Luz e corte usados com critério fazem de Morangos e Lunetas um espetáculo recomendável

Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind, Rio de Janeiro, 08.02.1985

 

O brilho da estrela Tainá

O melhor de Morangos e Lunetas, peça de Denise e Beto Crispun recém estreada no Teatro Ipanema, é um uso inteligentíssimo, e pouco habitual no teatro infantil, do corte. Com um texto despretensioso e história que a rigor lembra inúmeras outras (Tainá, uma estrela que, cansada do seu dia-a-dia sempre igual, resolve visitar a Terra), e o diretor Beto Crispun, o responsável pela iluminação, Maneco Quinderé, sem esquecer o enredo, importante, sobretudo com o realce individual de cada sequência, de cada parada obrigatória da estrela Tainá, interpretada por Patrícia Pillar. Desse modo, muito mais do que narrar uma história, Morango e Lunetas parece mostrar ao espectador infantil como narrar essa história. E, no caso de Beto Crispun e Maneco Quinderé, a preferência recaiu numa estética do corte, numa economia de gestos, cenários e palavras que não lembra nem de longe os cacoetes, estereótipos e a chatíssima infantilização interpretativa de certo teatro para crianças.

A primeira surpresa do espetáculo sem dúvida é a luz. Desde a primeira cena, enevoada, com uma figura sem contornos definidos ao fundo, à bonita fuga para o espaço da estrela e seu amigo astrônomo numa bicicleta e com o palco em completa escuridão, àquele que talvez seja o melhor achado da peça: o comandante de um navio em miniatura que o puxa, como um cão, bem na boca de cena. E Maneco Quinderé espertamente usa sem o menor pudor recurso cada vez menos utilizado pelos nossos iluminadores de teatro, à exceção talvez da luz incrível de Domingos de Oliveira em No Brilho da Gota de Sangue, de 1983: a sombra. O que desrealiza um pouco os atores e dá um clima fantástico ao espetáculo. Perfeitamente adequado à rápida passagem da estrela pela Terra, às cenas de um elevador lotado e de um navio à beira de um naufrágio.

E a direção de Beto Crispun dialoga muito bem com a luz imprevisível de Quinderé. Do mesmo modo que a iluminação recorta e destaca esta ou aquela situação, sua direção parece ter funcionado como uma espécie de tesoura sobre o texto e a dicção dos atores. Daí a surpreendente limpeza do espetáculo. Curto, medido, bem marcado, do qual talvez se pudessem reduzir um pouco as cenas do Cabaré onde Tainá vai trabalhar e a cena de plateia de Ticiana Studart, engraçada e carinhosa citação de uma cena de Regina Casé em A Farra da Terra. Pena também que o texto irregular não permita maiores voos ao espetáculo ou aos atores. O que deixa uma certa sensação de incompletude quando se assiste a Morangos e Lunetas. Do ponto de vista estritamente visual, tudo muito bem (à exceção dos excessos ‘new wave’, que fazem os atores parecerem às vezes saídos de uma revista europeia de moda de dois anos atrás); do ponto de vista verbal, a economia de meios se transforma em pobreza expressiva. Espetáculo bifronte, com um texto e um enredo de qualidade discutível e, ao mesmo tempo, direção e luz muito eficientes, Morangos e Lunetas, de toda maneira, surpreende e supera, em muito, a média dos espetáculos infantis em temporada no Rio.