Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 04.05.1979
Continências e Tropeços na Conquista de Maria Minhoca
Ao contrário do que se poderia pensar, as peças infantis não ficam intocadas pelas mudanças ocorridas no processo histórico. Tais mudanças determinam, para uma mesma peça, uma gama de significações bem diferentes que se vão atualizando em suas diversas encenações. Muitas vezes alguns significados já estão no texto original, mas torna-se necessária uma modificação na perspectiva histórica para que venham a ser percebidos mais claramente. Isso fica bem nítido na remontagem de Maria Minhoca, peça de Maria Clara Machado, em cartaz até 28 de junho no Teatro Cândido Mendes, sob a direção de Eduardo Machado.
A trama da peça é simples. Maria Minhoca, moça casadoira, tem dois pretendentes: o Capitão Quartel, escolhido pelo pai, e Chiquinho Colibri, por quem ela está apaixonada. As ações desenrolam-se em torno das tentativas efetuadas por Colibri, com a ajuda de seu amigo Fon-Fon, para impressionar João Buldog e conseguir casas com sua filha.
Originalmente, o que se percebe no texto de Maria Clara Machado é uma ridicularização do pretendente certinho que conquista o pai, mas, não a filha. O personagem move-se marchando ou trotando sobre cavalos imaginários. Marchas, farda e continências caracterizam disciplinarmente o Capitão Quartel, em oposição aos tropeços de Chiquinho Colibri. Na nova montagem militariza-se também a figura de Mister Buldog. O que, por um lado, acentua a crítica e aproveita dados quase irresistíveis já presentes no texto, mas, por outro, torna as interpretações possíveis por demais claras. Não se deixa assim ao espectador a possibilidade de lançar mão de suas próprias referências.
A nova encenação não se limita, no entanto, à atualização política do texto. Há também um bom aproveitamento do exíguo espaço representado pelo palco e dos aspectos cômicos sobretudo do personagem Fon-Fon que exerce na peça a função de criar e solucionar as situações cômicas de que participam obrigatoriamente os demais personagens. Tenta inicialmente, sem nenhum êxito, ensinar o amigo Colibri a marchar. Nessa tentativa, a exagerada repetição dos gestos e marchas do Capitão Quartel, se não aumenta as simpatias de Buldog por Colibri, contribui para a ridicularização do benquisto pretendente. De instrutor, passa Fon-Fon a leão, para permitir que o amigo se mostre corajoso, vencendo-o. A cena de coragem, entretanto, não dá certo. Na última tentativa, uma nova transformação de Fon-Fon: veste-se de espanhola para conquistar o Capitão Quartel e convencer Buldog da traição do pretendente. O que se realiza, por fim, comicamente.
A constante possibilidade de desdobramento de Fon-Fon transparece na sua utilização de um fantoche na mão, com o qual, algumas vezes, enuncia ironicamente suas falas. Seu desdobramento em fantoche complementa-se nas transformações em instrutor, leão e espanhola. Cabendo a um Pedro Fon-Fon bem interpretado por Ricardo Maurício, a mobilização dos recursos cômicos do espetáculo, acompanhado da caracterização dos personagens efetuada pelos demais atores. Problemática também a distância entre atores e personagens pois, ao mesmo tempo em que amplia a perspectiva crítica, dificulta o envolvimento da criança com o espetáculo.
Bom o cenário, ressalva feita para o parapeito da janela de Maria Minhoca que caiu várias vezes. A casa está representada sem paredes, daí a complementação das ações realizadas na praça em frente pelos movimentos de Buldog e sua filha. A simultaneidade das ações corresponde ao problema das pequenas dimensões do palco e dinamiza a trama cênica.
Trata-se de uma boa remontagem de Maria Minhoca, com a atualização de algumas referências e interessante aproveitamento, sobretudo das ações que se realizam simultaneamente e dos desdobramentos do personagem-arlequim Fon-Fon.