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O Alcance do Teatro para Crianças e Adolescentes 

Ao discutirmos o alcance do Teatro para crianças e adolescentes, está implícita nesta questão, a aceitação de que este tipo de arte desempenha uma função social. Para isso é necessário traçarmos objetivos a serem atingidos com o nosso público, confrontando-os com uma análise do tipo de espetáculo que realizamos.Citamos alguns objetivos para vincularmos a esta análise:

– Promover uma linguagem no teatro que esteja de acordo com a forma de pensamento encontrado na infância e adolescência.

– Desencadear no público, através do espetáculo, atitudes mentais propícias à critica, à criação e à participação não conformista na sociedade.

Poderíamos traçar outros objetivos, mas nos concentramos nesses dois, no intuito de delimitarmos uma análise que possa auxiliar na verificação do tipo de teatro que promoverá este alcance. É importante ressaltar que os tópicos abordados aqui, mais do que conclusões, são questionamentos que podem levar a outros questionamentos na salutar tarefa de discutirmos o nosso ofício. Às abordagens, algumas vezes genéricas, devem seguir-se outras, tanto de aprofundamento de estudo nas matérias evocadas, quanto na realidade econômica e sociocultural na qual a criança ou adolescente esteja inserido.

Uma visão da infância

É necessário situar a criança não como a possibilidade do adulto que se tornará, mas encará-la como um ser que possui características próprias como em qualquer faixa etária. E ainda, que ela influencia e é influenciada pela história e o contexto social em que vive. Observando a criança nos seus jogos simbólicos e brincadeiras, vemos que o limite entre a imaginação e realidade é tênue, mais que simples prazer, são necessidades, que a fazem conviver, interpretar e recriar a realidade, na elaboração de uma brincadeira ou história. A imaginação é uma “experiência da linguagem” (1). A percepção do mundo na infância se dá prioritariamente através do sensorial. Cada objeto fornece inúmeras possibilidades de interpretação, seus sentidos são apropriados em direção da necessidade imediata, subvertendo a ordem do mundo adulto.

Com o início da fala interior até a formação final do pensamento lógico (até 11, 12 anos), o sentido do que visto/ouvido tem predominância sobre o significado oficial das palavras. Este sentido é construído basicamente pelo aspecto sensorial/sensível. A compreensão de uma situação não está relacionada ao nível de entendimento da palavra, mas se apoia em uma percepção que envolve o contexto, a entoação, o gestual, e tudo mais que possa servir de base para a construção de uma história própria, através da imaginação, base para a elaboração da linguagem. O fator temporal é outro que deve ser levado em conta, a sucessão linear de acontecimentos, não tem eco na vivência na infância, que rege o tempo sempre no presente, como “tempo de ágoras”.

A criança subverte a ordem estabelecida, a relação com o tempo/espaço e confere sentidos novos as palavras ouvidas. Respeitar essas características na constituição de uma linguagem no teatro para a infância é respeitar a infância no que ela mais pode contribuir para um olhar crítico sobre a sociedade.

Análise dos espetáculos

Traçamos aqui alguns eixos para a análise dos espetáculos em relação com os conceitos acima mencionados.

1) Estrutura da narrativa – lineariedade – multilineariedade – espaço/tempo
2) Esquemas narrativos – reprodução ou criação de valores
3) Conteúdo da Forma (estilo de interpretação, cenários, figurinos, etc.)
4) Conteúdo (texto, assunto, história)

As estruturas, os esquemas narrativos, os significados das palavras, trazem em si valores introjetados pela mídia, escola, família que exemplificam e estruturam o modo de pensar/falar das pessoas. A criança de acordo com o modo de sujeição da cultura em que está inserida poderá, em maior ou menor grau, introjetar esses valores e reproduzi-los: constituindo o seu modo de olhar o mundo, “todo o itinerário que leva à atividade mental (conteúdo a exprimir) à sua objetivação externa (enunciação) situa-se completamente em território social” (2)

1) Estrutura da narrativa

Quando falamos em estrutura linear ou multilinear, estamos nos referindo de como as imagens de cenas, ou as várias imagens de uma cena se encadeiam e podem ser relacionadas. A maneira de arrumarmos a cena, pode acionar tanto uma observação estática, quanto propor ao pensamento questionamentos, diferenciações, conexões, circuitos além dos pré-estabelecidos, fornecendo à criança mais do que reflexões, pois ainda o seu raciocínio abstrato ainda não está pleno, oportunidades reais de exercitar mecanismos cerebrais próprios da infância.

