Ação na Cultura
Num conhecido filme de Dusan Makavejev, o personagem principal é um funcionário da Coca-Cola especializado em detectar e resolver problemas da companhia. Logo no início de The Coca-Cola kid, o Troubleshooter, numa sala da sede da companhia em Atlanta, observa estupefato a tela de um computador onde se descortina uma série de dados que parecem saídos de uma história de ficção científica. Estes dados informam que num lugarejo da Austrália – um lugarejo com escolas e bares, “logo habitado”, como conclui Becker, o funcionário aturdido – nenhuma gota de Coca é consumida por seus habitantes. E é para la que nosso herói do marketing parte para descobrir as razões misteriosas desta grande anormalidade. O que torna essa comédia tão curiosa é justamente o sentimento que temos de que a Coca-Cola é uma presença inquestionável em qualquer sociedade humana com pretensões a ser considerada civilizada.
O ponto de partida dessa famosa comédia australiana é sem dúvida nenhuma um grande triunfo para aqueles que nessas muitas décadas vêm desenvolvendo os planos de marketing da Coca-Cola. A companhia, que para muitos é o próprio símbolo do capitalismo (02), é talvez uma das instituições comerciais mais familiares aos consumidores de todo o mundo.
A Coca-Cola não chegou nessa posição sem investir pesadamente no planejamento de seu marketing. Isso se reflete também na maneira como a companhia aborda o marketing cultural.
A Coca-Cola e a Cultura
No Brasil, a equipe de profissionais responsáveis pelos patrocínios culturais da Coca-Cola não mais trabalha dentro da companhia, mas fora. É que a Coca-Cola terceirizou sua divisão de patrocínio cultural, e hoje ela está a cargo de uma empresa chamada Brito Produções: A Brito Produções é presidida por
Ricardo Brito, um ex-gerente de marketing cultural da Coca-Cola.
Logo na sala de entrada da Brito Produções, há um pôster da Coca-Cola muito revelador da força simbólica do refrigerante e das relações que a empresa mantém com a arte. O cartaz mostra uma série de pinturas representando uma garrafa de Coca-Cola. Essas pinturas estão enfileiradas lado a lado e cada uma delas imita as características de um grande gênio da pintura. Todos os estilos estão ali representados, desde o mais primitivo – na forma de uma pintura pré-histórica – até o mais moderno, passando por homenagens a Braque, Seurat, Munch, Volpi, Picasso, Monet, Miró, Warhol e muitos outros.
Esse pôster brincalhão, que parece ser um descendente direto daquele com as latas de sopa Campbell, de Andy Warholl, está cheio de citações pictóricas. Estas citações parecem ser uma dupla homenagem: aos artistas que o tornaram possível e à Coca que, de maneira implícita, surge como uma espécie de Mecenas ou musa inspiradora da arte.
Para Ricardo Brito, um ex-professor de Marketing de Serviço, na Escola Superior de Propaganda e Marketing, esta relação com a arte é espontânea e natural, mas também faz parte do desejo da empresa de estar envolvida com os assuntos da comunidade (03) “A Coca”, conta ele, “sempre esteve envolvida com a cultura brasileira e com as questões sociais da comunidade¹⁴; ela sempre esteve preocupada em mostrar que seu objetivo não era apenas vender refrigerantes, mas também contribuir para o desenvolvimento da sociedade”.
A Cidadania em Nível de Empresa
Há muito a Coca-Cola vinha patrocinando as artes, a educação, o esporte e várias atividades sociais. A Coca-Cola sempre mobilizou um enorme segmento da sociedade devido à sua imensa penetração no mercado, um mercado que cobre todas as regiões do país, todas as classes sociais e todas as faixas etárias. A empresa gostava de estar presente em todas as áreas, por isso pulverizava sua verba de patrocínio por onde podia, e de maneira muito pouco planejada. “O problema é que ela acabava com isso conquistando a simpatia de poucos; apenas daqueles que eram beneficiados com seu apoio; e esses beneficiados eram em geral aqueles que tinham maior acesso à companhia ou que se apresentavam melhor.
