Crítica publicada no Jornal do Brasil
por Carlos Augusto Nazareth – Rio de Janeiro – 11.07.2004
O rei continua nu
No Tablado, excelente montagem inspirada em Andersen
O Alfaiate do Rei é um texto inédito Maria Clara Machado, adaptação do conto de Hans Christian Andersen, “A roupa nova do imperador”. Está em cartaz no Tablado e é um espetáculo inteligente, criativo e divertido. Na trama, um rei vaidoso recebe a visita de dois falsos alfaiates, que dão um grande golpe, convencendo o soberano de que estão fabricando um tecido que só as pessoas inteligentes conseguem ver. A corte, querendo agradar ao governante e parecer inteligente, diz ver o tecido. O monarca, por sua vez, faz o mesmo. E de mentira em mentira o soberano desfila seu novo traje e o povo é que denuncia que, na verdade, o rei está nu.
A fábula é uma metáfora sobre as mentiras que se mantêm nos altos escalões do “reino” e que o povo percebe e denuncia. Absolutamente atual, é uma bem-humorada crítica que o pequeno espectador apreende com facilidade, pela clareza narrativa. Cacá Mourthé sublinha cada passo do desenvolvimento da história de Maria Clara Machado, reforçando passagens e criando climas de suspense que facilitam a compreensão do texto, levando o espectador a interagir com o espetáculo e a se incorporar ao universo ficcional. A adaptação se mantém fiel ao texto original – preserva a sátira às burlas e às mentiras usadas pelos homens para enganarem uns aos outros.
Merece destaque especial a criativa cena do quarto de vestir do palácio. As ricas vestes caem presas por elásticos e o rei, ao usa-las, fica parecendo uma marionete. Trata-se de uma crítica sem palavras, uma imagem que surge do subtexto e fala diretamente ao inconsciente do espectador. Os bem-humorados figurinos de Lídia Kosovsky e João de Freitas propiciam outros momentos igualmente divertidos.
O espetáculo é uma grande comédia musical. No palco, a assinatura do Tablado, de Maria Clara Machado, e a excelente direção de Cacá Mourthé, que orquestra equipe de criação e elenco imprimindo seu humor irreverente. Ela consegue manter o equilíbrio entre a essência da história tradicional e a contemporaneidade da encenação.
O cenário, também de Lídia Kosovsky, em momento especialmente inspirado, cria um inventivo espaço cênico que, valendo-se da oposição de tamanhos, devolve ao espectador a percepção de seu “tamanho real”, o que leva à percepção de si mesmo – uma proposta do texto. Reforça também a fantasia do conto de fadas e o lirismo romântico em cujos, pressupostos se inserem o autor dinamarquês.
As músicas e a direção musical de Márcio Trigo mantêm a alegria e o bom humor, todo o tempo presentes em cena, com melodias que se ajustam à história.
Leonardo Brício compõe com nuances sutis o vaidoso rei. Outros destaques são Pedro Kosovsky, que faz o bobo, na verdade o narrador da história, e que costura todo o espetáculo; e Fernando Caruso, que faz, com humor rasgado, o ministro do rei. Também com muito vigor e forte presença cênica, Débora Lamm faz a tecelã. As sempre inventivas coreografias de Renato Vieira, inspiradas nos movimentos cotidianos, e os maneirismos da corte reforçam a crítica, presente em todos os segmentos do espetáculo. E a luz de Nelson Leão é correta.
O Tablado mostra sua vitalidade num espetáculo com uma produção impecável, extremamente bem cuidada, imperdível para os que gostam de teatro. Para os que ainda não têm o hábito é uma oportunidade especial para conhecer este universo tão bem representado num trabalho que encanta, diverte, faz sonhar e pensar.