Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Yan Michalski – Rio de Janeiro – 21.05.1968

Amor no Reino das Minhocas

Nos bons velhos tempos do Tablado, seus integrantes cultivavam uma superstição, corroborada por provas concretas irrefutáveis, segundo o qual chuva em dia estreia dava sorte. A escrita voltou a funcionar na chuvosa quinta-feira da semana passada, quando do lançamento de Maria Minhoca, que merece, creio eu, ser colocado ao lado dos maiores e já legendários triunfos do grupo de Maria Clara Machado.

Proponho, para efeitos de apreciação, que não se considere Maria Minhoca como peça infantil ou juvenil, mas como comédia tout court: as expressões teatro infantil ou teatro juvenil conservam, por motivos que não cabe examinar aqui, uma conotação de gênero menor, que costuma ser encerrado com uma atitude de superior complacência. Ora, um quadro de um bom pintor naif não é fruto de uma experiência artística conscientemente simplificada e adaptada à capacidade de assimilação de uma classe de consumidores menos intelectualizados e sofisticados, mas apenas a expressão natural de uma certa forma de sensibilidade e de uma certa visão do mundo; da mesma forma, Maria Minhoca, peça naive, é apenas fruto de uma sensibilidade que soube guardar intatos os vínculos com a poesia e a ingenuidade da infância e da adolescência, mas que nem por isso deixa de ser plenamente adulta no que diz respeito ao domínio dos meios expressivos que emprega, e à capacidade de fazer passar a temática que escolhera pelo criativo prisma desses meios expressivos.

Uma criança ou um adolescente terão acesso fácil a alguns aspectos de Maria Minhoca; um adulto terá acesso fácil a outros dos seus aspectos; mas tanto a criança e o adolescente, como o adulto, encontrarão ali farto alimento para a sua fome de alegria, de beleza, de amor e de bom teatro: Maria Minhoca é uma das melhores e mais engraçadas comédias escritas no Brasil nos últimos anos. O seu assunto, como o de 99% de comédias que se prezam, é um romance de amor, e a sua fórmula básica, como a de 99,9% de comédias que se prezam, é o triângulo ele, ela e o outro. Por outro lado, como um autêntico comediógrafo precisa ficar atento não só aos conflitos eternos, mas também aos conflitos circunstanciais da época e do lugar onde vive, Maria Clara coloca em jogo, a seu modo naif, bem entendido, o choque do poder civil contra o poder militar: a mão da bela Minhoquinha é disputada por um capitão, que procura se valer de uma prerrogativa exclusivamente militar: o garbo; e por um civil muito pouco garboso, mas que conta com a inestimável ajuda de um amigo vivíssimo, que não deixa de ser uma versão naive de velha raposa pessedista…

Coisas da Espanha

Como sempre nas peças de Maria Clara Machado, é difícil definir exatamente onde acaba o texto e onde começa a direção; mas a realização que está no palco do Tablado é adulta e importante, principalmente, pela noção de procura estilística que encerra. A cada obra nova que Maria Clara lança no palco, o seu personalíssimo estilo machadiano se acha mais cristalizado e enriquecido por elementos novos. Em Maria Minhoca podemos distinguir claramente várias influências estilísticas que, exemplarmente fundidas e assimiladas, concorrem para a criação do estilo machadiano: a commedia dell’arte, com o seu sentido de improvisação e espontaneidade, e com a importância que dá à mimica, ao disfarce, à máscara; a sátira de costumes, com o seu sentido de malícia às vezes ambígua e subtendida, mas que, posso assegurar aos senhores pais, não fará mal nenhum às crianças!; o teatro de fantoches, com sua quebra de realismo na composição física dos personagens; e o moderníssimo teatro do nonsense, elemento dentro do qual a autora se sente aqui particularmente à vontade, conforme prova este delicioso trecho do diálogo na cena em que o amigo Fon-Fon, o pessedista, procura desviar o interesse do garboso Capitão Quartel de Maria Minhoca para a misteriosa dançarina espanhola de 17 anos, Lola Lolita Lopez de Milonga:

Quartel: Ela é rica?

Fon-fon: Rica é apelido! Riquérrima! Herdou do pai, o General Lopez Lopez, cinco fazendas em Mato Grosso…

Quartel: Em Mato Grosso?

Fon-fon: Não! Quero dizer cinco fazendas em…Mar de Espanha…e outras aí pelo mundo todo…o pai era fazendeiro do rei.

Quartel: Rei? Que rei?

Fonfon: Rei, ora! Rei por aí…

Quartel: Então além de bela, apaixonada por mim, é rica também!

