Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 27.11.2017

Barra

Barra

Barra

Criatividade a toda prova                                               

Mequetrefe Sorrateiro revela um consistente autor, Marcello Airoldi, que estreia na dramaturgia para crianças falando com poesia (inclusive rimada) sobre a importância da preservação da memória.

Já começa muito bem. Só com sons. Sem a cortina se abrir. O público ouve os atores brincando e rodando no palco, sem vê-los. É um jeito de iniciar o espetáculo instigando a imaginação, fazendo as crianças suporem, por alguns poucos minutos (mas suficientes), o que se passa para além da cortina fechada.

Estou me referindo a Mequetrefe Sorrateiro, em cartaz só por mais um fim de semana em São Paulo, no Teatro Porto Seguro, que, aliás, se tem revelado um reduto de boas escolhas de peças para crianças nos horários vespertinos. Que esse teatro siga assim, com essa curadoria acertada.

Com direção e texto (o primeiro) a cargo de Marcello Airoldi (conhecido ator de TV, teatro e cinema), a atração surgiu para não passar despercebida. A valorização da memória de nossa infância é a chave do espetáculo, que ainda trata com sensibilidade do tema da perda, com a separação dos pais do protagonista, que acaba tendo de viver só com o pai, um músico. É sensacional a sugestão de que o menino vai ficando cada vez mais triste, sem poesia, não consegue mais reconhecer as cores e vê tudo em preto e branco – e também não ouve mais a música que o pai faz. Há frases muito bonitas sobre perda, sentimentos, amizade. Não se aproxima do tom de moral de história em nenhum momento.

O texto é daquele tipo cifrado, simbólico, cheio de metáforas, pleno de detalhes enigmáticos. Aliás, essa é uma boa palavra para definir a peça: enigmática. Tem algo que fica no ar, que propositalmente não se explica. Outras coisas se explicam, mas bem poeticamente, exigindo atenção e inteligência. A passagem do tempo, por exemplo, é criativa, despreza os limites do cronológico e lembra o nonsense brincalhão de um dos textos de que mais gosto no teatro para crianças, A Ver Estrelas, de João Falcão.  Ou seja, Mequetrefe tem uma dramaturgia que mexe com o pensamento do público, seja mirim ou adulto. Ah, e de quebra, tem outro estranhamento: é um texto todo rimado, mostrando que Airoldi realmente tem estofo para dominar as palavras.

Nada é óbvio, nada é entregue de bandeja. A trama fala bastante – e com propriedade – de transição, do rito de passagem, da dor de crescimento. É lindo quando a mãe anuncia que vai embora e o filho pede a ela que, antes de ir, que pelo menos deixe uma irmã, pra ele ter alguém para provocar. Nunca tinha visto isso no teatro para crianças, essa reação do filho pedindo uma irmã para brigar. Surge um autor consistente.

No elenco, homogêneo e integrado, o ator que faz o menino, Fagundes Emanuel, merece menção. É muito bom. Seu personagem fisicamente se parece bastante com Harry Potter. Mequetrefe é alguém enxerido, que se mete no que não é da sua conta. É justamente assim o “vilão” desta fábula, um ser sorrateiro que se intromete na vida do menino protagonista e rouba dele desde um pote de ambrosia até as histórias de sua memória, contadas pela avó.

A banda ao vivo é outra atração à parte, com três integrantes que cantam muito bem: Juh Vieira (o diretor musical e compositor), Maurício Damasceno e William Guedes. Letras (Airoldi) muito bonitas e poéticas, ritmos gostosos de ouvir.

E o espetáculo é uma festa de adereços. Existe uma preocupação muito visível em caprichar nos objetos em cena. Cada coisa que aparece foi bem pensada, bem cuidada, como o guarda-chuva encapado de forma inusitada, os tecidos que se dispõem em um varal, paninhos bordados, brinquedos de antigamente, tudo é muito bem feito. Produção esmerada. Repare ainda como há um jogo visual muito impactante no telão ao fundo, um jogo de cores, uma brincadeira com tonalidades – resultando em cenas lindas, como a da chuva ou a da orquestra regida pelo pai. Toda essa cenografia é assinada também por Marcello Airoldi. As harmoniosas animações são de Marcos Faria. Os figurinos de Marichilene Artisevskis não ficam atrás e acompanham todo esse capricho da produção, com suas peças sobrepostas, coloridas, com babados, broches, coletes, bordados, paletós, óculos, gorros, listras de todo tipo e assim por diante.

Vai perder? Corra que está acabando.

Serviço

Local: Teatro Shopping Morumbi
Endereço: Av. Roque Petroni Júnior, 1089 – Piso G – Jd. Das Acácias, São Paulo
Telefone: (11) 5183-2800
Capacidade: 250 lugares
Quando: Sábados e domingos às 16h
Sessões extras: Quintas de junho (7, 14, 21 e 28), às 14h, com ingressos a R$ 20
Duração: 60 minutos
Classificação: livre
Ingressos: R$ 50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia)
Temporada: De 5 de maio a 24 de junho de 2018