Márcia Frederico

Heloisa Frederico

Barra

Marcos Edom

 

 

 

 

 

 

Barra

Esta entrevista fez parte do Seminário Permanente de Teatro para Infância e Juventude, realizada no Teatro Ziembinski, em 30 de setembro de 1997

Barra

Integrantes 
Marcos Edom, Márcia Frederico, Heloísa Frederico, Carmen Estela, Ricardo Venâncio

Dudu Sandroni
Como e quando surgiu a ideia de trabalhar com teatro medieval?

Márcia Frederico
Nós estamos completando agora, em 1998, dez anos de fundação. Eu fui realmente a criadora da ideia de trabalhar com esse teatro do fim da Idade Média – a farsa medieval, como é chamada. Isso tudo surgiu durante um curso de formação de ator que eu fazia na CAL – Centro de Artes de Laranjeiras. O Yan Michalski, um crítico importantíssimo na época e um dos fundadores da CAL, era nosso professor de Literatura Dramática, matéria que envolvia os vários momentos da história do teatro. Na época, fiz parte do grupo que se dedicava à farsa medieval. E, ali, nós começamos a identificar uma dificuldade. Os textos que eram dados sobre farsa medieval eram sempre os mesmos, os do mestre Pathelin. Comecei a ficar curiosa. Será que não havia outros autores num período tão longo, numa fase em que a farsa saía das igrejas, ganhava as ruas, a voz do povo? Por que essa falta de registro? Por que a gente não tinha acesso a outras informações? Diante disso, fomos procurar e acabamos achando outras duas peças para estudar. O Pastelão e a Torta e O Homem que Casou com a Mulher Braba. Montamos as duas para praticar, mas minha curiosidade pedia mais. Quando me formei, convidei alguns alunos que não fizeram parte deste grupo original da CAL e saímos em busca de mais informações e de professores de história. E aí, a coisa foi.

Dudu
Qual é a função de cada um na companhia?

Márcia
Desde o início, buscamos um trabalho de grupo operativo, desenvolvido pela Carmen Estela, que é uma espécie de diferencial do nosso trabalho. O que a Carmen fez foi justamente dar a sustentação necessária para que o grupo pudesse se estruturar pensando em longo prazo, sem uma visão imediatista ou emocional do trabalho. E hoje, quase dez anos depois, temos aí o nosso núcleo de trabalho, formado por quatro pessoas: o Ricardo Venâncio, nosso diretor artístico, que dirige os espetáculos, cria cenários, figurinos, adereços, máscaras e a coreografia (ele trabalha muito com ginástica rítmica e cria, com elementos como arco, bola, fitas e cordas, uma linguagem teatral própria); a Heloísa, que se encarrega de toda a pesquisa histórica e literária, além da tradução de textos, e que divide com o Ricardo a preocupação com o visual da companhia, o Marcos Edom, na direção de produção, administração da companhia e planejamento estratégico; e eu, que fico com a parte de adaptação e criação dos textos, além da produção e, claro, do trabalho de atriz, que é meu primeiro foco.

Dudu
Vocês sempre trabalham com atores convidados?

Márcia
Trabalhamos com um grupo de atores que a gente vai convidando, de acordo com o espetáculo e que, de certo modo, acaba virando um grupo quase permanente. O Rogério Freitas e o Evandro Melo, por exemplo, estão conosco praticamente desde o começo. E também contamos com o Eduardo Andrade, o famoso palhaço Dudu dos Irmãos Brothers. Temos hoje um quadro de 20 a 30 atores.

Dudu
Mas quem cuida da adaptação de cenários e da parte técnica, já que vocês trabalham com espetáculos itinerantes?

Márcia
Toda a estratégia de navegação do nosso barco e a parte técnica de montagem e adaptação dos cenários fica por conta do Marcos Edom. Como fazemos um trabalho itinerante, em praças e ruas, essa função é importantíssima.

Dudu
Essa concepção de companhia nasceu no próprio processo de trabalho?

Márcia
No começo, havia apenas um grupo, meio emocional, desorientado, desorganizado. Funcionávamos de modo muito apaixonado – o que, às vezes, levava à desorganização interna. Até o momento em que decidimos repensar tudo, organizar, fazer uma divisão de tarefas.

Dudu
Foi a partir do segundo trabalho, O Pastelão e a Torta, que a ideia de companhia apareceu?

Márcia
Não. A companhia se formou mesmo no terceiro trabalho, Enganado, Surrado e… Contente.

Dudu
Por que um trabalho voltado para a questão medieval? Além do encanto, há alguma relação com o Brasil?

