrebatadora. Desde já um forte candidato a indicação ao Prêmio Zilka Salaberry de Melhor Ator.
Livremente inspirado na ópera Il Barbiere di Sevilha, de Gioachino Rossini, o espetáculo, em cartaz no teatro do Jockey, é um projeto acalentado por seus realizadores desde o ano de 2001. Logo na entrada do teatro, o público é levado pela cor local do espetáculo. Com algumas árias de ópera executadas ao fundo, toda a parafernália cênica de uma suposta trupe mambembe é apresentada. A carroça desbrava os horizontes até chegar a Ervilha – uma cidadezinha fictícia do sertão nordestino. Pode-se ver espalhados pela caixa cênica todos os elementos que estão disponíveis para a apresentação de mais uma “récita”: uma enorme carroça comporta, janelas, toldo e uma cobertura-varanda-balcão, manequins, figurinos, perucas, baús, adereços, cadeira de barbeiro, biombos, luzinhas coloridas penduradas.
Amor proibido
Fígaro – que além de barbeiro é sanfoneiro, enfermeiro, jardineiro e, nas horas vagas, ainda atua como veterinário, farmacêutico, cirurgião – entrega bilhetes de casais enamorados com sigilo e discrição e o que mais for preciso, de maneira honesta, para ganhar o seu pão. Andarilho, sempre à procura de um novo trabalho, acaba salvando a história de amor do Conde Almaviva com Maria Flor. Um amor proibido, pois Maria Flor será obrigada a casar-se com o seu tutor, Doutor Bartolo, médico velho e avarento, cujo único interesse recai sobre a herança da moça. Servindo o conde com habilidade, o barbeiro acaba conseguindo acobertar e unir os enamorados, bem debaixo do nariz de Bartolo, fazendo triunfar a ideia de que “o amor é a mais valiosa das moedas”.
O espetáculo é aberto com um número musical de impacto, liderado por Castilho na sanfona. Os atores tocam e cantam uma homenagem ao fazer teatral – um mundo de sonhos, fantasias. No prólogo, a trupe é apresentada, com as suas virtudes no canto e no manuseio dos instrumentos musicais: sanfona, triângulo, bumbo, rebeca, viola e flauta transversa. Desde o primeiro instante, o que se estabelece cenicamente é uma viagem por uma atmosfera onírica operístico-popular. Vemos todos os ingredientes de uma ópera dialogando com inteligência,simplicidade e sofisticação melódica com o teatro mambembe popular. É uma verdadeira simbiose entre a comédia dell’arte e as tradições brasileiras. Farsas, pantomimas,bufonarias,mentiras, malandragens e brejeirices. Tudo isso regido pela excelente direção de Daniel Herz, e contando com a firme batuta musical de Leandro Castilho e a preparação vocal de Zé Rescala.
A cenografia destaca uma carroça com os objetos de uma trupe mambembe
Castilho cria uma partitura de ritmos entre o canto, a fala e os princípios da música clássica; a embocadura e os prolongamentos das vogais da ópera. Alcançando excelente efeito para a montagem, que em nenhum momento pretende ser a adaptação fidedigna do gênero, e sendo este o grande a certo de Herz. Um dos momentos mais marcantes é quando os músicos executam uma ária e os instrumentos são acrescentados um a um.
Glauco Bernardi cria na cenografia uma praça e onde fica exposta a parafernália necessária para uma apresentação teatral. A plateia tem o privilégio em assistir a transformação de cada um dos personagens, apenas pelo acréscimo dos figurinos e adereços de Heloísa Frederico, todos dispostos em manequins e um símbolo imortalizado em filme e baús. Apesar de ser um elemento muito comum nas trupes mambembes, e um símbolo imortalizado em filmes como A Viagem do Capitão Tomado, de Ettore Scola – a carroça consegue nos apresentar surpresas, como a abertura de seu teto, que se transforma em um balcone, e suas laterais em um santuário. O trabalho de corpo de Márcia Rubin é preciso e bem executado pela trupe de andarilhos. A luz com ares artesanais e atmosfera difusa também é um acerto de Paulo César Medeiros.
Além do destaque Leandro Castilho, todo o elenco tem atuação destacada: Vanessa Dantas (Maria Flor), Leonardo Bastos (Bocó, Quebra Queixo e Seu Delegado), Julia Gorman (Di Mola e Rocambole), Marcio Fonseca (Comida de Onça e Seu Juiz), Marcel Octávio (João do Bode), Flávio Pardal (Conde Almaviva), Gláucio Gomes (doutor Bartolo) e Alice Caymmi (Santinha do Mandacaru).