Fon-fon: Mas vai deixar tudo de papel passado para o convento e para as cantoras espanholas pobres…

Quartel: (…) Virei esperá-la à meia-noite. Mas…ela vai para o convento à meia-noite, por quê?

Fon-fon: Este convento daqui só recebe moças depois de meia-noite. O senhor sabe…coisas da Espanha!

O Profissionalismo dos Amadores

Três elementos essenciais caracterizam o excelente espetáculo do Tablado: uma alegria contagiante irresistível, um altíssimo rendimento visual e um rigoroso e exemplar bom acabamento artesanal.

O primeiro desses elementos, a alegria, se deve à intensidade cômica da empostação dos desempenhos e ao dinamismo da movimentação cênica. É curioso que Maria Clara parece estar evoluindo aqui para uma concepção mais enxuta e menos prolixa da marcação: Maria Minhoca é uma das suas encenações menos corridas, o que não a impede de ser uma das mais movimentadas.

E a imaginação humorística da autora-diretora está em plena forma: a todo momento ela nos surpreende com achados de marcação cujo efeito cômico é irresistível.

O segundo elemento, o rendimento visual, se deve, em grande parte, à sensibilidade desta grande artista que é Ana Letícia, autora do cenário e dos figurinos. O cenário, desta vez mais simples, menos móvel, menos influenciado por técnicas orientais, é de uma fabulosa identidade poética; as duas árvores, por exemplo, são simplesmente comoventes. Na concepção dos acessórios há achados hilariantes. E a rebuscada harmonia cromática do conjunto cenário/figurinos dá ao espetáculo uma beleza plástica excepcional. Nesse setor de expressão visual merece destaque, também, a deliciosa coreografia de Nelly Laport. E a diretora soube aproveitar e valorizar ao máximo a contribuição da cenógrafa/figurinista e da coreógrafa, inclusive através de uma iluminação sóbria e equilibrada.

Quanto ao terceiro aspecto, o bom acabamento artesanal, já se tornou lugar comum, em se tratando de realizações do Tablado, elogiar a limpeza do espetáculo, a segurança rítmica, a firme execução e a precisa sincronização de todas as partes que compõem a encenação. Em Maria Minhoca esse bom acabamento chega a ser virtuosístico.

O jovem compositor Egberto Amim compôs para Maria Minhoca melodias simples e charmosas, e conseguiu dar ao seu trabalho um coerente toque de caixinha de música, extremamente adequado para o tom do espetáculo. Não me conformo, apenas, com a execução das canções em playback, principalmente da maneira indecisa como foi feita aqui, com os atores cantarolando baixinho. Ou se deixa os atores cantarem e se dispensa o play back, ou então só se usa o playback. A tentativa de se chegar a um meio-termo resultou aqui bastante insatisfatória. Ótimos e muito engraçados os efeitos de sonoplastia de Sonny Albertson.

Aproveitar os Defeitos

Mais uma vez, Maria Clara Machado teve de lutar contra a inexperiência e a pouca vivência dos seus intérpretes. O elenco de Maria Minhoca não é melhor do que o de todos os recentes espetáculos do Tablado; mas desta vez Maria Clara conseguiu, como nunca, aproveitar as deficiências naturais de alguns intérpretes, e canalizá-los no sentido de uma composição cômica engraçadíssima. Renê Reis Braga, por exemplo, tem uma dicção que deveria, aparentemente, impedi-lo de pensar em subir num palco, mas que aqui se transforma num elemento positivo de uma composição colorida da grotesca figura de Mister João Buldogue. Também Roberto Filizolla parece ser ainda um ator muito gauche, mas esta gaucherie resulta num contraste divertido, em se tratando do garboso Capitão Quartel. Maria Lupicínia parece que nasceu para interpretar a dengosa Maria Minhoca, e o faz com muita graça e com apreciável sentido crítico. Jack Philosophe é um predestinado: seu nome, ou pseudônimo?, parece ser muito mais um nome de personagem de Maria Clara Machado do que nome de gente em carne e osso; e o ator faz justiça a essa predestinação, construindo um Chiquinho Colibri extremamente sincero e verdadeiro, dentro da sua estilizada movimentação de boneco de mola. Mas a mais grata revelação do elenco é Marcos Aníbal: versátil, descontraído, dono de forte impulso cômico, ele contribui decisivamente, com a sua presença, para que algumas cenas, aliás, esplendidamente marcadas pela diretora, se tornem por assim dizer antológicas: a cena da luta de Colibri com o leão, por exemplo, ou a cantada da dançarina espanhola no Capitão Quartel.

Tenho plena consciência de estar pesando bem minhas palavras ao afirmar que Maria Minhoca é o melhor espetáculo atualmente em cartaz na Guanabara.