Márcia
Sempre houve o interesse por pensar, pesquisar por que se sabe tão pouco. Vale dizer que a farsa se passava em uma época muito próxima do descobrimento do Brasil, um periodozinho do qual veio toda a influência que ainda hoje está bastante preservada no Nordeste. A gente fala do sertão medieval e, de fato, tudo está lá, muito presente, na própria forma da literatura de cordel. E a farsa era uma linguagem específica do ator, uma forma de relação direta do ator com a plateia.. Tanto que Eric Bentley diz que “a farsa é a quintessência do teatro.” Porque você mostra o tempo todo, na cena, que aquilo é teatro. Você não tem nenhuma pretensão de iludir o público com algum tom de realismo: ao contrário, a farsa é uma forma exageradamente teatral, em que você mascara e desmascara os personagens e, mesmo estando na pele de uma criatura, você, como ator, comunica-se com a plateia. Essa relação muito direta e muito desnuda era uma das coisas que mais me interessavam. Depois, de um tempo para cá, a pesquisa foi ficando mais complexa, em termos de cenário, de visual. Quer dizer: tudo isso foi se “complexificando” na medida em que trouxemos o espetáculo para o palco, deixando de trabalhar só na rua, para, enfim, ver como iria funcionar essa linguagem num outro espaço. Embora fosse ideal estar na praça, falando mais diretamente, fisicamente mais próximo do público, havia o desejo de experimentar essa comunicação num palco. E vimos que também dava resultado. Então, a gente foi, foi, foi e agora está no Gláucio Gill, com O Médico Camponês, um espetáculo que é fruto dessa busca de retorno às origens, que era também a busca da simplificação. Porque, às vezes, a gente viaja muito mais com o tipo de espetáculo que não depende tanto das máquinas, do cenário, dessa coisa toda da iluminação, mas que é um trabalho que valoriza o ator…

Heloísa Frederico
O período me­dieval permite um paralelo com a nossa época e com o nosso país: por exemplo, a dificuldade de obter dinheiro – coisa que a companhia não teve no começo e, aliás, não tem até hoje -, é um ponto em comum entre o medieval e o nosso momento brasileiro. Sem falar que os temas medievais têm tudo a ver com a atualidade brasileira. O Pastelão e a Torta era a história de dois mendigos morrendo de fome, que precisavam bolar um jeitinho brasileiro de conseguir alguma comida. Há paralelos incríveis entre as duas épocas, aliás, só o caráter atemporal e universal de certas obras permite que elas sobrevivam – e essas peças todas sobreviveram até os dias de hoje, em sua maioria, através da tradição oral, ao lado de alguns textos que foram preservados. Até os improvisos têm tudo a ver com a história da companhia. Por exemplo: precisava-se fazer o figurino, mas ninguém sabia costurar, não havia costureira. Fazer o quê? Se não havia dinheiro para contratar uma costureira, o jeito era fazer como os medievais: pegar uma roupa e botar por cima da outra. Pegar a perna da calça, juntar, fazer uma manga. Nessa época, eu não estava trabalhando diretamente, eu só fazia uma espécie de assessoria na parte de pesquisa. E eu dizia: o teatro, para mim, tem que ser maior do que a vida. E se tem que ser maior do que a vida, tem que ser maior inclusive no figurino – o ator tem que sobressair no meio do povo. Então, se a manga da camisa tem que ser maior do que a manga de camisa do dia-a-dia, pega a perna da calça, enfia no braço, vai empurrando, empurrando, e ela vai sanfonando, vai virando uma roupa medieval. Havia, portanto, um aspecto medieval, de dificuldade e improvisação, que aproximava a Idade Média do Brasil e aproximava a Idade Média da própria companhia. Porque havia ricos e pobres, como há aqui, hoje, e os pobres também se viravam para sobreviver.

Dudu
A companhia de vocês tem uma coisa ótima, que é o fato de ser, digamos, setorizada e organizada. Tem o Marquinho Edom fazendo produção; o Ricardo Venâncio na direção artística e por aí vai, cada um com sua função. Em geral, o que a gente vê é que os elencos se revezam nas tarefas de produção. Como se dá a questão da pesquisa no trabalho concreto?