Havia, então, uma pequena participação em cada área da cultura. Num ano o patrocínio ia para um artista plástico, no outro para um livro, no seguinte para um disco, depois para um show, para um filme, e assim por diante. Embora a companhia estivesse realmente interessada em apoiar a comunidade, quando esse apoio se materializava sob a forma de marketing cultural, era preciso levar também em consideração as necessidades da empresa. “Para a Coca-Cola”, explica Brito, “era importante que ficasse claro para a comunidade que a empresa era uma boa cidadã, que estava envolvida em suas questões; para que isso se desse, para que os patrocínios da companhia ficassem mais em evidência, era preciso se concentrar em determinada área cultural”. Nesse ponto, é preciso fazer uma distinção entre as duas principais formas de apoio da empresa à sociedade. A primeira delas se dá através de doações. A Coca-Cola vem fazendo doações a diversas entidades de utilidade pública. Embora essas contribuições tragam um retorno a longo prazo – uma sociedade mais bem atendida é uma sociedade mais rica e, consequentemente, com maior poder de consumo -, elas têm um caráter filantrópico, visam beneficiar não só a comunidade, mas também a própria empresa, que lucra ao obter uma imagem simpática junto ao público e aos formadores de opinião. Para, então, obter uma maior atenção como patrocinadora das artes, a Coca-Cola resolveu concentrar seus esforços numa só área, a do teatro infantil.
A Coca e o Teatro Infantil
Por que o teatro infantil? Por uma simples questão de afinidade entre o pessoal da Coca-Cola com esse gênero de arte. Para Ricardo Brito, é preciso haver ligação emocional, uma motivação interna, para dar andamento a esse tipo de projeto. Ele lembra Tom Jobim, que dizia jamais ter feito qualquer coisa por dinheiro, apenas pelo coração. Esta é uma observação importante, quando se pensa no tipo de informação que comumente se recebe nas faculdades de comunicação e marketing. Informações que insinuam ser o marketing algo a ser planejado friamente em um laboratório, para depois ser colocado em execução.
Embora a Coca-Cola no teatro tenha sido planejada, Brito garante que isto aconteceu sem que antes houvesse um envolvimento emocional da empresa com o teatro infantil. “Sem essa relação de interesse legítimo, não existe possibilidade de um projeto ser bem sucedido, é a partir da emoção que passamos a racionalizar e a planejar”. A escolha das áreas de atuação parte de uma motivação interna e calcada na emoção individual. “Atrás da empresa estão pessoas”, lembra Brito, “e o sucesso do marketing está na capacidade de adaptação e convivência entre essas pessoas, como em qualquer outra relação”. Brito, por exemplo, não acredita na teoria de que é possível se criar um produto para depois fazer surgir no mercado consumidor uma necessidade artificial deste mesmo produto. “Isto não existe; a grande sacada é detectar
uma necessidade para então criar o produto que vai satisfazê-la. Às vezes, você pode ser a única pessoa a perceber essa necessidade. Seu trabalho, então, é mostrar ao público que a necessidade identificada e o produto criado para satisfazê-la são importantes. “O trabalho de um bom profissional é convencer as pessoas disso, sem tentar inventar um desejo inexistente”. “Em outras palavras”, continua, “criar é satisfazer necessidades reais e identificáveis”.
O teatro infantil foi, então, a escolha emocional da equipe da Coca-Cola. “Na época em que começamos a concentrar nossa atenção no teatro infantil”, conta Brito, “esse tipo de expressão artística era bastante discriminado”. A primeira forma de discriminação tinha razões financeiras, pois os donos dos espaços cênicos não viam com grande entusiasmo um gênero de espetáculo que só poderia ocupar suas casas duas vezes por semana. O teatro adulto, com seus cinco, seis ou até sete espetáculos por semana, representava uma forma mais atraente de retorno financeiro. O teatro infantil tinha então que se adaptar aos horários disponíveis. Além disso, os próprios veículos de comunicação não levam a sério o teatro infantil, ignorando-o quase por completo. Existia, contudo, um movimento dentro do teatro infantil, chamado Motim, que tentava lutar, pressionando os órgãos oficiais da cultura e teatros, para reverter essa situação. É mais ou menos nesse ponto da trajetória do teatro infantil do Brasil em que a Coca-Cola, determinada a investir mais pesadamente num setor artístico, passou a dar preferência ao teatro infantil brasileiro.
Em pouco tempo a Coca-Cola percebeu que teria que montar uma estrutura mais ampla de trabalho para dar conta da quantidade de projetos que vinham de todas as partes do Brasil. Essa chuva de pedidos se devia ao fato de ela ser a única instituição do país a apoiar o teatro infantil. Ao mesmo tempo, a companhia começou a sentir a necessidade de buscar um grande evento cultural que estivesse à altura do porte da Coca-Cola. “Queríamos mostrar que não estávamos investindo num pré-teatro, que o teatro infantil não era apenas um estágio preparatório para o teatro adulto; temos profissionais com vinte e cinco anos de experiência, como Maria Clara Machado, o que é uma prova de que o teatro infantil é apenas escrito para crianças e não por crianças”.
