Susanna Kruger é Olívia em Noite de Reis. Foto: Guga Melgar

Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Macksen Luiz – Rio de Janeiro – 06.11.1990

As Palavras de Shakespeare Sem Paixão no Palco

Shakespeare, logo no início de Noite de Reis ou O Que Quiseres, que com direção de Dudu Sandroni está em cena no Teatro Cacilda Becker, menciona que a paixão é o mais fantástico de todos os sentimentos. E é de paixão que o autor trata nesse texto repleto de ganchos dramáticos, com uma fantasia conduzida por poética amorosa e por formas de representação carregadas de humor e de vitalidade narrativa. Os personagens de Noite de Reis são movidos pela paixão, perseguem o sentimento até que se realize no encontro com o outro. Ao naufrágio em que se separam os irmãos gêmeos Viola e Sebastian (cada um imagina que o outro morreu) seguem-se trocas de identidade, amores não correspondidos e ardis para criar ou desfazer encontros. Mas o que marca a peça é a capacidade de Shakespeare em contar uma história em que a arte do disfarce, que é o próprio teatro, se transfigura numa narrativa rica em eficiência cênica. Noite de Reis faz humor com a parvonice de uns, a astúcia de alguns e a paixão de todos, numa peça de muita ação, com trama que enreda o espectador numa sequência de acontecimentos que os próprios personagens ‘criticam’ ao constatarem que se o que vivem “tivesse sido representado, diriam que é uma situação improvável”. A ação é antecipada por aqueles que urdem o enredo, anunciando aquilo que ao provocar fazem acontecer.

Não há, portanto, o inesperado, mas o autor oferece à plateia a maneira como cada um dos personagens reage às armadilhas que lhe são preparadas.

Nada do que é, é o que é, diz Feste, o bobo, a propósito do jogo de espelhos e da troca de identidades em que se misturam as vontades e os sentimentos de todos. O mesmo bobo cogita que tudo a que assiste possa ser apenas um sonho. É nessa ambiguidade, no jogo das aparências que Noite de Reis alimenta as múltiplas situações que impulsionam a história. As cartas e os truques que fazem com que os fatos se deflagrem transforma o texto num exemplo de uma história “popular” com aquele extraordinário uso que Shakespeare fazia da palavra. O desafio de qualquer diretor teatral diante de Noite de Reis é o de emprestar a essa história de escrita habilidosa uma fluência e colorido que permitam absorver esse espírito de “novelão” fantasioso. Há na montagem de Dudu Sandroni um impulso juvenil, como se nesse primeiro espetáculo para adultos prolongasse o seu trabalho na área do teatro para crianças. Mas Dudu não confere à sua leitura de Noite de Reis qualquer conceito: tudo parece se esgotar na tentativa de narrar uma história sem muita atenção à construção da peça. A direção torna indefinida, sem registro autoral mais transparente. Dudu Sandroni limita-se a ordenar cenicamente a sucessão de cenas, sem imprimir-lhe marca que justifique no palco uma escolha intelectual de gabinete.

O cenário de Sérgio Silveira, que cria no Cacilda Becker uma área de representação em forma de corredor (as arquibancadas delimitam, lateralmente, o palco), oferece uma vitalidade de estética juvenil. As cortinas desenhadas com apliques de retalhos fazem referência ao movimento hippy sem, contudo, criar uma satisfatória solução cenográfica. As duas árvores que compõem a cena, por exemplo, são canhestras. Os figurinos de Lídia Kosovski ameaçam explorar, através de signos contemporâneos como o jeans e o tênis, vestimentas de outras épocas. Mas essa ideia não se desenvolve, já que os planejamentos e o uso de materiais carregados revertem numa indumentária tradicional e de pouca teatralidade. Aos atores foi imposta uma linha por demais afetada, como se houvesse necessidade de seguir uma “maneira shakespeariana de representação”. O elenco procura estabelecer um tom solene, mas sem nenhuma base interpretativa que o sustente. Desta forma, a Viola de Adriana Maia se reduz a um recitativo sem expressividade. Antonio Gonzalez, como Duque Orsino, tem uma afetação desmedida. Charles Myara é um Malévolo caricatural. Luiz Carlos Persegani faz um bobo que desperdiça os melhores diálogos da peça. Lícia Manzo, além da estridência vocal, padece de uma emissão vocal em que divide, um tanto arbitrariamente, a frase. Susana Kruger dá dignidade à Olívia, mas sem nuançá-la. Os restantes, entre a farsa infantilizada e a inexperiência, em especial os dois guardas, tornam um tanto pesadas as três horas de duração da montagem.

Noite de Reis é um indiscutível esforço do grupo de jovens em enfrentar uma peça fascinante por suas inúmeras possibilidades expressivas. Mas o espetáculo de Dudu Sandroni parece ser apenas um esforço irrealizado que fica aquém dos desejos de contar inventivamente uma história excepcionalmente bem escrita.

Cotação: 1 estrela