Cabe aqui destacar um trecho de Deleuze sobre o cinema. “O cinema inteiro vale pelos circuitos cerebrais que ele instaura, justamente por que a imagem está em movimento. Cerebral não quer dizer intelectual: existe um cérebro emotivo, passional… A esse respeito, a questão que se coloca, concerne à riqueza, à complexidade, ao teor desses agenciamentos, dessas conexões, disjunções, circuitos e curtos-circuitos… Criar novos circuitos diz respeito ao cérebro e também à arte… Toda criação tem um valor e um teor político. Mas o problema é que ela se concilia mal com os circuitos de informação e de comunicação, que são circuitos inteiramente preparados e degenerados de antemão… É sempre uma questão cerebral: o cérebro é a face oculta de todos os circuitos que podem fazer triunfar os reflexos condicionados mais rudimentares, tanto quanto dar uma oportunidade a traçados mais criativos, a ligações menos “prováveis”. O cérebro é um volume espaço-temporal: cabe à arte traçar nele novos caminhos atuais.” (3)

A vivência e compreensão de um espetáculo, não é garantida pelo puro entendimento do significado dicionarizado de palavras, nem pela afirmação de uma lógica simplista, formada pela lógica do adulto reduzida, que se faz crer que o pensamento da infância é formado. A linearidade na apreensão da vida, e o raciocínio lógico de causa e efeito é privilégio do mundo adulto, já desensibilizado e viciado com hábitos mentais simples. A abstração, para a reflexão crítica sobre assuntos não faz parte da infância, mas se a ela não for dada a chance de dialogar com o que vê à sua maneira, também será difícil fazer parte de seu mundo quando adulto. Se oferecemos à criança no teatro uma estrutura narrativa, que não privilegie a forma linear (princípio, meio e fim) estaremos evidenciando uma de suas características básicas de contato com a realidade, que se dá através do “tempo de ágoras”, além de não impor desde cedo uma ideologia que se traduz como “uma gramática de engendramento de sentido”. (4)

2) Esquemas Narrativos

Os esquemas narrativos que criamos ou reproduzimos em cena, transmitem uma forma de avaliar a realidade, de raciocinar e agir sobre a vida. A título de exemplificação dessa importância, reproduzimos um trecho de Umberto Eco sobre Fleming e seu 007. “Fleming não é reacionário pelo fato de preencher a lacuna “mal” de seu esquema com um russo ou um judeu; é reacionário porque procede por esquemas. A construção por esquemas, a bipartição maniqueísta é sempre dogmática, intolerante. O democrata é o que recusa os esquemas e que reconhece as nuances, as distinções e justifica as contradições. Fleming é reacionário como o é na origem a fábula, qualquer fábula. É o espírito conservador ancestral, dogmático e estático, das fábulas e dos mitos, que transmitem uma sabedoria elementar, construída e transmitida por um simples jogo de luz e sombra e a transmitem por imagens indiscutíveis, não permitindo a crítica. Se Fleming é fascista, ele o é porque é próprio do fascismo ser incapaz de passar da mitologia para a razão, tender a governar servindo-se de mitos e fetiches”.(5)

Sobre essa reflexão é importante notar que não é a utilização de um assunto ou história, no caso o bem e o mal, o conto de fadas, ou a história de mitos, mas sim como os colocamos em cena: reproduzindo sem reflexão o esquema narrativo, substituindo-o por outro ou interferindo nele a ponto de denunciá-lo, oferecendo às crianças formas distintas de viver e lidar com o bem e o mal, impulsionando-as à uma percepção crítica da realidade.