Márcia
A gente realmente pesquisa muito, tanto a respeito da seleção de textos quanto sobre a época, ou a região de onde o texto vem. Primeiro, a gente comentou: “Bom, de repente, montamos uma trilogia italiana.” E isso foi seguindo o fluxo do que estava sendo lido, pesquisado. Então, descobri uma coisa: “Ah! Mas aquilo também é legal. Peraí, vamos ver o que é melhor, vamos ver com o que a gente se identifica nesse momento.” Ou então: “Não, vamos guardar isso aqui, porque depois a gente pode querer de volta.” E as coisas foram seguindo esse fluxo, quase natural, com todo o trabalho de pesquisa funcionando como num verdadeiro grupo de estudo. Em certos momentos, a gente sentava diante do material e ia investigando: “Olha, há uma citação a respeito do Hans Sachs, um autor alemão que parece que tem 300 farsas… O que é isso? A gente nunca ouviu falar!” Então, saíamos atrás daquilo. E aí levávamos, às vezes, anos atrás daquilo, entendeu? E, um dia, a gente descobre que, na ópera do Wagner, há uma menção dos mestres cantores de Nuremberg a esse autor, Hans Sachs, como um dos mestres sapateiros, que participa dessa confraria. E assim foi indo, na base da investigação, aproveitando até a chance de um que viajou para fora do Brasil, que pôde procurar numa certa biblioteca. E, finalmente, conseguimos alguma coisa, mas estava em alemão gótico. E quem fala alemão gótico? Aí, não dá! (risos) Mas logo conseguimos, também, uma versão em inglês gótico. E foi mais fácil para a Heloísa realizar o trabalho. Agora a gente acabou de reler nove farsas carnavalescas do Sachs, que parecem happenings. Essas celebrações ocorriam durante o carnaval medieval europeu, que é bem diferente do nosso, mas que, por isso mesmo, nos interessou: o carnaval medieval tinha que dar samba em algum momento. E estamos meio detidos nisso agora. Montamos Hans Sachs em 1993 e acabamos de voltar a ele, porque há muito material. Não é possível que dali não saia nada. Há uma peça, por exemplo, que se chama A Dança do Nariz. É a história de um prefeito que decide fazer um concurso para ver qual é o nariz mais horroroso, mais melequento, mais não-sei-o-quê, entende? O maior, mais torto, mais cheio de verrugas. Quer dizer: é uma porcariada desde o começo da peça, uma coisa bem chula, bem da brincadeira própria do carnaval. E aí você pensa: “Pô, criança ia adorar.” Mas o pai da criança, a mãe da criança, jamais vão levá-la para ver uma peça de meleca de nariz. Então, você examina outra. E percebe que 99% das farsas tratam da questão da traição entre marido e mulher, às vezes com padre metido no meio, porque era a forma de eles poderem criticar aquela sociedade. Então, começamos a adaptação desses textos, todos muito curtos. A própria adaptação é um trabalho de autoria… E, respondendo à sua pergunta: é exatamente isso que a gente faz, a gente vai navegando.

Da plateia
O teatro medieval era basicamente popular, era teatro de rua…

Márcia
A maioria dos registros é daquele tipo que explora mais o lado da moralidade, dos mistérios. É o que ficou registrado, até por causa dos padres, que eram os responsáveis pela política e pela cultura. Eles eram os donos do saber, da escrita e, por isso, suas peças não queimaram na fogueira. Então, o que é chamado de teatro medieval é mesmo o teatro das moralidades, dos mistérios; o teatro que falava da vida dos santos, dos milagres, sempre com uma moral para ensinar, sempre com o objetivo de catequizar. E há também o teatro medieval que era feito nas praças, e que não era neces­sariamente uma coisa simples, despojada. Parecia um pouco com esses grupos que vêm hoje da França, como o…

Dudu
Cargô.

Márcia
É, o Cargô. É nessa linha, com instalações que subiam, desciam e se via o inferno lá embaixo. Então, tinha plano baixo e tinha o céu, além de coisas que eram elevadas e até fogo saindo. Era uma parafernália de máquinas, que às vezes levava um ano inteiro ou anos e anos para ser montada num festival. O festival era o momento em que toda a população estava ali, envolvida naquilo. E rolava muita grana. Todas as confrarias, as guildas – dos sapateiros, dos alfaiates ou dos açougueiros – contribuíam. E cada festa virava um concurso, assim como o nosso carnaval, com a mesma disputa que há entre bicheiros de escolas de samba. Era uma grande competição, com direito a prêmios e também a multas!

Maria Helena Kühner
Márcia, qual é a sua relação com o texto? Você reescreve, acrescenta, modifica?

Márcia
Depende muito do espetáculo. Algumas peças são uma colagem de fragmentos de texto, como foi o caso de O Segredo Bem Guardado: a gente achou um fragmento de um esboço de dramaturgia. Depois, achamos um conto do Monteiro Lobato, onde ele registrava aquilo como tradição oral, através das histórias da Tia Nastácia. E foi assim também com O Médico Camponês, que é esse que a gente está levando agora. Encontramos um conto na versão europeia. Depois outro, chamado O Herborista, que era a versão africana da mesma história. E havia um terceiro que falava disso. A Maria Clara Machado fez uma peça curta, como estudo, para os alunos. Então, também tinha lá a Maria Clara. A peça, portanto, foi isso tudo. Já o Elixir do Amor foi diferente. Como havia o libreto da ópera, o que a gente fez foi adaptar o texto para o teatro, dar uma linguagem mais teatral. Porque às vezes havia um “Óóóóó!”, que na ópera funciona muito bem, mas no teatro, não. Em Mestre por um Triz, aquela do Sachs, a ideia dos mestres cantores de Nuremberg foi o que me guiou para fazer a estrutura do texto. Eu disse: vamos fazer um torneio, sim, mas não um torneio de música, um torneio de teatro. E a história? Quem serão esses personagens? O Hans Sachs como personagem principal? E eu fiz essa primeira etapa do texto, criando esses personagens. Na hora H da peça, o torneio de teatro virava uma disputa entre uma farsa do Sachs e uma moralidade do mesmo Sachs, até para mostrar os dois gêneros da época. E ali, eu quis deixar a própria literatura do autor aparecer. Só mexi no sentido de tornar um pouco mais fácil. Já no Shakuntaláuma peça enorme, descritiva, de 100 páginas – tipo Mahabarata -, eu simplesmente refiz, dei uma condensada, peguei a síntese da história. Porque era o caso de pegar o argumento, o universo essencial, e reescrever. E tudo vai sendo feito em conjunto com a direção. Foi quando o Ricardo quis usar as máscaras – aquelas máscaras que a Heloísa fez. Porque ele achava que o trabalho de ator, naquele caso, tinha a ver com a Índia, com tudo que ele havia visto lá. E, assim, eu já ia pensando o personagem com o seu ator, e já ia escrevendo ao mesmo tempo em que pensava nisso. Ou seja: não é criar a peça e depois entregá-la para montar. Não é dizer: “Agora, virem-se.” Tudo vai se fazendo ao mesmo tempo.

