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Reorganizando minha biblioteca, reencontrei uma revista francesa (1) de há muitos anos, contendo vários artigos sobre “jogo, teatro, crianças”. Que mudou, de lá para cá, nesse campo? Tratava-se, na ocasião (e hoje?…) de uma luta dos criadores de teatro para a infância e para a juventude em favor de um teatro de qualidade. Eles propunham que se tivesse ainda mais cuidado ao realizar esse tipo de espetáculo (quanto ao jogo dos atores, à cenografia, à iluminação, à música, à sonoplastia, etc.) do que o dispensado aos espetáculos para adultos, e que se superasse um teatro moralizador e infantilizante.

Como as reivindicações e observações contidas nesse artigo, embora afastadas no tempo (vinte e cinco anos bem vividos por tantos batalhadores da área), parecem ainda hoje presentes, válidas, não seria desprovido de sentido apresentar aqui, para subsídio à reflexão, uma lista de intenções e de preocupações de tipo predominantemente pedagógico que sem ser exaustiva, dá conta de certas tendências e características de espetáculos para a infância e a juventude:

1. Transmitir conhecimentos de modo mais agradável que no ensino tradicional ( por exemplo, brincar com trocadilhos que possam constituir uma lição atraente no campo da linguagem);

2. Convidar as crianças – espectadoras para participar do jogo dramático (o dispositivo cênico seria então concebido para ser deixado à disposição das crianças depois do espetáculo);

3. Suscitar um jogo de expressão mais livre, mais espontâneo (“eles vão poder falar, escrever, desenhar, pintar… depois da representação”);

4. Informar as crianças sobre certos aspectos da sociedade em que vivem;

5. Afirmar certo humanismo, celebrar aqueles e aquelas que cometeram atos progressistas no passado (por exemplo: o voto de um militante a favor da abolição do tráfico de escravos);

6. Denunciar situações contemporâneas consideradas injustas (por exemplo: o preconceito racista contra os estrangeiros);

7. Propor às crianças, geralmente através de fábulas ou de transposições simbólicas, uma explicação da sociedade em que vivem, e incitá-las a desejar uma outra;

8. Provocar as crianças a reagir quando à condição de obediência, de submissão imposta a elas pelos adultos, e particularmente pelos pais, educadores ou professores.

Assim, temas sociais não seriam excluídos: racismo, guerra, injustiça social, luta de classes, relações com a autoridade. Nem tampouco os existenciais: separação, morte, solidão… Por aí se verificaria uma vontade mais ou menos acentuada, mais ou menos consciente, de passar às crianças certo número de mensagens. Este desejo determinaria um tipo de relação com a criança que pode vir a ser mais pedagógico do que artístico.

O problema, porém, não consistiria em saber se podemos dizer tudo às crianças, ou se temos o direito de fazê-lo. Por um lado, ao contrário, tratar-se-ia de constatar que as mensagens difundidas nem sempre são recebidas ou percebidas segundo a significação prevista por quem os criadores pretendiam sublinhar a ação negativa de ministros corruptos e exaltar os camponeses, as crianças lamentaram a condenação à morte dos “vilões” e ficaram indiferentes ao destino dos oprimidos, em total contrassenso com as intenções do autor. Noutro espetáculo, a cor azul deveria representar a severidade dos uniformes dos militares e policiais, mas as crianças perceberam o azul como uma cor agradável, relacionando-a com o céu e o mar. Por outro lado, tratar-se-ia de perceber que as contradições são por vezes muito grandes entre as preocupações de tipo ideológico dos autores, criadores, encenadores de teatro para crianças e os esquemas veiculados pelas peças. Assim, embora recusem o repertório tradicional dos contos para crianças, alguns criadores não hesitam em apelar para uma solução mágica no intuito de resolver uma situação conflituosa (em O Planeta Azul, de Jean-Claude Giraudon e Bruno Castan, “a vida volta ao planeta cinza” e com as cores “pintaremos tudo o que amamos”) Ou então, querendo remeter as crianças para uma imagem mais justa da sociedade, muitos criadores apresentam imagens da realidade mistificadas deformadas: em dezenove peças analisadas por Elizabeth Chapuis e Fulvia Rozemberg, 23% das personagens são artistas (músicos, atores, sobretudo clowns), e muitas vezes são essas personagens que solucionam a situação ou pelo menos contribuem para a solução do conflito.

Outro aspecto digno de menção ao constatar a presença pedagógica no teatro para crianças é o vínculo de muitos criadores para a infância e a juventude com o ensino. Alguns foram ou continuam a ser professores. Ás vezes o fato de não romper o “cordão umbilical” com a escola e as relações que ela desenvolve com as crianças corresponde menos a um desejo dos criadores do que à necessidade econômica que os leva a se dirigir ao público escolar.

Assim, o teatro se torna um instrumento pedagógico a serviço do desejo de transmitir um saber, um a convicção, uma ideologia – o que, muitas vezes com a melhor das intenções, se transforma em imposição, em opressão. Na prática, isso pode se manifestar pela utilização de uma transposição simbólica ou supostamente simbólica: o mundo do circo e os clowns!, a Commedia dell’Arte, os animais (o pássaro como símbolo de independência, de liberdade, de insolência), as cores, etc.

Seria possível realizar um teatro para crianças que não as deixasse em posição de dependência quanto ao saber e à experiência dos adultos criadores? (Essa relação é muito próxima da relação professor/aluno, educador/educando.)

