Maria Lupicínia e Jack Philosophe numa cena de Maria Minhoca, em cena no Tablado

Crítica publicada no Diário de Notícias
Por Henrique Oscar – Rio de Janeiro – 23.05.1968

Maria Minhoca

Sem muita publicidade em torno de seu novo lançamento, de maneira bastante discreta, o Tablado acaba de estrear um dos seus melhores espetáculos, pelo menos dos últimos anos, com a peça de Maria Clara Machado, Maria Minhoca. Se nas obras da autora sempre houve um equilíbrio entre uma poesia de indiscutível qualidade, cheguei a falar aqui de Saint Exupéry, a propósito de Pluft, o Fantasminha e O Cavalinho Azul, por exemplo, e uma graça viva e inteligente, que temperava aquela outra componente, nas peças mais recentes, sem abandonar de maneira alguma sua veia lírica, que continua do mesmo nível, Maria Clara Machado tem desenvolvido mais ainda um lado humorístico.

Essa transformação já perceptível em A Menina e O Vento e O Diamante do Grão Mogol, aparece ainda mais desenvolvida nesta nova peça. A autora, com lucidez, objetividade e sentido crítico, envereda claramente por uma linha de desmistificação dos lugares comuns e tolices anacrônicas comuns em nosso ensino tradicional, bem como de um patrioteirismo oco e ridículo, habitualmente nele difundido. As crianças aprendem assim a rir do que é bobagem, artificial e postiço, e a não se deixarem envolver por noções bobas e desusadas.

Sabedora, contudo, como a mais autorizada especialista em teatro infantil do país, que é de qualquer forma diretamente didática seria, além de absurda como forma, catastrófica como resultado, Maria Clara Machado urde tramas divertidíssimas, de grande animação e do maior interesse, nas quais sua posição de combate das formas convencionais e ultrapassadas se insere normal e lógicamente, como elemento naturalmente integrado ao entrecho e a ele pertencente. A sadia irreverência do teatro de Maria Clara Machado, que é a seu modo uma reformadora, e com que procura demolir os clichês obsoletos que atravancam o mundo das crianças e dos jovens, valeu-lhe inclusive, uma ameaça de proibição desta sua peça no Nordeste…

Revelar aqui os achados, as piadas, as gozações, a comicidade irresistível de Maria Minhoca seria reduzir de muito o prazer da plateia já alfabetizada que possa ler estas linhas. Por isso, tenho de limitar-me a recomendar aos pais que não se limitem a mandar seus velhos vê-la, mas que vão com eles. E aqueles que não os tem, mas preservaram alguma sensibilidade, sentido do humor e bom gosto, sugiro que não hesitem em misturar-se ao público infantil, para no meio dele deliciarem-se com a história do amor de Maria Minhoca e Chiquinho Colibri, ajudado por Pedro Fon-Fon, mas dificultado pela visão estreita de Mister João Buldog e pelas bravatas do Capitão Quartel. Aliás, a respeito das já mencionadas Pluft, o Fantasminha e O Cavalinho Azul, tive oportunidade de assinalar que, obras formalmente destinadas à infância, possuíam numerosos atrativos para esse público, mas também, outros valores que, possivelmente, só a plateia adulta apreciaria devidamente. Maria Minhoca é mais uma obra para fazer o encanto de espectadores de todas as idades…

Às qualidades da peça somam-se às da encenação. A direção da própria autora é excelente. As marcações são muito divertidas, as soluções sempre interessantes, tudo dá muito certo. Pode-se dizer que Maria Clara Machado esteve tão inspirada ao escrever sua peça quanto ao montá-la. Algo que sempre vejo sem muito entusiasmo é a solução do play-back. Acho que canto e execução musical ao vivo tem outro rendimento, mas sei que isso nem sempre é possível e que, entre nós, o recurso é muitas vezes inevitável.

O espetáculo conta ainda com um cenário daquele extraordinário gosto que Ana Letícia acostumou todos a esperarem de seus trabalhos. Suas roupas são também muito boas, algumas com detalhes engraçadíssimos. A música do jovem compositor Egberto Amim pareceu-me não só bonita em si mesma, como funcional e adequada. A coreografia de Nelly Laport completa a valorização desse espetáculo animado, movimentado, com suficiente ação para assegurar o interesse do público mais jovem, mas sem a condenável exacerbação, o tumulto que é lamentavelmente comum nas nossa representações rotineiras para crianças.

A interpretação, plenamente satisfatória, não se sentindo qualquer bisonhice nos atores que, bem orientados, dão bom rendimento a seus trabalhos. Maria Lupicínia faz a protagonista com talento e propriedade. Reparem, por exemplo, em seus momentos no balcão, excelentes, quando dramatiza à velha moda. Jack Philosophe é o próprio Chiquinho Colibri, de que se desincumbe  com muita graça natural e uma simpatia irresistível. Marcus Aníbal aparece ainda mais espontâneo, descontraído e comunicativo em Pedro Fon-Fon que em seus desempenhos anteriores. Sua presença em cena é sempre motivo de animação e graça. A figura caricatural de René Reis Braga como Mister João Buldog funciona muito e Roberto Filizola compõe adequadamente o anti-herói Capitão Quartel, cujo ridículo sublinha.

Acho inútil uma conclusão insistindo no bom gosto, no acabamento, no capricho, na qualidade dessa nova produção do Tablado, que se situa acima do nível sempre alto que caracteriza as realizações do grupo. Já o disse demais. Uma última palavra, pois, para o belo programa-cartaz. É de um artista de quinze anos: João Coimbra e vale a pena comprá-lo para guardá-lo como lembrança do espetáculo e mesmo por seu valor decorativo.