Dudu
Embora a Heloísa diga que vocês criam um figurino com quase nada, uma das características da companhia é a extrema qualidade dos espetáculos. Como foi isso, nesses dez anos, com a falta de grana? Qual é a estratégia?

Marcos Edom
Eu acho que isso deve muito ao trabalho que a Dra. Carmen tem feito com o grupo. Aqui tem marido, mulher, sogra (risos.), e isso tem de ser trabalhado. O profissional e o particular, algo que exige um esforço, que não é de análise.

Dudu
Mas, Marcos, os trabalhos estão vinculados a patrocínios. O grupo tem uma caixinha?

Marcos
Por incrível que pareça, a gente teve somente quatro patrocínios em dez espetáculos.

Márcia
Para o Elixir, o Médico, Shakuntalá e Inês Pereira.

Marcos
Seis foram feitos com dinheiro da gente. Assim, tirando do bolso. As premiações, por incrível que pareça, sempre contribuíram muito para a continuidade do trabalho. Administrar, é claro, não foi fácil. Mas como quem manda é a patroa… (risos.) É fax pra cá, é mala direta pra lá. Mesmo que você não esteja produzindo nada, você tem uma despesa fixa. Você precisa ter a possibilidade de pensar num cenário – o palco, afinal, é uma vitrine maravilhosa! -, tem de imaginar que vai ser visto, que pode ganhar um prêmio e que pode até vender aquele espetáculo para outros lugares. Durante algum tempo, fizemos alguns trabalhos com a Secretaria de Educação e com a de Cultura, levando os espetáculos para a rede pública, inclusive para praças e jardins. Foi um período fértil. Fizemos até em shoppings, que é o que a gente chama de a praça de hoje em dia. Já que não há segurança, a praça medieval de hoje é o shopping. Então, a gente foi pra lá.

Márcia
Não, peraí. Essa história de patroa é porque eu sou muito organizada. Mas o fato é que a gente divide. Por exemplo: a gente vendeu um espetáculo não sei pra onde por X. Daí foi tanto pa­ra cada um. Mas sempre tem que ficar X para a caixinha. Porque você vai se profissionalizando. Tem contador todo mês, tem isso, tem aquilo. São as despesas fixas.

Dudu
Algum de vocês depende exclusivamente do trabalho da companhia? Ou todos têm outras funções, de onde tiram sua sobrevivência?

Marcos
Olha, aqui ninguém é bancário, todo mundo trabalha na área, embora diversificando as atividades, todos trabalham em teatro. Não dá pra sobreviver, não. Disso, não. Mas existe essa preocupação, é o nosso ideal. Todos perseguem essa exclusividade.

Márcia
Durante muito tempo, tentei batalhar pra que a gente tivesse uma sede, um local onde se pudesse gerar coisas, pesquisar, trabalhar. Porque, às vezes, é difícil essa coisa de ter que ficar pra lá e pra cá, dando aula aqui, fazendo não sei que mais ali. O Marcos, por exemplo, também trabalha na Casa de Cultura Laura Alvim, na administração. A Heloísa faz trabalhos de direção de arte… Mas a dedicação à companhia é prioritária para nós, é 24 horas por dia mesmo. Quer dizer, tem que ter alguém em casa, porque, vira e mexe, o telefone toca, você tem que falar com as pessoas, tem que mandar um fax, tem que produzir um projeto. Então, o trabalho é ininterrupto. Todos os dias, a gente dedica um tempo à companhia. Agora estamos começando a montar uma amostragem do repertório todo, como se fosse um só espetáculo. Vamos levar o resultado ao festival medieval de São José do Rio Preto (SP), coisa do SESC. Vamos levar o referente a cinco espetáculos, além de uma exposição de todo o trabalho de pesquisa, com todo o detalhamento da confecção de máscaras, figurinos, informações sobre a época etc. E também um workshopVai ser uma espécie de painel do que temos produzido nesses dez anos.

Dudu
Quantos espetáculos estão no repertório, nesse momento?

Marcos Seis.

