Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 25.07.2018
Companhia Delas chega ao ápice de maturidade e talento
Com Mary e os Monstros Marinhos, dirigido por Rhena de Faria, o grupo nos brinda com um dos melhores espetáculos em cartaz na temporada paulistana – para todas as idades
A chamada Companhia Delas, de São Paulo, grupo formado só por atrizes, tem 17 anos de trajetória nos palcos e 11 espetáculos no currículo. Em todas as chances que tive de vê-las em cena, invariavelmente gostei, admirando o talento, a empatia com o público, a disposição para a criatividade a qualquer preço e a diversidade de linguagens.
Com Mary e os Monstros Marinhos, o grupo mais uma vez me arrebatou. Trata-se de espetáculo acima da média do que se vê atualmente no teatro, inclusive no horário noturno. Está redondíssimo, muito bem pensado, escrito, dirigido, interpretado, produzido. Tem nível para ser encenado no mundo inteiro.
Para começar a falar aqui da peça, escolho um aspecto que deve ser motivo de maior orgulho para a Companhia e para quem torce pelo teatro brasileiro: é que, para abordar a vida de uma cientista britânica do longínquo início do século 19, Mary Anning (1799-1847), as próprias atrizes (Cecília Magalhães, Julia Ianina e Thaís Medeiros) arregaçaram as mangas, mergulharam na pesquisa e produziram o texto coletivo, ao lado da diretora Rhena de Faria, que também participou da dramaturgia. Não foram em busca de um texto pronto, internacional, testado e aprovado em outras paragens. Não, ao contrário. Sem medo da extrema ousadia e dos riscos óbvios, criaram elas próprias o espetáculo que queriam, palavra por palavra, cena por cena. E o resultado não é menos do que… primoroso.
Nesse Brasil atual de nervos inflamados e intolerâncias afloradas, elas escolheram falar de um tema ultranecessário – a desigualdade entre gêneros – sem usar de panfletarismos, sem lançar mão em nenhum momento dos discursos prontos da militância raivosa. Elegeram a história de uma cientista britânica desconhecida da grande maioria do público e seguiram em cena pelo caminho da delicadeza, da fábula bem construída, da história bem contada. Que atrizes inteligentes. Que artistas perspicazes. Conseguiram, a meu ver, uma eloquência linda, bordada nas entrelinhas, e, por isso, até mais eficaz. Cativaram, assim, não só as crianças para um tema tão forte, mas também enterneceram os adultos diante da dureza de uma vida que foi o tempo todo vitimada pelo preconceito, pelo machismo, pela misoginia, pela ignorância paradoxalmente entranhada nos meios científicos mais cultos.
Num tempo em que as mulheres só podiam ser donas de casa, Mary nasceu para brincar com o irmão mais velho das mais variadas estripulias e acompanhar o pai em suas buscas por conchas, pedrinhas raras e fósseis – tudo o que menina nunca fazia na época, nem em sonho. Inspirada pelo pai, a “pequena caçadora de fósseis” virou uma mulher à frente de seu tempo, dedicada à ciência. Resultado: não foi nem sequer reconhecida em vida pelos seus feitos, entre eles o pioneirismo de mostrar ao mundo a existência de grandes répteis marítimos do tempo dos dinossauros. São os tais “monstros marinhos” do título da peça, extintos 66 milhões de anos atrás.
Com tal enredo baseado em fatos reais, o espetáculo enfrentaria as ameaças de ficar chato, biográfico em excesso, didático – um assunto árduo (os primórdios das descobertas científicas) explorado de forma difícil. Mas, não, a dramaturgia é leve, muito bem construída, de forma a evitar essas armadilhas. Contribuiu para isso a opção por fazer a maior parte da peça se passar no universo familiar da menina Mary, invadindo a rotina de sua família, ou seja, afetos mais do que fatos. A chave do espetáculo está na seguinte frase, dita logo nos primeiros minutos: “Para se conhecer uma família, nada melhor do que a hora do jantar.” Em vez de falar de uma cientista retratando apenas seu trabalho e os temas de suas investigações, ela é revelada pouco a pouco, diante de nossos olhos, por meio de um rico e detalhado retrato de como se viviam as famílias de sua época. O lar como base para a construção de uma personalidade. Grande acerto.
E quando vem a cena do jantar, espertamente ela nada mais é do que pretexto para se começar a falar do envolvimento da menina Mary com o mar e com os tais monstros marinhos – porque simplesmente começa uma goteira na sala de jantar! As gotas vão caindo, caindo, até virar praticamente uma enchente, que a menina associa ao mar e começa a sonhar com as criaturas marinhas. Uma cena que começou intimista, entre quatro paredes, se abre de repente, a partir de uma goteira, para fora dos limites da casa, simbolizando a mudança que se passa no interior da garota, que está crescendo para o mundo. Simboliza justamente isso, o novo mundo que se descortinará, a partir dali, para a curiosa protagonista.
Outro aspecto importantíssimo do espetáculo – e que deveria fazer dele, de agora em diante, um objeto constante de estudo acadêmico, por todos os que investigam o uso dos ditos ‘temas tabus’ no teatro infantil – é a presença constante da morte em toda a trama, inclusive fisicamente, na pele de uma personagem – toda vestida de branco. Sim, de branco, não de preto. A escolha por personificar a Morte em uma senhorinha sinistra, que chega nas casas com a desculpa de beber chá (e traz a própria xícara), é de uma riqueza simbólica e metafórica de se tirar o chapéu. Falar de morte é falar de vida, do jeito que é a vida, e isso acaba por fascinar as crianças, em vez de afastá-las. Aqui, mais do que falar, o que a peça faz é mostrar a morte – desafiando a todos os que ainda pensam que teatro para crianças precisa ser necessariamente alegre, colorido, eufórico, ingênuo.
