Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 09.07.2019

Fotos: Dib Carneiro Neto

Montagem de rua desata todos os nós do livro encantador de Eva Furnari

Barracão Cultural acerta mais uma vez em espaço aberto, desta vez com a peça Nós, dirigida pela convidada Cris Lozano

É mais uma história que procura ensinar tolerância às diferenças? E daí? Esse tema nunca foi tão urgente – e será sempre. “Quantas vezes o homem precisará olhar para cima até que ele possa ver o céu? Quantas ouvidos até que possa realmente escutar as pessoas chorando? E quantas mortes ele causará até saber que já morreu gente demais? A resposta, meu amigo, está soprando ao vento.” Parodiando Bob Dylan, quantas peças infantis sobre preconceito e bullying ainda serão necessárias até que nossas crianças virem adultos tolerantes e livres – e o Brasil seja um país melhor? A resposta sopra ao vento durante as apresentações ao ar livre do grupo Barracão Cultural, com sua nova peça de rua, Nós.

Nada como uma história bem contada. Teatro, em essência, é isso. Um veículo de infinitas possiblidades para se contar histórias. Em Nós, baseado no livro de Eva Furnari, o grupo Barracão Cultural impressiona justamente por ter escolhido bem – e desenvolvido melhor ainda – o livro a ser adaptado. E nada como um grupo que sabe o que faz. O Barracão sabe fazer teatro de rua – e bem. Já vi as duas outras peças deles em praças (O Tribunal de Salomão e A Condessa e o Bandoleiro) – e Nós mais uma vez confirma esse talento para o espaço aberto.

Sem a quarta parede, o público mergulha nas entranhas do espetáculo Nós. De forma agradável, atraente, eficiente, brincalhona. O grupo convida a todos a estarem dentro, a serem Nós. Nós junto com eles. Música, dramaturgia, performances dos atores (Eloisa Elena, Leandro Goulart, Lucas Nuti e William Simplício), figurinos, cenografia – tudo é inclusivo, sem ser ostensivo. Tudo nos chama a sermos parte de Nós. Atores com olhos nos olhos das crianças, dos adultos, dos passantes, dos que se envolvem e dos que tentam escapar… Isso é fundamental na rua, nas praças, por onde passar o Barracão Cultural. “Estamos aqui, contando uma história com vocês, não sozinhos” – parecem dizer os atores e músicos. O resultado é lindo.

Acho que eu já disse em outras críticas o quanto a atriz Eloisa Elena é boa para fazer menininhas. Tem carisma, jeito, expressão corporal, voz – sem nunca cair no estereótipo enjoativo e caricato. Quando veste a roupa amarela, repleta de apliques de borboletas (ponto máximo do figurino assinado por Marichilene Artisevskis), instaura-se um encantamento irresistível, um mundo fantasioso e alegórico que nos arrebata, crianças e adultos. O menino de bicicleta na lua é outra poética composição. Quando entram os vendedores ambulantes, o trabalho da figurinista também se sobressai de forma notável. São roupas lúdicas, ricas em detalhes expressivos e eloquentes.

A cena dos vendedores ambulantes, aliás, poderia ser levemente enxugada em seu tempo de duração. Não que seja ruim. Ao contrário, é bem divertida. Mas o espetáculo me pareceu um pouco longo, mais do que o normal para uma peça infantil de rua. Poderia perder ao menos cinco minutos – e essa é uma das cenas que mais se prestaria a esse enxugamento, sem ser afetada, sem prejuízo nenhum para seu resultado.

Dr Morris caprichou mais uma vez na direção musical e nas canções originais. O rap (ou seria também um funk?) de ordenhar as vaquinhas é hilário, com sua letra aparentada dos desafios dos repentes. Em outra canção, ouvimos: “Mel é borboleta, ela é ‘borbolesada’, nasceu num repolho mofado, nasceu estragada”. São os meninos ‘cantando um bullying’ para a protagonista Mel (Eloisa Elena). Outro exemplo da criatividade de Morris é o refrão eficiente – pega fácil! – da canção final: “Cada um é um; quando é mais de um… é nós. A nossa canção é uma só.” Ah, e desta vez há até um comentário musical em cena, com os atores ‘reclamando’ com ele de uma rima: “De novo essa rima? Morris, é horrível isso!” A plateia adora. Entre os inusitados instrumentos musicais em cena, há uma marímbula, uma espécie de calimba grave e grande, que foi construída pelo ator Leandro Goulart. Repare.

O cenário compacto de Marco Lima – desenvolvido em forma e em torno de uma convidativa micro arena – é exemplar como teatro de rua, sem contar o quanto é fiel às ilustrações do livro de Eva Furnari, nas cores e nos traços. Baús, malas, placas indicando as localidades, adereços – poucos elementos, mas todos muito vistosos e a serviço da história a ser contada. A resolução para os nós que vão se formando no corpo da menina Mel (no pescoço, no nariz, na perna, no pé, na mão) também é notável casamento de figurino e adereço.

Diante de tantos acertos, faltou dar crédito para os pais principais desse filho muito bem concebido, orquestrado, escrito e dirigido com rigor e mãos firmes, acertando no propósito de entreter com poesia e fabulação, com fantasia e imaginação. São eles Sérgio Pires (dramaturgia) e Cris Lozano (direção). Bem, e já que não quero me esquecer de ninguém importante, comento aqui, last but not least, como é engenhoso e complexo cuidar de uma montagem itinerante, cada semana numa praça diferente da cidade – e sempre com tudo funcionando bem! Palmas para a produção executiva de Geondes Antonio. Vida longa para Nós, de praça em praça, de parque em parque. E um viva a todas as diferenças que sopram ao vento!

Serviço

17 de agosto de 2019. Sábado, às 11h e às 15h
Parque Buenos Aires
Avenida Angélica, 1500 – Higienópolis, Consolação

18 de agosto de 2019. Domingo, às 11h e às 15h
Parque Chácara do Jockey
Av. Prof. Francisco Morato, 5300 – Jardim Jussara, Vila Sônia