Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 1981

Barra

Como é a caricatura de uma rosa?

Qual a graça de se tirar pombos de uma cartola se não há mais ninguém olhando? Talvez essa pergunta tenha vindo à cabeça de quem, assistindo a Eu te Amo de Arnaldo Jabor, reparou numa cena em que, mesmo depois de a mulher já ter ido embora, Paulo (personagem interpretado por Pereio) ainda dizer coisas que ela não escuta mais e jogar, de repente, em direção à câmara uma cartola de onde saem voando três pombos. E assim o espectador se vê obrigado a perceber que a magia do filme é para ele e para ninguém mais. Não importa que a mulher já não veja a mágica, ela era dirigida a outros olhares. Só nós, que assistimos ao filme, vemos a cartola e os pombos. É o espectador quem dá sentido à mágica. Se ele não estiver olhando, aí sim é que a performance não funciona.

Poucos espetáculos infantis trazem à cena tão bem a necessidade de o olhar do espectador completar a magia do espetáculo quanto O Anel e a Rosa, atualmente em temporada no Teatro Casa Grande. Talvez fique até estranho falar em magia quando se trata de montagem cujo eixo é a caricatura. Mas, ao mesmo tempo em que o ironia de Thackeray parece apontar para o fundo falso da vida na corte do Rei Valoroso; tal ironia se tece em meio às trocas entre os possuidores do anel e da rosa, mágicos e capazes de tornar sedutoras as figuras mais ridículas. E é entre a magia do anel e da rosa e a caricatura de seus possuidores, que se desenvolve a narração de Thackeray, assim como a versão teatral do grupo TAPA. Como um mágico que apontasse para o futuro falso do cartola o tempo todo, mas enquanto isso fizesse um número tão eficiente que a magia persistisse mesmo depois da exibição do fundo falso.

Quem entra na sala de espetáculos do T. Casa Grande para assistir a O Anel e a Rosa já encontra em cena todos os atores que irão participar da encenação. E os encontra como figuras de um Museu de Cera. Estáticos e caricaturais como estátuas de reis, princesas e criados que, presos a um outro tempo ou a um livro de histórias, estivessem à espera de alguma coisa que os transformasse de bonecos de cera em personagens de um conto de fadas. E a entrada do público funciona como o beijo do príncipe na Bela Adormecida. É necessário o olhar mágico do espectador para que as estátuas percam sua rigidez e ganhem a mobilidade de personagens. Chega o público, apagam-se as luzes e os atores começam a se mover, ainda com certa rigidez, não como estátuas, mas como personagens que posam para retratos. Com poses semelhantes às das pinturas que retratam a vida palaciana e seus personagens. Toda a excessiva teatralidade dos gestos, das marcações e da maquilagem dos atores parece chamar atenção igualmente para o fato de os personagens funcionarem como caricaturas, e para aquele que vai dar sentido a essa caricaturização: o espectador. Há inclusive uma cena que funciona como exemplo desses “retratos palacianos” caricaturais em que se divide a encenação: é a chegada de um pintor à corte com um retrato do Príncipe Bulbo, pretendente à mão da Princesa Angélica. E tal retrato, como as estátuas e quadros da peça, é vivo. Trata-se apenas de uma moldura, dentro da qual se vê o rosto de Bulbo cujas expressões vão desmentindo sucessivamente todas as declarações do pintor a seu próprio respeito, como um retrato que incluísse ao mesmo tempo a caricatura de seu modelo.

Para que a caricaturização funcione é preciso que, pelo menos, se conheça o modelo. Do contrário talvez não se perceba se o que se vê é retrato ou caricatura. Daí, a versão teatral de O Anel e a Rosa contar com um espectador dono de um repertório mínimo de contos de fadas e romances capa-espada. E funcionar mais para um público pré-adolescente do que propriamente infantil. Para os espectadores mais jovens a ironia de Thackeray se perde, mas fica em primeiro plano a magia da Fada Varanegra, do anel e da rosa. O principal interesse da montagem, no entanto, parece ir além da caricatura. E está fundamentalmente na maneira como a encenação de Eduardo Tolentino aproveita-se teatralmente dos recursos narrativos próprios do texto literário de Thackeray. A adaptação funciona como exercício de criação teatral. A adaptação funciona como exercício de criação teatral. Ao invés de se abdicar do narrador crítico do romance suas falas são convertidas em monólogos ou diálogos e distribuídas entre a Fada que tece a trama, criados que comentam, em coro ou isoladamente, o que se passa em seus senhores, e um narrador que assume a voz de Thackeray e fecha a narrativa com a distância de quem já não crê na magia, mas não pode deixar de fazê-la. Nunca são os personagens centrais que assumem a narração. Eles se assemelham aos desenhos e marionetes de que se serviu Thackeray e para criar sua história e contá-la a algumas crianças numa festa de Natal. E é esse desdobramento de narradores que proporciona alguns dos melhores momentos do espetáculo. Como a cena da batalha, ou a queda do rei ao chão. Cenas onde se joga simultaneamente com a comicidade dos personagens e com uma teatralidade excessiva que parece fazer caricatura não apenas da corte do Rei Valoroso, mas de certos recursos interpretativos próprios à ópera e ao teatro.

Assim como a caricatura deixa que se perceba o modelo, também O Anel e a Rosa não joga fora a magia do conto de fadas. Magia irônica conquistada em parte pelos belos figurinos de Lola Tolentino, que mais parecem ilustrações tiradas de algum livro; e pelo bom aproveitamento do trabalho dos atores. A destacar Charles Myara, com o Rei Valoroso; Denise Wainberg, como a Condessa Rabuja; Flávio Antônio, como o Príncipe Bulbo. E, como Thackeray no seu romance, também a adaptação do Grupo TAPA para O Anel e a Rosa, se mostra as lutas de diferentes grupos pelo poder, também dá à corte de Valoroso a aura de magia de uma sociedade dominada por uma fada, um anel e uma rosa. E de uma história narrada por uma voz irônica mas que fecha o espetáculo com a nostalgia de alguém que tira a máscara e deixa ver, junto ao desejo de ser criança outra vez, um rosto adulto e que, se já não pode mais acreditar em fadas, pode ao menos tecer histórias para quem ainda possa vê-las com magia.