Há alguns anos escrevi para a rádio alemã uma peça radiofônica que começava assim:
Era uma vez… Toda história começa / “era uma vez”…./ sem ver ou sem explicar / que essas vezes, repetidas, / são tantas e tantas vezes/ que por isso nossa história / não se para de contar…/ Que a história que hoje se conta / em certo tempo e lugar / continua outras histórias/ que não também de continuar./ Nós, contadores de histórias / somos as vozes que ouvimos / somos as cenas que vemos / as falas de amor e dor / que fazem a vida do homem / procurando seu caminho / de vida e de liberdade./ Caminho que são caminhos…/ Por isso que toda história / começa “era uma vez…”
A contação de histórias que hoje resgata o valor da oralidade, enriquecendo-a com a exploração das possibilidades cênicas da narrativa, vem crescendo significativamente. Revalorizando a palavra, provocando a imaginação, reforçando a relação interpessoal e a participação do espectador (pois não se conta para ele e sim com ele), tem igualmente servido – por mais contraditório que isto possa parecer – para a revalorização do ato de ler, em toda a sua plenitude e significação.
Ler é nosso primeiro gesto de liberdade
Quando Galileu disse que “o universo é um livro”, só uma mente muito mesquinha poderia interpretá-lo nos limites da invenção da imprensa. Pois a leitura a que o livro nos convida é apenas uma das formas de pôr em ato uma capacidade que nos define como humanos: a de ler.
Se vamos à raiz da palavra, vemos que ler<legere é termo com múltiplas e entrelaçadas significações: ler é colher, reunir, juntar; é escolher, eleger; é percorrer, costear, navegar.
O que nos remete a repensar a significação real e multifacetada da leitura. Partindo da inicial, o que é que colhemos ou reunimos neste ato? Quando a criança começa a passear seu olhar inquieto pelo mundo dos objetos (pessoas e coisas) que a cercam, é sua percepção que vai informar sua experiência de situar-se em meio a esses objetos e ter uma primeira resposta ao quem sou eu? com que busca identificar-se. Um situar-se que com eles estabelece “vínculos” (Pichon/ Rivière), através de dados e fatos vividos em seu aqui e agora, de sua experiência (<ex-per-ire) – este colher ou extrair (ex) do que é trazido por nosso ir-e-vir cotidiano, do que é por nós vivido a cada passo. E é da reunião ou conexão desses dados e fatos que surge uma primeira estruturação de mundo – capaz, inclusive, de fazer dessa experiência uma bússola orientadora de futuros passos.
Tal como na história individual, na trajetória humana o primeiro momento é, igualmente, o do ad-mirar, do olhar – com espanto ou encanto – para o vazio, para o aberto – nada ainda pronto, tudo por des-cobrir. Daí o sentido primeiro de verdade: um desvelamento, um arrancar de véus. O encanto e espanto nascidos desse olhar desvelador provocando a palavra – termo cuja origem, parábola, fala dessa matizada expressão em que o real e o imaginário se con-fundem: não é ocasional terem sido os mitos e as lendas (<legenda= coisas a serem lidas) as expressões primeiras da tentativa humana de apreender a realidade e estruturar seu mundo.
A lenda remete não mais apenas ao olhar desprevenido que contempla a natureza, mas à inquietação humana que nela vê uma entrelaçada tessitura de signos e marcas, de caracteres expressivos, de discursos e formas. Tecido em que os fios, as cores, as luzes e sombras se encontram tão entrelaçados, confundidos, que o olhar desvelador pode enredar-se nesta confusão e tomar a sombra pela coisa sólida. Como distinguir o real do aparente, o verdadeiro do ilusório? Se a ambivalente Natureza-Mãe em torno ora se mostra sob a forma de deusas doadoras e propiciadoras, ora sob a forma de outras, pressionantes e maléficas, iludir (illudere < in-ludere) pode ser seu jogo, artimanha lúdica envolvendo o pequeno homem a quem rodeia; algo sentido por ele como também capaz de prejudicar ou danificar – sentido segundo que adquire o termo. A Esfinge, que devorava os homens que não sabiam decifrar seu enigma, tem seu nome derivado desphingein=amarrar ou comprimir. Édipo, cujo nome significa “o de pés atados”, decifra seu enigma. E é por isso que se torna “o primeiro dos homens” (Sófocles).