3) Conteúdo da Forma

Sobre a forma que emprestamos ao conteúdo, referimo-nos aqui aos elementos cênicos propriamente ditos, tudo que contribui para tirarmos do papel um texto, ou ideia, levando-os à construção espacial: o estilo de interpretação, figurinos, marcações (arranjos espaciais), música, cenários, luz etc. Ao desocupar uma cena dividindo-a em supostos quadros, podemos observar várias relações: se a cena se desenrola apenas em um tempo, ou se existe na mesma cena vários tempos coexistindo, construindo uma cena de observação multitemporal; a interpretação realista, expressionista ou simbólica, em que contribui ao nosso assunto? Ao abordarmos a violência, estamos sendo violentos com a plateia? Ou falando de amor estamos sendo piegas? Ou a exaltar uma manifestação cultural popular, sendo “folclóricos” passando um olhar estrangeiro sobre ela? Ao tratarmos a diferença estamos reafirmando preconceitos? Nessas questões e tantas outras, o que estamos propondo é uma reflexão sobre que ética e ideologia está apoiada a estética que apresentamos ao nosso público. Sobre que valores nos apoiamos ao construirmos nosso espetáculo, e o que passamos com as imagens apresentadas nas cenas.

4) Conteúdo

O conteúdo é, em geral, o que reúne a maior parte das preocupações dos artistas, professores, pais etc, se o assunto é pertinente ou não ao universo da infância. Sobre isso reforçamos o pensamento do que está mais na análise dos 3 itens observados acima, a proximidade ou não da vivência da infância. O “como” apresentamos o assunto às diversas faixas etárias, poderá ter maior ou menor repercussão junto a participação dialógica da cena e plateia. Correlativamente está mais no assunto e não nas palavras utilizadas a possibilidade de alcance do espetáculo. Se limitamos na cena, o uso de palavras porque a infância delas não tem domínio, estamos nos recusando a contribuir para o instigamento à compreensão, e às construções de significados que fazem parte da formação do pensamento. Além de depositar no significado único de uma palavra, a responsabilidade pela construção do sentido. “A compreensão, além de ser um processo ativo, é também um processo criativo”.(6)

Em princípio, qualquer assunto faz parte da vida da criança, pois ela está conectada com uma vivência diária, através da família, escola, TV etc. que a obriga a conviver diariamente com a morte x vida, perdas x satisfações, paz x violência etc. O teatro inserido em seu contexto sociocultural apreende, reformula e traz à cena esses assuntos, emprestando uma forma de ver e sentir a realidade. Mas também é claro que o interesse e a pertinência de assuntos podem estar mais ou menos vinculados, à preocupação de uma determinada faixa etária, sua maturação física e emocional, cultura, fatores econômicos, etc. Problemas inerentes à uma relação de casal, por exemplo, não fazem parte do cotidiano da infância, se a ótica dada for a da relação homem x mulher, pois a criança ainda não vivencia esse conflito, mas se essa relação for apresentada pela consequência que ela produz na relação pais x filhos poderá ser pertinente apresentá-la como uma temática inerente ao seu cotidiano.

Os sentimentos humanos não são propriedades do inundo adulto. Desde cedo a criança experimenta e lida com toda uma gama de sentimentos in totum, que aos poucos irá conseguir, ou não, diferenciá-los, nomeá-los e conviver com eles. O teatro pode de forma lúdica apresentá-los e desmistificá-los, ajudando a experimentá-los diferentemente dos outros meios que a criança dispõe, e através da estética apresentada contribuir para a formação de cidadãos questionadores e atuantes na sociedade em que vivemos.

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Notas

JOBIN e SOUZA, Solange – Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamim, S.P./Brasil: Papirus, 1996. p.148
(2) Idem, p. 113
(3) DELEUZE, Giles – Pouparlers, 1972-1990, Les Éditions Minuit: Paris, 1990. (Trad. Bras: Conversações, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992 – pp 78/79)
(4) TEIXEIRA COELHO NETTO, J – Semiótica, Informação e Comunicação, S.P./Brasil Ed. Perspectiva, 1996 – p.47
(5) ECO, Umberto – L’Analyse Structurale du Recit, In Le Cas Bond, Communications Editions du Seuil nº 8/1966. (Trad. bras. Análise Estrutural da Narrativa, Ed. Vozes, 1973 – p. 161)
(6) JOBIN e SOUZA, Solange. (1996), p. 109

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Alice Koenow
Diretora de Teatro

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Obs.
Texto publicado em 1998, (em inglês) no Anuário da ASSITEJ – Associação Internacional de Teatro para a Infância e Juventude