Márcia
Enganado, Segredo, O médico, Shakuntalá, O Elixir Inês Pereira. Já o Mestre por um Triz exige uma habilidade técnica específica dos atores – é difícil, por exemplo, você fazer uma substituição. Então, complica. Porque leva um tempo ensaiar uma pessoa pra poder trabalhar com aquilo. É muito mais específico: envolve os arcos, a bola, a fita, e tem até um monociclo em cena.

Maria Helena
Tem uma coisa que eu não entendi bem: como é a prática de trabalho da Carmen na companhia?

Carmen Estela
Essa minha experiência é inédita, eu nem sei se vou sobreviver. (risos.) O meu trabalho vem sendo, há dez anos, o oposto de tudo isso aqui. É que eu não sou povo de teatro. O meu trabalho é feito numa sala, na penumbra, e são ditas coisas que jamais virão a público. Não há plateia, portanto. Por isso, eu confesso: estou mais ou menos em estado de choque. (risos.) Mas vou responder: eu não sou atriz, não sou ligada ao teatro, não sou figurinista, não sou administradora teatral, nada disso. Eu sou pedagoga e advogada e administro o impalpável nessa companhia, através de uma técnica pedagógica chamada grupo operativo. Aliás, quando a Márcia diz que o grupo começou no estudo, na escola, está errada. Eu discordo. Eu acho que essa companhia foi fundada por um ato de coragem e decisão, como tudo que se faz em arte. O estudo, o conhecimento, tudo isso é básico, é óbvio. São as técnicas. Mas sem coragem e decisão não se faz arte, não se faz teatro, não se faz nada. E a cada montagem dessa companhia, eu confirmo isso. Foram dez anos, não sei quantos espetáculos, mas sempre com atos de coragem e decisão. E o terceiro elemento que faz essa companhia existir há dez anos, como uma das mais premiadas e até mesmo consagradas em seu meio, é a imaginação, que vale muito mais do que o conhecimento. Nós nos reunimos periodicamente, para que eles falem todas essas coisas e, no fim, ouçam o meu discurso. Que é um discurso bem diferente do deles e vai mostrando algo, vai administrando o impalpável. Isto é importante nas situações de desespero e de caos. Porque, aqui, não existe essa organização de que o Dudu estava falando. Aqui, é sempre o caos. (risos do pessoal da companhia) E eu sempre digo: “Calma, vai dar tudo certo. Vai, claro que vai dar tudo certo. Vai ser mais um sucesso!” E eu também não concordo com a Márcia, quando ela conta como a companhia foi fundada. A companhia foi fundada por ela. Eu estava me mudando, quando ela bateu na minha porta, para falar da crise com o outro grupo que ela frequentava. A sala estava vazia, havia uma almofada no chão, eu catei outra e sentei. Ela, então, me disse: “Acabou o grupo. O que é que eu vou fazer agora?” “Faça o que seu coração mandar”, respondi. É uma resposta boa, quando não se sabe o que dizer. (risos.) Ela pensou um pouco e concluiu: “Vou fundar uma companhia de teatro.” E foi assim que a Companhia de Teatro Medieval nasceu. Eu não sei onde é que começa a coragem, onde termina, e onde começa a loucura. Para mim, todas essas coisas estão misturadas. Nesse grupo, é isso que eu vejo: atos de loucura e de coragem, alguns premiados. E a Márcia achou outras pessoas, também corajosas, loucas, decididas, e a companhia está aí há dez anos. E ganhou seu primeiro prêmio… Você vai contar a versão ou eu posso falar a verdade?

Márcia
(rindo.) A verdade.

Carmen
Um dia, eles estavam fazendo grupo operativo comigo… Estavam todos eufóricos, dizendo que eram maravilhosos, sensacionais. Não estavam em crise existencial, mas pareciam maníacos. “Nós somos ótimos!” E eu, que não estava bem, reagi: “Vem cá, se vocês são tão maravilhosos assim, cadê o prêmio? Porque no mundo capitalista e ocidental que eu frequento, como advogada (riso.) e pedagoga, quando a gente é bom, tem prêmio. Quem não tem prêmio, não é bom.” Ficou todo mundo olhando pra mim com ódio, não foi? Entre o espanto, o ódio e o horror. E, depois de um tempo, veio o primeiro prêmio, não foi assim? Pois é assim que se ganha um prêmio. É quando alguém chega pra você e diz: “Escuta aí, ô bundão, você é bom? Então, cadê o prêmio?” Aí, você se mexe e vai atrás do prêmio. Em resumo: essa organização, Dudu, é feita assim – no sentido de você tentar organizar o caos. Existem funções definidas? Até existem. A minha é de administração, e corre paralela à do Marquinhos: eu administro esse caos, sem tentar abafá-lo. Pois ele existe, permeia o grupo o tempo inteiro. E como a história da Helô sobre a costureira: se não havia uma, então alguém tinha que costurar. Tudo na vida é assim. Porque a imaginação, que nunca faltou nessa companhia, é mais importante do que o conhecimento. Mas o grupo, que não é só técnica, também não é só arte. São pessoas que têm seus problemas particulares, de dinheiro, afeto e outros. Isso tudo entra em confluência dentro de um grupo e, se você não faz um trabalho, começa a abalar o conjunto. Brigas e vitórias também têm que ser administradas. E isso não tem nada de esotérico ou espírita. É uma técnica, que um argentino chamado Pichon Rivier estudou. Eu tive a oportunidade de conhecê-lo, de estudar essa técnica, na época em que eu era pedagoga, e fui adaptando. Eu funciono como o Departamento de Recursos Humanos de uma empresa, com a diferença que, aqui, o departamento não é somente para constar, nem é obrigatório – eles querem.