Porém “o sensível não é feito somente de coisas. Compõe-se de tudo o que nelas se desenha, mas inclui o vazio dos intervalos e tudo que nelas se apresenta também a partir da distância e como que de uma certa ausência” (Merleau-Ponty). A este vazio se dirige o olhar do mito, que revela “os significados ocultos”, uma história que é “sagrada e exemplar” porque traz uma “revelação primordial” – a da origem (Mircea Eliade). A perplexidade e inquietação despertadas por aquele olhar indagador levam, assim, a delegar o desvelamento aos capazes de “ler nos sinais”, aos videntes, oráculos e profetas, ou seja, àqueles que “conseguem apreender a realidade toda”, “os sinais vindos do céu e os deste mundo”, como diz Édipo ao falar de Tirésias, o adivinho. Daí o segundo sentido deverdade, como adequação, já presente em Platão e Aristóteles.
Em ambos os momentos o pressuposto fundamental é o do saber ler, para poder ultrapassar a simples percepção das aparências e o próprio mundo dogmático da doxa, das opiniões nascidas do mero ajuntamento de dados, ou da visão parcializada e dispersa. Pois ler é também eleger, escolher: “O que se vê deve ser ordenado, o que pode ir junto e o que tem que permanecer separado” (Platão). Quando a sabedoria popular fala do “um burro olhando para um palácio” está, em seu bom senso, fazendo a ligação do olhar, que é de todo animal vivo, com o perceber (percipio<capio= apreender), que é um ato gerador de consciência.
O ler, com este sentido mais abrangente e mais exato, é, portanto, nosso primeiro gesto de liberdade, de uma escolha que supõe poder discernir, perceber diferenças, decisão, separação entre partes: o naturalista e o poeta não lêem do mesmo modo a natureza, nem sequer a própria experiência. Ler supõe a capacidade de colher algo do que é visto ou ouvido, e fazer, desta experiência sensível, uma possibilidade de conhecimento. Pois conhecer, seja um animal, uma planta ou qualquer coisa existente, é reunir ou recolher toda a espessa camada de signos de que ele/ela é portador e descobrir suas diferentes constelações de formas. Por isso o conhecimento a-cresc-enta, faz crescer, não no sentido de acumulação de informação que lhe atribui a ideologizada visão de nossa sociedade capitalista, mas no sentido mais radical do termo, relacionado ao cognoscere (cum+gnoscere), ao nascer com o que se conhece, ao transformar-se pela diferença. Razão porque o conhecer, assim sentido e vivido, não se dissocia da própria liberdade: a liberdade é uma caminhada expressa nesses “nascimentos”.
Vazando os olhos
Quando a tragédia de Édipo Rei termina com ele vazando os olhos e afastando-se de Jocasta, Natureza-Mãe agora estranha, inicia-se uma nova fase, bifurcadora de todo o pensamento ocidental: em sua ânsia de distinção e diferenciação, o homem se afasta cada vez mais do mundo sensível e dos sentidos como meio de trazer à percepção a imagem. A coisa concreta vai cedendo lugar à ideia, abs-trata (= tirada de) por obra de uma razão que, sem ainda romper inteiramente com a experiência do mundo, dele começa a ter uma outra “leitura”: pensar é pôr-se à distância; não é experimentar, é construir conceitos; o pensamento tenta, pela compreensão racional, tornar todas as coisas inteligíveis. Distinguir o sensível e o inteligível, a imagem e a ideia, a coisa e a ideia da coisa, é assim substituir o contato in-mediato, sem mediações, com as coisas / mundo, por uma atitude distanciadora e analítica, que faz da contemplação, do exame, da observação, o fundamento de sua teoria: a experiência de ver, do olhar, cede vez à explicação racional dessa experiência, expressa no logos, o discurso da razão: da percepção se passa ao juízo, analítico e crítico; o homem vaza os olhos do corpo para passar a “ver com os olhos do espírito”.
Olhar, depois fechar os olhos e rememorar
Gauguin disse certa vez que toda a existência humana está contida em três questões: quem somos? de onde viemos? para onde vamos? Se a primeira das questões parece remeter à experiência individual, as duas outras envolvem, necessariamente, uma visão mais abrangente, do espaço (que incorpore o social em torno) e, sobretudo, do tempo. O poeta vê o passado buscando o mais fundo do ser e a raiz para suas utopias, isto é, seus projetos de futuro.