A partir do momento em que a Coca-Cola passou a investir com força no teatro infantil, seu patrocínio ganhou mais notoriedade e isso fez com que ela passasse a receber mais projetos de outras áreas da cultura. A empresa atingiu, por assim dizer, sua maioridade como patrocinadora cultural. A necessidade de um grande evento com a marca a Coca-Cola passou então a ser um imperativo para a companhia. “Decidimos então criar o Projeto Coca-Cola de Teatro Infantil”, conta Ricardo Brito. Esse projeto, lançado em junho 1988, incluía uma série de eventos: o Festival Maria Clara Machado, o Festival Ecologia, o Festival Coca-Cola de Teatro Jovem (que hoje acontece de dois em dois anos), e o Prêmio Coca-Cola de Teatro Jovem Além disso, os patrocínios ao teatro infantil continuaram sendo distribuídos. O envolvimento da empresa com as artes a essa altura já era tão grande que os preparativos para os eventos e patrocínios culturais ocupavam a equipe encarregada do assunto por todo o ano. Foi então preciso contratar pessoas do próprio meio teatral para dar conta de tantos projetos. Finalmente, a Coca-Cola decidiu procurar uma empresa que cuidasse apenas de seus patrocínios culturais. Era uma medida e que demonstrava quão a sério a companhia estava levando seus investimentos na cultura. Ricardo Brito deixou então a Coca-Cola para abrir a firma que prestaria esse tipo de serviço.
Essa terceirização do seu setor de patrocínio cultural deixou claro a disposição da empresa em investir pesadamente na cultura local e deixou claro qual era o seu tipo de abordagem ao marketing cultural.
Marketing Cultural: Trabalhando o Produto Através da Cultura
Como já foi dito antes, o objetivo principal do patrocínio cultural é tornar a empresa simpática aos olhos do público e dos formadores de opinião, para que seus produtos sejam mais bem aceitos no mercado consumidor. Para isso, você precisa trabalhar bem o produto. “O marketing cultural é trabalhar o produto utilizando a cultura como instrumento” diz Brito. “Trabalhamos a empresa e sua imagem através da cultura, para conseguir assim esfriar sua relação – e a de seus produtos – com a sociedade”. A Coca-Cola, como lembra o ex-diretor de marketing da companhia, é apenas o nome do principal produto da empresa. Há 30 outros produtos que também precisam ser trabalhados. “Por isto, nosso objetivo não é criar uma boa imagem para um produto, mas para a empresa que o fabrica; e o nosso caminho para isto é o teatro infantil”. Neste sentido, é absolutamente irrelevante o número de espectadores de uma peça patrocinada pela Coca-Cola. “Isto realmente não é um problema nosso”. Estamos preocupados apenas com o patrocínio e com o retorno trazido por ele”.
Estes retornos devem ser grandes, a se julgar pelo tipo de investimento que vem sendo feito. Ricardo Brito menciona uma das pesquisas anuais feitas pela Coca-Cola que apontam o projeto Coca-Cola de Teatro Jovem como o mais expressivo do país em termos de retorno. “E se você comparar o investimento que fazemos nesse projeto com o de outras companhias em outros projetos, verá que o nosso foi menor”. A maneira de investir é o que realmente importa. O trabalho do especialista em marketing cultural é estabelecer uma relação constante com os dois lados interessados no patrocínio. “Você precisa examinar atentamente tanto o lado da empresa quanto o do artista, e então tentar acomodar as duas necessidades dentro de um objeto comum”.
Para se certificar desses retornos, a empresa faz pesquisas com formadores de opinião e mantém, além disso, um contato direto com a classe artistica. O espaço gratuito ou espontâneo na mídia também é medido. O Prêmio Coca-Cola para Teatro Jovem, em 1995, conseguiu um espaço estimado em um milhão de reais.
É preciso que se faça aqui uma distinção entre marketing e merchandising na cultura. A Coca-Cola vem apoiando, por exemplo, diversos shows de música. Nestes espetáculos, o único retorno que a companhia espera obter é sob a forma de venda de seus produtos. Por essa razão, o contrato da Coca-Cola com os organizadores desses eventos os obriga a banir do local dos shows todos os concorrentes comerciais da empresa. No caso do patrocínio cultural, o interesse fundamental da companhia é em sua imagem de patrona de artes, não representando problema algum para a empresa, a venda, por exemplo, de Pepsi na área do espetáculo.