Seria possível um teatro que deixasse os jovens espectadores terem autonomia, para que pudessem não só compreender o que está acontecendo em cena – ainda que com níveis de leitura diferentes, mas também para que conseguissem apreciar os elementos constitutivos do trabalho dos adultos que apresentam o espetáculo? (3)

Segundo o autor do artigo citado, para alcançar tal objetivo, várias condições precisariam ser observadas. A primeira consistiria em que os adultos reconhecessem efetivamente as diferenças que os separam das crianças enquanto espectadores. Algumas condições já são conhecidas e respeitadas: duração dos espetáculos em função das idades, homogeneidade da faixa etária do público, número de espectadores (relação quantitativa entre palco e plateia) em função dos espetáculos…

Mas a especificidade do público infantil se limitaria a isso?

Levantemos outros problemas: seria necessária a identificação das crianças com certas personagens apresentadas no espaço de representação? As crianças – espectadoras podem dominar os fenômenos de distanciamento?

No final do artigo, o autor dá um exemplo que lhe parece uma tentativa de diálogo igualitário entre o adulto e a criança, na relação criador/espectador: Uma menina chamada Jane sai à procura do tio, que mora na cidade. Durante a viagem, descobre e vive alguns momentos da vida quotidiana dos citadinos: a rua muito movimentada, o metrô, uma família diante da televisão, etc. Na última cena, Jane olha operários que trabalham num canteiro de obras. A diretora (Catherine Dasté) situa nesse local uma paralisação do trabalho. Tal fato pode ser percebido de maneiras muito diferentes pelas crianças (fim da jornada de trabalho? Greve?), segundo o interesse que tiverem para com esse momento do espetáculo, segundo sua experiência familiar, segundo o seu grau de maturidade social. O final é aberto e permanece como tal, não por uma falta de solução da encenadora, mas para propiciar um debate entre os adultos e as crianças baseado não só na apreensão intelectual, mas respeitando os níveis de percepção infantil. Para Catherine Dasté, “um teatro desalienante pode ser concebido no plano das ideias, mas também no das formas, quer dizer desenvolvendo uma acuidade sensorial que a criança perdeu” (Colóquio de Avignon, Julho de 1973).

Estatísticas recentes atestam que o “horário nobre” da televisão americana mostra cinco atos de violência por hora. Com isso, ao chegar aos dezoito anos, um ser humano já terá visto, no cinema e na televisão, quarenta mil cenas de assassinato. A situação brasileira não seria diferente. Leonard Eron, psicólogo da Universidade de Michigan que estuda há quarenta anos os efeitos da violência dramatizada no quotidiano de crianças e adolescentes, afirma que a exposição permanente a cenas violentas é responsável por 10% dos crimes cometidos nos Estados Unidos da América. Não é ser alarmista alertar para o embrutecimento proposto (e muitas vezes obtido), “lá e cá”, pelo cinema, pela televisão, pelos videogames e pelos chamados meios de comunicação social (mídia).

Diante dessas afirmações, desenvolver uma acuidade sensorial é, portanto, uma necessidade presente a cada instante da vida de todos nós.

Os criadores e os interessados no teatro para a infância e a juventude verão aí um motivo suplementar para lutar, nessa relação e nesse ofício, pela seriedade de propósitos e pela qualidade dos resultados.

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Notas
(1) LEFÉVRE, Gerard. “Rapport pédagogique ou égalitaire? “ (Relação pedagógica ou de igualdade?) Travail théâtre (Trabalho teatral). Lausanne La Cite, avril-juin. 1974. N15.p 3-10
(2) Cabe aqui citar um estudo realizado por pesquisadores no Instituto de Psicologia de Paris. Abordando questões como o que é o teatro para crianças, quais as características específicas das companhias que se dedicam a ele (implantação geográfica, atividades culturais, repertório), qual o público do teatro para crianças (idade, meio sócio/econômico, condições de recrutamento), esta pesquisa encomendada pelo Ministério da Cultura se tornou uma obra de referência sobre a situação do teatro para crianças na França. V. ALPHANDRY, Héléne GRATIOTROSEMBERG, Fulvia, CHAPUIS, Élisabeth. Le Théatre pour enfants (O Teatro para Crianças). Número especial da revista Enfance (Infância). Paris, 1973, 276p- V. Ainda, de Jean-Marie BOISVERT,”Réactions des enfants à une pièce de théâtre: élaboration d’une méthode de recherche” (Reações das crianças a uma peça de teatro: elaboração de um método de Pesquisa). Canadian Journal of Behavioural Science  / Revue Canadienne des Sciences du Comportement (Revista Canadense das Ciências do Comportamento) Vol.10, jan. 1978. P. 46-59. – Consultar também a excelente análise de Maria Lúcia de Souza B. PUPO. No Reino da Desigualdade: Teatro Infantil em São Paulo nos Anos Setenta.São Paulo: FAPESP/Perspectiva, 1991. 159 p., e a monografia de especialização de Maria Aparecida de SOUZA, orientada por Walmor Beltrame e disponível na biblioteca do Centro de Artes da UDESC.
(3) Lembremos também que em geral a criança não tem liberdade (que tem o adulto) de escolher o espetáculo que vai assistir, nem de sair da sala de um espetáculo que não goste

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José Ronaldo Faleiro
Professor no Centro de Artes da UDESC, Santa Catarina.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 3º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (1999)