Crítica publicada na Tribuna da Imprensa
Por Fausto Wolff – Rio de Janeiro – 05.06.1968
Uma Peça que as Crianças Também Compreendem
No meio de uma plateia composta de crianças e adolescentes, assisti, sábado último, no O Tablado, a última peça de Maria Clara Machado, dirigida pela autora, Maria Minhoca. Sem gritos próximos da histeria, motivados pela maioria das supostas “peças infantis”, cujos autores e diretores, sem o menor conhecimento da psicologia infantil, se aproveitam de gritos, pulos, berros e de idiossincrasias, entre bem e mal, limpo e sujo, certo e errado, para conseguirem reações das crianças, vi o público de Maria Clara Machado reagir com risadas salutares durante todo o transcorrer da pecinha.
Qual é o fenômeno Maria Clara Machado? Como a sua linguagem atinge as crianças e as faz acompanharem a ação, sem que a autora seja obrigada a apelar para convenções, ilusões, mentiras ou, mesmo, para o fácil proselitismo? Como Maria Clara consegue ser, ao mesmo tempo, contadora de estórias e crítica de costumes, falando uma linguagem próxima da fábula, aceita por adultos e crianças? A resposta é simples: Maria Clara acredita na criança. Acredita na sabedoria, na inteligência, na percepção, no espírito crítico, na visão pura e ainda não embotada por leis e contratos sociais, das crianças. Maria Clara não precisa apelar para mentiras, tais como fadas, Papai Noel e outras ilusões para mostrar às crianças que a vida é bela e que vale a pena vive-la com toda a intensidade. Maria Clara joga com a fantasia das crianças, utilizando elementos tirados da realidade. Nesta peça, Maria Minhoca, por exemplo, apresenta a estória de um pai dominador que quer casar a filha com um homem forte, um capitão do Exército, contra a vontade desta, que prefere um rapaz não tão forte, não tão poderoso, mas do qual ela gosta. Faz, portanto, uma crítica de costumes, denunciando às crianças determinadas convenções sociais, como o casamento por interesse, por exemplo, sem, no entanto, aparecer como professora, conselheira ou qualquer outra coisa no gênero, nas entrelinhas. E faz tudo isso com tranquilidade, pois para as crianças, nada que é humano é feio e é praticamente impossível esconder-lhes a verdade. Os adultos não fazem outra coisa senão mentir para as crianças e, a maioria deles mente, ignorantemente, “por amor”. É tão comum ouvir pais dizerem: “Queremos proteger nossos filhos da vida”. Mas será a vida uma coisa tão feia, que deva ser colorida com pinceladas irreais? Sem fazer comícios, em Maria Minhoca, Maria Clara ridiculariza o poder, a força, os preconceitos, a pretensão, a mentira e, o que é maravilhoso, as crianças compreendem. Honestamente, será muito difícil transformar uma criança habituada a assistir as peças infantis do O Tablado num robot, inseguro, temeroso e, na maioria das vezes, por isso mesmo, hipócrita e mentiroso.
Todo ano, Maria Clara Machado fornece atores bastante razoáveis para o nosso pobre profissionalismo. Quando se pensa que não conseguirá outros, ela surge com novos estreantes. Este o caso de Maria Minhoca, espetáculo onde, creio, à exceção de Marcos Aníbal, Pedro Fon-Fon, os outros quatro jamais subiram antes sobre um palco. É bem verdade que à exceção de Aníbal, não sei se os outros resultarão atores, por uma série de deficiências técnicas, principalmente vocais. A verdade, entretanto, é que, quer na menina Maria Lupicínia, Maria Minhoca; quer nos rapazes René Reis Braga, mister João Buldog; Roberto Filizolla, Capitão Quartel, e Jack Philosophe, Chiquinho Colibri, tiveram seus defeitos vocais praticamente transformados em qualidades por Maria Clara Machado. Evidentemente que não será possível fazer isso em todas as peças, mas nessa funcionou, pois para grande parte do público, as vozes completamente deseducadas apareciam como produto de uma longa elaboração vocal. Marcos Aníbal, entretanto, é quem vive o seu papel com maior naturalidade e desenvoltura, enquanto que Roberto Filizolla, uma mistura de Jorge Cherques e Burt Lancaster, infelizmente, ainda não acredita o suficientemente em seu papel e as falas saem artificiais. Felizmente, sua parte é artificial, o que, também, vem a seu favor. Como em todos os espetáculos de Maria Clara Machado, a limpeza da encenação é o forte. Responsabilize-se por esta limpeza o espírito de equipe do grupo, do qual fazem parte a talentosa Ana Letícia, cenário e figurinos; Egberto Amim, música e Nelly Laport, coreografia. Música, dança, cenários e figurinos fundem-se para fazer do espetáculo, a unidade, o artista coletivo. No dia em que tivermos centenas de Tablados espalhados pelo Brasil e compreendidos pelo poder público, estou certo, teremos a melhor nova geração do mundo: uma juventude pronta para a vida e para a felicidade.