Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Ricardo Schöpke – Rio de Janeiro – 30.01.2010

Diálogo entre a tradição oral e o teatro artesanal 

Realizado pela Barangandão Companhia Artística, o espetáculo A Moura Torta traz os contos populares para os palcos.

A humanidade é povoada por mitos e lendas, histórias que são contadas e recontadas através da tradição oral. Muitas vezes não sabemos exatamente onde começa a lenda e onde termina a realidade. Os mitos são vivos enquanto passam de geração em geração, e quando conseguem perpetuar a verdadeira essência de um povo. Há mais de 200 povos indígenas em nosso país e centenas de línguas. Graças à tradição oral é que podemos conhecer toda as histórias que povoam o inconsciente coletivo e o imaginário popular. Esta arte milenar nos leva a conhecer profundamente a alma e a cultura de um povo, e um mundo repleto de sonhos, de magia e de esperanças às vezes nunca visitadas.

A transposição de contos populares para o teatro tem sido uma característica da pesquisa realizada pela Barangandão Companhia Artística, grupo que se formou recentemente, mas que possui em seus quadros profissionais experientes nas artes cênicas e que estreia agora com o espetáculo A Moura Torta.

A principal proposta da companhia é continuar a pesquisa sobre a cultura popular, mas especificamente dos contos, atividade que já trouxe espetáculos de qualidade comprovada, como, por exemplo, Maria Borralheira, que concorreu a sete indicações ao prêmio Maria Clara Machado em 2007.

A Moura Torta conta a versão brasileira da história que é mais conhecida em suas variantes europeias. O conto chegou ao Brasil com os navegantes e se difundiu por todo país. Em todas as regiões encontramos versões com pequenas variações, principalmente no princípio e nos castigos dados para a vilã. A Moura Torta, nome mais popular da história, faz alusão à invasão da Europa pelos mouros: esta foi uma forma encontrada para denegrir a imagem do invasor.

Referências às velhas feiticeiras, cegas de um olho, misteriosas, sinistras e chamadas de “mouras” eram constantes.

A peça conta a história de dois artistas mambembes: um contador de histórias e o outro violeiro. A narrativa gira em torno das aventuras e desventuras de um príncipe que faz uma viagem ao redor do mundo. Através de experiências fantásticas em um mundo mágico, ele encontra uma linda jovem, entretanto a malvada Moura Torta consegue ludibriar o príncipe e se coloca no lugar da sua amada. O príncipe vive assim muitas aventuras até reencontrar o seu verdadeiro amor escondido dentro de uma fruta.

O texto escrito por Augusto Pessôa é bastante fluido. Ele conta essa história fazendo-se valer também do expediente do conto de acumulação e repetição, uma das formas mais conhecidas de contação de histórias da tradição oral e que colabora com aprendizado da criança. Através da repetição ela consegue exercitar a sua atenção, percepção, e aguçar também a sua curiosidade em desvendar novos mundos através de novas histórias, além de conhecer os causos e ditos populares. A direção de Rubens Lima Junior colabora com o dinamismo e a liberdade que precisam ter os contadores de histórias; neste caso, um contador e um contador/violeiro. Utilizando-se de bonecos – alguns deles feitos de sucata – tecidos, plásticos que viram vulcões, adereços como caixotes, e de muita música, os contadores vão construindo a história cena a cena.

A concepção visual de Augusto Pessoa é bastante vibrante. Usando tapadeiras em tons amarelo, vermelho e laranja, cria uma cena viva. Nestas, notam-se grandes bolsos de onde saem diversos adereços que irão permitir a criação de mundos mágicos e de várias personagens que se modificam apenas pelo acréscimo de um destes objetos. Devem ser feitos apenas alguns ajustes e afinações nas tapadeiras, pois as mesmas parecem ser um pouco maiores do que a altura do teatro. Os figurinos que também acompanham os tons vibrantes do cenário – mas com algumas quebras em tons rosa e bege pastel – são muito práticos, leve, funcionais e se adéquam bem às modificações impostas a cada nova criação de personagem. O uso do boneco da velha poderia ser mais explorado, visto que ela fica pendurada em uma vareta praticamente imóvel.

A direção musical de Rodrigo Lima é excelente, desde o repertório escolhido, que é muito rico em letra e melodia, até a sua ótima execução ao violão e no canto. A iluminação de Rubens Lima Junior exerce uma função de cores ilustrativas no preenchimento do espaço, e se utiliza em vários momentos de tons verdes que não acrescentam a magia esperada à cena, e atrapalhando ainda os efeitos produzidos pelas tapadeiras. O elenco se sai muito bem. Augusto Pessôa tem um ótimo domínio na contação de histórias e Rodrigo Lima também tem um ótimo domínio corporal, musical e na contação.