Dudu
Você desenvolve isso profissionalmente com outros grupos e empresas?

Carmen
Com grupos, reengenharia, essas coisas. Sendo que a ex­periência com grupo de teatro é única com eles. Pensa bem: qual é o grupo de teatro que está interessado nisso? Quem se interessa por isso é empresário, é advogado, são os grandes escritórios, as empresas. Mas estes acharam que era importante, que a manutenção do grupo vem daí. E deve vir mesmo. Houve também uma empatia entre nós, em termos de trabalho.

Dudu
Hoje, a crise de público parece ter atingido também o teatro infantil carioca, apesar da linha ascendente de muitos grupos em termos de profissionalização e qualidade dos trabalhos. A tendência seria que o público acompanhasse esse crescimento, mas isso não ocorre. Como vocês veem essa situação?

Márcia
Olha, a gente pensa muita coisa. Às vezes, a culpa é do teatro, que perdeu a tradição; outras vezes é do ponto, que não tem estacionamento, não é shopping; e ainda se pode citar, no caso, do teatro medieval, a falta de interesse e o saco cheio. Mas será que é isso? Será que é chato? Será que está desgastado? E aí você vê aquela plateia que está gostando, se interessando e participando. Talvez seja só meia dúzia de pessoas, mas é gente que está gostando. Quando você leva o espetáculo à praça, com 1500 pessoas, elas adoram. Quer dizer, você tem a chance de testar isso em vários campos. O problema, portanto, não é do espetáculo.

Marcos
A gente sempre disse que o teatro vive em crise permanente etc. Nos anos 80, na chamada abertura, eu estava produzindo Rasga Coração. Havia, naquele momento, vários espetáculos em cartaz – inclusive o Sérgio Britto. Era um momento de efervescência do teatro, abertura, aquela coisa. E, de repente, alguns espetáculos não conseguiam passar do segundo, terceiro mês de vida. Pois eu fiquei dois anos e dois meses em cartaz, com o Rasga Coração lotado. Isso nunca mais aconteceu na minha vida e acho que nunca mais vai acontecer, (risos.) Com um mês de antecedência, o teatro já estava lotado! Um mês de antecedência! Eu só me angustiava com o seguinte: se desse uma dor de barriga num ator e não desse pra substituir, não haveria sessão, E o que é que eu iria fazer com a plateia do dia? Dizer para voltar no mês seguinte? Atualmente, essa preocupação está descartada, quanto a isso, eu estou tranquilo. (risos.) Hoje, você tem dois ou três espetáculos infantis lotados. Isso me leva a crer que o público elege. Ou não. É uma grande incógnita. Eu não sei. Diz-se que estamos vivendo um momento de efervescência do teatro adolescente, infantil e tal e coisa. Será?

Maria Helena
Marquinhos, você é um cara realista. Como é que você vê a ligação disso com uma mídia que promove qualquer boneca da Xuxa, embora a gente saiba que está todo mundo duro, que o Plano Real só existe na cabeça do presidente etc? Se a população está sem dinheiro para nada e se algumas exceções vendem – seja o que for: espetáculo, livro, disco – não haveria uma relação deste fenômeno com a mídia, com a propaganda? Ou eu estou viajando?

Marcos
Não sei, talvez. Mas, olha só: tem um espetáculo que está lotando o Teatro Villa-Lobos: A Arca de Noé…

Márcia
Não seria o tema?

Marcos
E o tema certo etc, mas eu já vi montagens fantásticas e não aconteceu nada, entendeu? Não sei não. E tem a empatia do teatro, a coisa do boca a boca. Hoje em dia, tem outra coisa: esse boca a boca está mais demorado. Antigamente, você falava: “Ih, vai ver o espetáculo tal, que é ótimo.” Agora, você tem que dizer assim: “E fantástico, é maravilhoso! Não perca, não seja burro.” Aí, o cara vai.

Dudu
Uma curiosidade: o Shakuntalá foi o maior sucesso de vocês?

