Crítica publicado em O Globo
Por Bárbara Heliodora – Rio de Janeiro – 1992
Alegre encenação de um clássico
A maior originalidade da Megera Domada, que o grupo Tapa de Eduardo Tolentino está apresentando na ágil e simpática tradução de Millor Fernandes, reside no fato de, grosso modo, não haver no espetáculo qualquer intenção senão a (perfeitamente meritória) de encenar o texto de William Shakespeare. O resultado (alvíssaras!) é uma encenação alegre e divertida na quase totalidade de sua duração. Situada em campo neutro cenográfico que lembra a arena de uma praça de touros (que não tem atribuição no programa e nos parece diretamente buscado em um espetáculo inglês que visitou o Brasil há muitos anos), o tom “para cima” da encenação fica marcado logo pelos coloridíssimos figurinos de Lola Tolentino, que poderiam ser mais bem executados e que infelizmente têm seu ponto menos satisfatório nas roupas de Catarina, pois nem o preto para o casamento e nem a pobreza de seus trajes na cena final se justificam. A direção de Eduardo Tolentino impõe bom ritmo ao andamento da intriga – e corta pouco o texto – com vários momentos de boa inventividade (os recursos de balé para Bianca ilustrar sua condição de boazinha e a pantomima de Grumio para narrar a viagem do patrão e da patroa são exemplos), e o tom um tanto exagerado do conjunto funciona na maior parte do tempo. Onde Tolentino incorre em desacertos é sempre em relação ao papel de Catarina. Afirmando no programa que a Megera foi estudada como uma reflexão sobre um modelo de dominação, o diretor perdeu-se ao não refletir sobre o todo da obra de William Shakespeare, onde a tônica dos relacionamentos interpessoais como os sóciopolíticos é a harmonia – mesmo que uma harmonia hierarquizada segundo o conceito do encadeamento dos seres, uma das dominantes filosóficas da época. Exagerando, a princípio, a violência do comportamento de Catarina, e sem aproveitar as boas dicas que Shakespeare dá para esse com uma deslavada preferência pela hipocrisia da caçula, Tolentino prejudica e muito toda a última cena da peça com uma leitura inadmissível, uma Catarina gueixa, orientalmente submissa, que diz com insuportável lentidão – e de forma totalmente incoerente com sua personalidade até então – a famosa fala final da peça, que via de regra é aproveitada para a afirmação de um machismo que Shakespeare não revela no resto de sua obra. A fala de Catarina, em maior acordo com o tom da comédia, pode ser dita com malícia e alegria, e o aspecto mais importante dela é que, se Catarina oferece a mão para que Petrucchio a pise para seu conforto, o que ele faz não é pisá-la, mas, sim, pedir um beijo à mulher: quem foi domada foi a megera, e dificilmente alguém pode recomendar a qualquer ser humano, de qualquer sexo, a sustentação de comportamento tão freneticamente agressivo. O tom adotado prejudica o espetáculo em seus momentos finais, mas nem de longe impede que ele tenha um saldo muito positivo.
De modo geral o elenco (com uma exceção, o mesmo de São Paulo) funciona bem, como um todo integrado no clima desejado: a variada e complexa criadagem (Aiman Hammoud, Gustavo Engracia, Henrique Lisboa, Sergio M. Ferreira) tem um ótimo destaque no Grumio de Guilherme Sant´Anna; Cypriano, Charles Myara e Márcia Dib são discretos em seus papeis, com Nelson Baskerville um pouco acima deles em rendimento. Clara Carvalho, Bianca, é bem mais satisfatória enquanto boazinha do que nas revelações finais, e dos personagens mais importantes a atuação mais fraca é a do pouquésimo convincente Hortênsio de Brian Penido. Denise Weinberg sofre as consequências dos exageros para a violência e para a submissão impostos pela direção, e no final está realmente muito pouco à vontade e não chega a convencer; o Petrucchio de Ernani Moraes é de longe a melhor atuação do espetáculo, inclusive por ter um senso de humor que revela não ser assim tão verdadeira toda a sua agressividade. No cômputo geral, a montagem do Tapa de A Megera Domada é um gostoso acréscimo ao panorama teatral do Rio.