Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 11.04.2014

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Uma delicadeza poética chamada Mania de Explicação

Juntos, Gabriel Villela, Adriana Falcão e Luana Piovani proporcionam filosofia e poesia do mais alto nível para crianças

Está em cartaz desde a semana passada no Rio de Janeiro o espetáculo infantil Mania de Explicação, no Espaço Tom Jobim. Trata-se de uma feliz adaptação do livro de mesmo nome da escritora Adriana Falcão, premiado em 2001 pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. A própria autora transformou suas mágicas palavras em peça de teatro, em parceria com Luiz Estellita Lins – e a pedido da atriz e produtora Luana Piovani, que recrutou pela segunda vez o diretor mineiro Gabriel Villela. Ele já a dirigira em O Soldadinho e a Bailarina.

A história é a de uma menina que gosta de inventar uma explicação para cada coisa, tentando simplificar o mundo dentro de sua cabeça. Isabel (na pele de Luana Piovani), inspirada na filha da escritora, é uma “garota rock and roll”, na definição do encenador Villela, ou seja, uma menina diferente, iconoclasta, que não aceita nem se enquadra em qualquer resposta para suas indagações.

A solução encontrada pelos adaptadores para levar ao palco um livro sem diálogos nem situações concretas, com conteúdo altamente poético e sobretudo filosófico, foi uma solução bem esperta. Todo esse teor literário, que tem encantado leitores mirins e adultos há anos, foi transformado em uma espécie de jogo de tabuleiro, realizado na parte final do espetáculo, de tal forma que o início seja uma preparação para essa alta concentração de poesia que se dará nos minutos finais. Adriana e Lins habilmente criaram um enredo inicial de aventuras e ritos de passagem, uma preparação da plateia para o espírito de ‘perguntadeira’ da menina, que desemboca nas frases de efeito lúdico-filosófico retiradas do livro e arremata a peça de forma encantadora.

O casamento desse texto-jogo com a ilimitada criatividade de um diretor da estirpe iluminada de Gabriel Villela só poderia se dar de forma perfeita, resultando em uma peça para marcar época no cenário carioca de horário vespertino. Cada sugestão imagética possibilitada pela potência lírica do livro de Adriana Falcão ganha, pelas mãos de Villela, uma força extra multiplicadora, uma carga simbólica dez vezes maior. Nos últimos anos contando sempre com um fiel escudeiro, o assistente de direção Ivan Andrade, Gabriel Villela mais uma vez constrói sua arquitetura cênica com base nas sugestões fantasiosas, em vez de entregas facilitadoras, e muito mais com proposições oníricas do que com traduções realistas.

Se há um centauro no livro, na concepção do diretor esse personagem mitológico (Felipe Brum) surge no palco com uma representação visual arrebatadora e até num cortejo ritualístico, atiçando ainda mais a fantasia das crianças para esse ser dúbio e intrigante, que é homem e é cavalo ao mesmo tempo. Se há uma lagarta no livro, na versão cênica de Villela ela já está a meio caminho de virar borboleta (Letícia Medella) e canta ‘Metamorfose Ambulante’, do repertório de Raul Seixas. Se há uma narradora chamada Laurinda, ela surge travestida na pele de um ator (Diogo Almeida), não de uma atriz, reforçando para as crianças o saudável jogo sem fronteiras que faz parte da diversidade formalística das peças de Gabriel Villela. E, de quebra, Laurinda inicia a narração da fábula cantarolando o texto em ritmo de samba, como uma ‘mulata assanhada’ – toque de brasilidade que é caro ao universo desse premiado diretor.

São incríveis também as formas que a direção escolheu para representar os elementos da natureza, com quem a menina Isabel precisa se entender até que vença todos os obstáculos e chegue ao fim do tabuleiro com suas respostas maluquinhas. Mãe Terra (também Letícia Medella) abre a bolsinha vintage e enche as mãos de terra cada vez que vai falar. O vento fresco (Pablo Áscoli) surge com a trucagem teatral brechtianamente revelada à plateia: um ventilador.