Márcia Foi o maior sucesso de público. E até hoje é assim. No início do ano, participamos de um festival em São Paulo, pelo Sesc. Levamos, por um tempo, o Segredo bem guardado. Vale dizer que a plateia era daquele tipo que, se é peça infantil, fica na expectativa de Chapeuzinho Vermelho Alice – enfim, aquelas coisas bem tradicionais. E, um dia, começamos a perceber uns comentários, uma reação estranha do público. “Isso lá é peça para criança?”, pareciam perguntar. Era uma plateia capaz de estranhar, por exemplo, um ator num papel feminino. Foi então que decidimos enxertar, antes da peça, algumas informações sobre o tipo de teatro que as pessoas iam ver ali, um teatro que era feito nas praças, nas ruas. Com isso, a reação já foi outra. E, logo depois, fechamos com o público aplaudindo de pé. Já com o Shakuntalá, a gente não teve o menor problema, porque, embora fosse uma coisa indiana, culturalmente exótica, diferente, era um conto de fadas. Quer dizer, era uma história com princesa, príncipe – coisas que cabiam no imaginário sobre o que deve ser uma peça para crianças.

Carmen
Tinha sexo.

Márcia
É, tinha sexo. Quer dizer, sexo no sentido de que a princesa ficava grávida. Mas era tudo envolto num clima bem mágico – a princesa, o príncipe, o bruxo, a história de amor – e, portanto, com os elementos que fazem o glacê do bolo. E, assim, foi um enorme sucesso, com direito a cadeira extra.

Carmen
Tem uma coisa, nessa companhia, que eu acho um luxo. É que, mais forte do que a preocupação com o aplauso, o prêmio, a casa cheia – que existe, é claro -, está a preocupação de fazer aquilo de que se gosta. Aqui, as pessoas se dão a esse luxo. E, quando a gente quebra a cara, quebra com a certeza de que está fazendo aquilo de que gosta.

Dudu Surrado e contente, não é?

Carmen É, surrado e contente. Porque se você colocar, por exemplo, a Márcia Frederico, que é psicóloga, numa grande empresa, ela pode até ser um sucesso, ganhar muito dinheiro e ser contratada por outras dez empresas. Mas será um sucesso infeliz. Por isso eu sempre pergunto, quando estamos no grupo operativo: isso é sucesso? Está escrito no Aurélio que sucesso é isso? A Heloísa teve tesão pra pesquisar, a Márcia teve tesão pra atuar, o Ricardo teve tesão pra dirigir, o Marquinhos teve tesão pra administrar, com todos os problemas, e eu também tive tesão na administração dos conflitos. Quando é um problema de público, de bilheteria, de crítica, poxa, meu trabalho fica super interessante, não fica? Quando a crítica é ruim, no dia seguinte já estão me ligando, marcando gru­po operativo. O grupo é ótimo (risos). E quando é prêmio, também me ligam pra falar sobre aquele sucesso. É preciso parar com essa mania de sucesso e fracasso, bom e ruim. Essa coisa maniqueísta faz muito mal. O verdadeiro artista não sente assim. Nos encon­tros, a gente costuma dizer que a merda tem que virar adubo. É uma das nossas filosofias.

Dudu
Vocês planejaram alguma coisa para comemorar os dez anos?

Carmen
Eu estou cobrando isso, como orientadora do grupo. Dez anos são dez anos. Se temos alguma coisa pra comemorar? Temos. Estamos vivos, fazendo teatro. Por que não teríamos? Eu já me sentei com a Helô, lá em casa, fizemos um projeto – aliás, um mega projeto totalmente maníaco. No fim, vai ser tudo ao contrário, mas a gente não abre mão do projeto maníaco.

Dudu
Claro.

Da plateia
Mas como vocês decidem que atores vão fazer cada espetáculo?

Márcia
A escalação de elenco é sempre complicada. Primeiro, a gente avalia com quem, naquele momento, se gostaria de trabalhar, e também com que peça, com que personagens. A própria coisa dos personagens, do perfil, da linguagem que se busca, tudo isso é pensado. E aí, é preciso que se tenha especificações, às vezes técnicas. Escolhemos o Eduardo Andrade para, o Hans Sachs. Só podia ser ele, porque a gente queria botar tudo naquele espetáculo. O monociclo em que ele andava, por exemplo, seria algo a mais. E isso porque toda a linguagem do espetáculo tinha que trazer um pouco do circo, daquela coisa da própria ginástica rítmica, que vem da origem do circo chinês. Então, naquele momento, ele era a peça-chave que a gente queria. Nesse espetáculo, aliás, eu nem fui atriz. É algo fundamental para mim mas, naquele momento, eu estava no júri do Prêmio Coca-Cola. Enfim, tivemos que chamai uma atriz. Como eu já disse aqui, alguns atores estão com a gente quase desde o começo. O Rogério, o Evandro… Mas houve peças que eles não fizeram, algumas vezes porque estavam trabalhando com outras coisas, com outras pessoas, com outros diretores. Agora, há momentos difíceis. A pessoa certa está disponível, querendo, se oferecendo, mas você, por algum motivo, acha que não é ela. Ou por alguma questão até de relação, de escolha mesmo de personagem. É muito delicado, é difícil dizer não. Geralmente, sou eu que tenho essa função e é complicadíssimo, porque a gente não gosta, como ator, de ser rejeitado. E fica logo pensando: “Por que será que eles não me chamaram agora? Ai, meu Deus! Será porque eu não sou bom? Será porque eu sou gorda? Será porque eu sou magra? Será porque eu sou loura? Ou baixa?” Então, você começa a botar todos os defeitos em si mesma e não entende que, às vezes, as coisas nem passam por aí. Então, eu procuro ser o mais franca possível nesse sentido. Por mais que doa. Na dúvida, prefiro entrar com a verdade.