A convenção é logo compreendida pela plateia: sempre que a mulher de branco entra em cena é porque mais algum personagem vai morrer. Os irmãos um a um, a vizinha, o pai, a mãe, a própria Mary – aos 47 anos. Isso cria um frisson, uma expectativa nas crianças, que é extremamente saudável para que comecem a compreender a vida a partir do que o teatro lhes oferece. A cena da morte do pai é encenada lindamente: num piscar de olhos, a mesa vira o caixão e, com a ajuda de lenços, mãe e filha fazem o cortejo – duro, agudo, cortante. Que bela direção! A morte também é explorada às vezes de jeito brincalhão e irônico, como quando a mãe vai sair de cena na companhia da mulher de branco e fica perguntando: “Onde eu estou?, Para onde que eu vou?, Qual o sentido da vida?” – perguntas que o ser humano vai se fazer para sempre.
São ricas como linguagem também as brincadeiras explícitas com as convenções do jogo teatral, como, por exemplo: A família é composta por quatro membros, pai, mãe, filho e filha, e há ‘apenas’ três atrizes no elenco, então, em dado momento, elas assumem isso para a plateia. “Olha, para o Joseph estar em cena agora, alguém precisa sair!” E outra atriz responde algo do tipo: “Não, então ninguém precisa sair, vamos deixar o Joseph por lá mesmo.”
Mais revelação brechtiana do jogo teatral: Na hora em que a menina cresce, a atriz que fazia o pai assume o papel de Mary e elas brincam: “Olha, ela cresceu e ficou a cara do pai! Só falta o bigode!” Depois ela cresce mais e quem assume o papel é a atriz que fazia a mãe, e elas brincam de novo: “Ficou a cara da mãe!” O público adulto adora, morre de rir nas poltronas. O público mirim, por sua vez, é lembrado de que está no teatro – e que no teatro pode tudo, até brincar de contar os truques das cenas.
O tempo passando é a coisa mais linda em Mary e os Monstros Marinhos. As soluções escolhidas para os anos avançarem são bastante criativas. As atrizes vão, por exemplo, subindo e descendo pelas cadeiras e mesas do cenário. É bem pensado, quase coreografado até. No texto também essa questão do tempo é poeticamente explorada, como na hora em que a filha diz ao pai: “Então, quer dizer, pai, que fóssil nada mais é do que o tempo petrificado?” Genial.
Não posso deixar de mencionar a direção de arte, a cargo da veterana Mira Haar. Que bom gosto, que senso estético, que trabalho meticuloso ela fez. O cuidado com o figurino é sensacional. A rica sobreposição de peças no corpo das atrizes é feita quase sempre diante do público, ou seja, elas vão se vestindo à vista da gente – e isso também vira linguagem desvendada, jogando a favor do espetáculo. Reparei que as peças de roupa estão muito bem passadas a ferro, um capricho de que os figurinos teatrais jamais poderiam abrir mão (imagino uma competente camareira na coxia, mas não confirmei se são as próprias atrizes que cuidam de tudo).
Na cenografia, o piso no chão que vai levantando placas com desenhos dos dinossauros e fósseis é outra grande sacada da direção de arte de Mira. Fábio Souza executou essas pinturas. Os adereços que representam os seres marítimos têm luzes acesas embutidas no interior de cada objeto, dando um efeito vistoso. As máscaras dos cientistas também são uma atração à parte. Tudo impecável. Vamos aos créditos: Helder da Rocha cuidou da criação de máscaras e monstros marinhos. E os aderecistas são Carlos Rebecca, PalhAssada Ateliê (fez o gracioso cachorro de Mary) e Oficina de Réplicas do Instituto de Geociências da USP (fósseis). Aplausos de pé para eles todos.
O cuidado com os detalhes se estende também ao design de luz do tarimbado Wagner Freire, que muda os climas com uma sutileza de craque. Tem hora que a luz fica mais aberta porque seria o tempo presente das três pesquisadoras atuais querendo escrever um livro sobre Mary. Tem hora que é a luz do passado, na intimidade da casa da família. Tem hora que é a luz do mar, onde pai e filha vão trabalhar. As entradas e saídas da personagem Morte também têm alterações de iluminação. Incrível.
Outro capricho é com a trilha sonora, especialmente composta para o espetáculo, por Arthur Decloedt. Repare no início, na reunião só com homens cientistas vestindo cabeças de fósseis. A trilha confere um ‘climão’ maravilhoso. Mais adiante, a mesma música é repetida, na hora em que Mary – já adulta – vai para uma reunião parecida e é rechaçada de lá pelos homens.
O que mais dizer de Mary e os Monstros Marinhos? Talvez me lembre de algo depois, porque se trata de um espetáculo que realmente nos estimula em vários níveis e camadas. Por enquanto, que fique aqui registrado o meu mais sincero ‘Não Perca’!
Serviço
Local: Sesc Pompeia
Endereço: Rua Clelia, 93, Pompeia, São Paulo
Telefone: (11) 3871-7700
Capacidade: 356 lugares
Quando: Sábados e domingos, às 12h (meio-dia)
Duração: 60 minutos
Classificação etária: Livre
Recomendação da produção: A partir de 6 anos
Ingressos: Crianças até 12 anos não pagam
R$ 17 (inteira), R$ 8,50 (meia-entrada) e R$ 5 (credencial Sesc)
Temporada: De 30 de junho a 29 de julho de 2018
***Haverá audiodescrição e tradução em Libras nas sessões dos dias 28 e 29 de julho