Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 01.03.1985

Barra

A sensação de não estar de todo

Uma estrela que entra de repente no quarto de duas crianças e resolve leva-las para viajar pelo espaço. Um bicho que resolve fugir de seu mundo onde tudo é lilás para conhecer outras formas e cores. Outra estrela, entediada com o próprio cotidiano, que foge para a terra em busca de aventura. Um sapo e um grupo de vampiros que, sem aviso prévio, se veem subitamente transformados num príncipe e num pequeno grupo de beija-flores. Se não tivessem mais nada em comum, ao menos o “deslocamento”, certo jeito ‘gauche’, familiariza esses personagens a rigor tão distantes como estrelas, insetos, vampiros e sapos. Mas alguma coisa a mais os aproxima. São estes os protagonistas dos espetáculos infantis mais cuidados atualmente em temporada. A estrela-guia de Astro-Folias, p bichinho de O Planeta Lilás, a estrela Tainá de Morangos e Lunetas, o sapo-príncipe de Sapomorfose e seus amigos vampiros: todos eles personagens fora-de-lugar.

Crianças no espaço, estrela na Terra, o bicho de uma violeta solto nas páginas de um livro, um sapo dono de um castelo: é o hiato nítido entre o perfil do personagem e o lugar em que se encontra que serve de mote à ação dramática. É esse hiato mesmo, esse descompasso, que se dramatiza. Como se a temporada teatral se encarregasse, à maneira de uma parábola, de falar da própria “sensação de não estar de todo” tão característica à criança, a quem de certo modo, ainda não pertence ao “mundo dos brancos”. E olha para ele com distância semelhante àquela de Tainá misturada ao dia-a-dia da Terra, do Sapo transformada em Príncipe diante da vida no castelo, do bicho lilás, fora de sua violeta, para as letras e cores de um livro. É um pouco a própria imagem, portanto, que o espectador infantil vê metamorfoseada em cena, como se com fantasia de sapo ou estrela, seu próprio deslocamento, ficcionalizado, adquirisse ritmo próprio e tomasse rumos nem sempre previsíveis e por isso mesmo interessantes de ver. Mas ainda de fora, com a luneta crítica que a distância do palco empresta ao espectador.