Da plateia
Você falou que cada um tem uma função. E os atores? Quando eles são escalados, eles só atuam ou eles também participam da produção e auxiliam no figurino?

Márcia
A gente deixa muito a critério do ator, do que ele gostaria de fazer. Geralmente, eles só atuam mesmo. Mas há alguns que gostam de estar lá, de ficar perto, de ver, de ajudar, de botar a mão na massa.

Dudu
Nesse caso, existe uma diferenciação do percentual? O ator que só vai atuar leva menos?

Márcia
Nossa prioridade são os atores, que sempre têm um percentual alto. E se há um técnico fantástico, que está sempre lá, o percentual de ambos será, no mínimo, equivalente. Nunca inferior. O ator será sempre privilegiado, no sentido financeiro, porque é uma questão de respeito. Esta é a nossa ideologia, (risos).

Marcos
Porque esta é uma companhia, como ela diz de ator. A prioridade é o ator. Tanto que todos quatro têm o mesmo percentual. Não importa se um desempenhou mais ou menos funções. Todo mundo recebe a mesma coisa.

Carmen
Isso foi tema de vários grupos operativos.

Márcia Isso foi tema de incansáveis brigas e discussões. E a forma que eu encontrei de dar um basta foi esta – igualar os quatro do núcleo da companhia, que passaram a ganhar a mesma coisa e a ter os mesmos direitos e deveres. Pelo menos, é o que a gente tenta.

Dudu
Qual foi mesmo o espetáculo que vocês fizeram no Centro Cultural Banco do Brasil?

Márcia
Foi A Farsa de Inês Pereira, do Gil Vicente.

Dudu
Mas não era um espetáculo dedicado ao público infanto-juvenil. Como é isso? A companhia é só de teatro infanto-juvenil? Ou vocês também pretendem trabalhar para plateias adultas?

Márcia
A ideia nunca foi trabalhar apenas para crianças. Até porque a farsa, em princípio, não é um texto infantil. Os próprios temas – essa coisa de triângulo amoroso, de enganado, surrado e contente -, em princípio, nunca foram temas infantis. Se você está fazendo teatro na rua, passa adulto, passa criança, velho, rico, pobre. É no horário de teatro infantil que você vai ter o adulto, a criança e o idoso, ao mesmo tempo, no mesmo lugar. Por outro lado, as peças eram tão bem-humoradas e, às vezes, tão ingênuas na forma de tratar esses temas, que a gente descobriu que havia também a possibilidade de comunicação com as crianças. Quando a gente começou, nas arcadas da Laura Alvim, o horário era interessante: seis horas da tarde, com um público bem diversificado. E a gente vem mantendo isso. Agora, é claro que houve uma caracterização. Muita coisa realmente foi feita para a criança, visando um pouco mais essa comunicação. E, no momento da Inês Pereira, a gente tinha isso como uma ordem. Quando a gente começou a pesquisar teatro medieval, todo mundo falava: “Ah! Gil Vicente, Gil Vicente!” E a gente tinha um medo danado de encarar Gil Vicente, porque há um monte de especialistas em Gil Vicente, um monte de doutores. E havia a linguagem. Meu Deus do céu! Tudo em verso, um português que ninguém entende. Dava o maior pânico. Até que, numa determinada hora, foi preciso encarar o bicho de frente. Estávamos no teatro medieval, no processo que passou pela França, Espanha, Itália, Alemanha e Índia. Já no oriente, sentimos que iríamos voltar à nossa raiz, de uma certa forma – isto é, aos portugueses. E voltar era encarar Gil Vicente. Além disso, aquele foi o momento em que a gente se sentiu maduro. Foi quando entramos com o projeto no Banco do Brasil. E percebemos que não havia essa fronteira. Cada vez mais, constatamos isso. No caso do próprio Médico camponês, que a Lucia Cerrone acha bem infantil, recebemos uma proposta de montar a peça para os médicos da Fundação Oswaldo Cruz. Os adultos reagiram como crianças. Foi uma for­ma de buscar a criança que existe em cada um de nós, de fazer o pessoal brincar. Em certos lugares, a gente diz: “Somos uma companhia, sim, uma companhia de teatro voltada para a criança.” Mas, de uma maneira geral, a gente se vê é fazendo essa pesquisa do teatro do final da Idade Média. Este é o nosso foco de interesse, embora a preocupação de ampliar exista. Do contrário, ninguém ficaria grilado com o fato de a meleca atrair ou afastar o adulto…