A árvore (Janaína Azevedo) tem gola de palhaço e a água (também Diogo Almeida) é representada por uma fonte ambulante, com direito a aquário de peixinhos coloridos e uma divertida brincadeira de molhar o público quando chora – tocantes referências à bufonaria do circo-teatro, outra marca registrada da obra de Gabriel Villela. E até a Lua, ah, a Lua, tão magistralmente presente em diversas peças desse encenador-poeta, aparece aqui materializada de um jeito totalmente diverso das montagens anteriores, comprovando mais uma vez a ilimitada criatividade do mineiro: a Lua é uma das rodas da bicicleta da menina, embalada pela canção ‘Lua Bonita’, do paraibano Zé do Norte, também imortalizada na voz de Raul Seixas.

A música de Raulzito, aliás, foi um grande achado do diretor para potencializar a personalidade inquieta e irrequieta da personagem principal. E o que é melhor: não há no espetáculo a canção infantil que seria a mais óbvia, já que se trata de um tributo a Raul Seixas, ‘Plunct Plact Zum’, mostrando que até na escolha do repertório a direção não deslizou para facilidades. Já de cara somos fisgados por todo o elenco entrando em cena e cantando ‘Caubói Fora da Lei’, com uma contagiante marcação criada pela diretora de movimento e coreógrafa do espetáculo, Kika Freire.

O trabalho corporal do elenco, aliás, está excelente. Luana demonstra sutilezas de menina insegura, mesmo ostentando aquele corpão de deusa. Espertamente, a direção criou para ela – na sua inegável condição de estrela carismática – uma espécie de ‘primeira entrada em cena’, nada exagerado, mas lindamente triunfal, em que a menina Isabel revela-se por trás de um grande pano colorido e bordado, cantando ‘Maluco Beleza’. A cena é lindíssima, bem como o momento em que todos os personagens estão juntos na cama, manipulando chapéus transformados em grandes bocas. Todo esse refinamento visual se garante na peça pelo suntuoso desfile de panos, mantos, tecidos, texturas, bordados, transparências, que nos proporcionam os figurinos criados por Gabriel Villela. Não há em cartaz atualmente no Rio de Janeiro nenhuma outra atração, incluindo as peças adultas e os grandes musicais, com tamanho luxo e requinte de figurinos.

A direção musical do maestro Ernani Maletta é mais uma vez primorosa. São inacreditáveis de belos os arranjos que ele escolheu para cada canção de Raul Seixas, dando a elas uma nova roupagem colorida, carregada de instrumentações voltadas para os sons do universo infantil. Merece um disco. A cenografia de Márcio Vinicius também se destaca, assim como os vistosos adereços criados por Shicó do Mamulengo. Tudo se passa no quarto da menina, com móveis de grandes proporções e forte potencial saudosista, paredes pintadas na delicadeza do trompe l’oeil e, de lambuja, um magnífico vitral colorido valorizado a cada cena pela iluminação certeira de Paulo César Medeiros.

Completa o quadro de talentos da ficha técnica a participação sempre decisiva da diretora de texto e preparadora vocal Babaya Moraes. O elenco está afinado para cantar e, mais do que isso, diz o texto sem ansiedades e com um rigor de pronúncia e projeção de voz necessários nesse tipo de espetáculo poético, realizado em grande sala e em amplo palco, em que o tom tatibitate infantilóide, infelizmente ainda adotado pela maioria das peças infantis no Rio de Janeiro, poderia pôr tudo a perder.

Ao final, Mania de Explicação desvenda-se como uma pérola cênica que falou o tempo todo de amor. E, mais uma vez, a escolha da canção de Raul que encerra a peça foi uma escolha magnífica: ‘Medo da Chuva’, que casa à perfeição com o medo de amar de uma menina que faz tantas perguntas justamente por estar visivelmente saltando da infância para a puberdade e querendo “aprender o segredo, o segredo, o segredo da vida”. Em determinado trecho da peça, Isabel diz que “queria inventar um despertador que, ao invés de despertar as pessoas, despertasse os sonhos!” Esse despertador de sonhos já existe, Isabel, e mora dentro do coração de um diretor de teatro chamado Gabriel Villela.

Serviço

Espaço Tom Jobim
Rua Jardim Botânico, 1008 – Parque Jardim Botânico, Rio de Janeiro
Telefone: (21) 2274-7012
Horário: sábados e domingos, às 16h
Ingresso: R$ 70 (inteira)
Até 29 de junho