Razão por que, das Musas inspiradoras do poeta, tem lugar de destaque Mnemosyne, a Memória, a quem cabe cantar / contar as histórias que são “deciframento do invisível, geografia do sobrenatural” (Vernant). Aletheia, a palavra desse visionário, como a do oráculo, torna visível o invisível, porque des-oculta, tira do esquecimento, recorda e expressa. E com isso, imortaliza – pois silêncio e esquecimento são morte. E a palavra, sobretudo a do poeta, é, pelo contrário, eterno recomeço: “No princípio era o Verbo…” “Ser poeta é ter olhos para revelar a face oculta das pessoas e das coisas”, diz nosso Mário Quintana. Também o poeta dramático, ao colocar seu personagem em situação na cena (palco) do mundo, é através dessa “persona”, dessa máscara, que vai revelar seu verdadeiro rosto, o que está por trás das aparências, o eu mais profundo, a in-tensão (intenção) que marca a tensão interior e vai manifestar-se em uma ação tornada presente, viva.
Olhar, depois fechar os olhos e rememorar: a memória fala dos caminhos e descaminhos, da saudade do que poderia ter sido, do sonho que ainda pode vir-a-ser. Memória e experiência, articuladas pela palavra, desenvolvem nossa inteligência, isto é, nossa capacidade de (intelligere) compreender, discernir, sentir, ser conhecedor de. Mas seintelligere<inter-legere novamente nos vemos confrontados com a ideia de que este compreender / sentir / conhecer nasce de um ler entre, de uma leitura que não fique na superfície ou na aparência. O “vazio dos intervalos”, de que falamos acima, não seria este ler entre que permite ampliar a experiência, ligada a um aqui e agora, com o que, por obra de memória, foi conservado e transmitido através da palavra? É resgatando associações trazidas pela memória com idéias, experiências e pontos de vista de outros autores que se abre nosso ângulo de visão e nossa capacidade de intelecção.
Navegantes da História
O que nos leva ao terceiro sentido atribuído ao termo ler, ou por ele adquirido com o uso: o de percorrer, costear, navegar. Agnes Heller, em seu precioso livro Uma Teoria da História, nos faz ver que as múltiplas respostas à pergunta-chave – de onde viemos, quem somos, para onde vamos? – nos remete a uma questão fundamental: a historicidade do ser humano. Nós somos história, somos tempo e espaço – e não podemos pensar categoria alguma fora deles: “O animal perece, não é mortal. Só os seres humanos são mortais, têm consciência de que perecerão. É a partir da mortalidade, do espaço e do tempo que levantamos aquela questão e nela expressamos a historicidade do gênero humano. A pergunta não muda, as respostas variam. E as múltiplas respostas dadas, diferentes em substância e estrutura, serão estágios da consciência histórica”. Não é, pois, sem razão que história e sabedoria têm a mesma raiz – que o inglês guarda em seu wisdom.
Da experiência de se conhecer e se situar à necessidade de organizar e pôr em ordem seu mundo, é longo e acidentado o percurso deste Ulisses humano em busca de sua legendária terra prometida – que é também sua terra de origem. O registro deste percurso – que constitui a literatura de todos os tempos – vai revelando as diferentes formas de nosso estar-no-mundo e de nossa apreensão do real, ora calcados no objeto (como no realismo), ora na subjetividade (como no expressionismo). Mas, em todos os aspectos, remetendo a essa historicidade do gênero humano que nos faz entender porque somos, todos, uma única e mesma humanidade. Diferentes são as leituras, diferentes são os leitores. Mas guardam entre si laços que permitem estabelecer entre a relação no espaço e o tempo que denominamos História. E/ou história: nós, “contadores de histórias”: um plural sempre anterior ao singular, na história individual e na história coletiva, sabedores de que “todos os poemas do passado, do presente ou do futuro não são mais que episódios ou fragmentos de um único e infinito poema” ( Shelley).
Hoje, tempo de mutação, quando “relemos” este percurso de séculos, em busca de bússolas que nos permitam re-conhecer “para onde vamos?”, sentimos que este reconhecer volta ao passado (re) e o interroga para enfrentar o desafio que nos propõe o futuro.
Confrontados com um espaço planetário aberto ao cosmos, ao universo que nos provoca com seu mistério, sentimos que a verdade é novamente aquela abertura, um vazio, “algo com que temos vivido desde o começo dos tempos – só que a esquecemos. Se a esquecemos, então alguém deve tê-la salvo para nós e deve ser alguém cujas palavras não conseguimos mais entender” (Umberto Eco).
Reaprender a ler , na abertura do símbolo, da metáfora, na ambiguidade e polivalência de nossa linguagem, reaprender com o passado, com as vozes e cenas de todos os tempos, é reaprender nossa humanidade e manter-nos abertos ao porvir, ao horizonte infinito das possibilidades.
Maria Helena Kühner
Pesquisadora e escritora, Rio de Janeiro.
Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 7º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2003)