Outras Áreas de Atuação
A Coca-Cola, por influência de sua gerente de Relações Externas, Sônia Barretos (04), estendeu seu campo de atuação às artes plásticas. “Essa outra segmentação cultural”, conta Brito, “fez com que chegássemos a diferentes setores da cidade. Com o teatro infantil, a empresa atingiu pais, professores, estudantes e jornalistas; com as artes plásticas, pintores, escultores e intelectuais”. Essa área de atuação foi gradualmente se expandindo e hoje a Coca-Cola se encontra patrocinando mais de dez exposições. A associação da empresa com o Teatro fez com que a empresa passasse a ser procurada também por profissionais de cinema. Mais de 20 projetos foram recebidos e um deles, um curta-metragem chamado Árvore da Marcação, foi contemplado com patrocínio. Embora a Coca-Cola continue a ajudar vários setores da cultura, o bruto de seus investimentos vai para o teatro (algo em torno de 50%) e para as artes plásticas (mais ou menos 30%).
Correndo por fora, contudo, está o Projeto Parentins, O Festival Folclórico de Parentins, realizado no estado do Amazonas, é o maior investimento cultural da Coca-Cola, e, a se julgar pelo vulto do dinheiro investido, 2 milhões de dólares (metade da verba total gasta pela empresa na cultura), este projeto deve ser a menina dos olhos da empresa. O Projeto Parentins não está sob a responsabilidade da Brito Produções. A tarefa de organizar e planejar o marketing desse patrocínio foi entregue à agência de publicidade da Coca-Cola, a McCann-Erickson. Como convém a um festival realizado no coração da Amazônia, o produto à frente do patrocínio é o Guaraná Tai.
Parentins é uma ilha perto de Manaus onde a empresa instalou uma fábrica há cerca de quatros anos – e ali, no mês de junho, se realiza uma festa bastante popular, uma espécie carnaval de bois. A Coca-Cola vem patrocinando esse evento há dois anos e já conseguiu levar este festejo local a todo resto do Brasil, através de sua divulgação na televisão.
O Patrocínio
Não existem critérios rígidos na seleção dos eventos culturais a receber patrocínios; não é exigido nem mesmo que os espetáculos apresentem um excepcional nível de qualidade (aos espetáculos, a companhia distribui prêmios). O importante é estimular novos valores na cultura, apoiar trabalhos de pesquisa, possibilitar o sucesso comercial de certos espetáculos e poiar peças que tenham os adolescentes como público-alvo. À Coca-Cola, interessa apenas prestar apoio e ser lembrada pela comunidade como instituição que presta apoio.
O importante nesse tipo de apoio é que haja um bom conhecimento da área patrocinada, que exista uma relação direta do patrocinador com a arte a ser estimulada, caso contrário corre-se o risco de investir mal. “Mantenho uma relação direta com o teatro; estou sempre em contato com artistas e acompanho de perto os festivais internacionais. É preciso estar antenado em todas as necessidades do teatro jovem em seus caminhos, aqui e no resto do mundo, enfim é preciso entregar-se à arte que você quer apoiar”.
Assim resume Brito seu papel do patrocinador.
(01) Candido José Mendes de Almeida é bacharel em direito e tem mestrado em Estudos de Televisão pela New School for Research, Nova York. Autor de “A Arte é Capital – Visão Aplicada do Marketing Cultural” e coautor de “Marketing Cultural ao vivo”, é considerado uma das maiores autoridades da área. É consultor e professor de marketing cultural, tendo ministrado cursos em todo país. Em 1977 criou o Centro Cultural Candido Mendes. Atualmente, reide no Rio de Janeiro.
(02) Como aliás deixa claro uma outra famosa comédia, One, Two, Three, dirigida pelo veterano Billi Wilder, na qual um eficiente executivo da Coca-Cola (James Cagney) cumpre sua parte na guerra-fria ao estancar o comunismo histérico de seu genro, um berlinense do lado oriental do muro.
(03) Antes do surgimento da Brito Produções, os assuntos culturais eram de responsabilidade da Gerência de Relações com a Comunidade, na Divisão de Assuntos Externos da Companhia.
(04) Ver caso sobre Bienal de São Paulo.
Obs. Texto retirado do livro “Marketing Cultural: Cinco Casos de Sucesso”, publicado pela livraria Francisco Alves.