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Ela estava sentada numa cadeira alta, na frente de um prato de sopa que chegava à altura de seus olhos. Tinha o nariz enrugado e os dentes apertados e os braços cruzados. A mãe pediu ajuda:
– Conta uma história para ela, Onélio – pediu. – Conta você que é escritor…
E Onélio Jorge Cardoso, esgrimindo a colher de sopa, fez seu conto:
– Era uma vez um passarinho que não queria comer comidinha. O passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho, e a mamãezinha dizia: “Você vai ficar anãozinho, passarinho, se não comer a comidinha.” Mas o passarinho não ouviu a mamãezinha e não abria o biquinho…
E então a menininha interrompeu:
– Que passarinho de merdinha – opinou.

                                                                                      Eduardo Galeano , in – Mulheres – Ed. LPM

“Era uma vez…” O simples pronunciar destas palavras já faz notar o estranho fenômeno: as costas vão se arcando, o dedo em riste, o sorriso como que mecânico. A voz, mudando de tom quase uma oitava acima, vai cantando uma infantilizada melodia repleta de diminutivos e inflexões didatizantes. A professora está contando histórias. Seu esforço é aproximar-se de seu público.

Ela acredita que sua postura diante da classe faz a história mais envolvente. Mas, a voz não é dela. O conto, talvez não goste tanto, mas, se perguntada, responderia que o conta porque “as crianças gostam” ou simplesmente porque “funciona”. Ela acredita que possui a clarividência de entender o que move o gosto infantil; e é isso que a faz repetir a mesma e viciada postura, a que um dia, quando aluna, ela também foi espectadora em alguma sala de aula, onde o mesmo “era uma vez…” era reproduzido.

Mas, ao invés de encantamento, o resultado imerge a turma num tédio profundo, e não tarda, a concentração do público – Ah!, a honestidade das crianças! – se diluirá no burburinho que se começa a ouvir. O sorriso da mestra já não resiste, sua voz aumenta de volume proporcionalmente ao ruído dos espectadores que, não suportando tamanha tortura, já desviaram a atenção para outros interesses.

O dedo em riste, antes instrumento de encantamento, agora tenta disciplinar e não falta muito para que ele suba até a boca acompanhado de um recriminatório: shhhiii!, pedindo silêncio. E assim, está sepultada, qualquer possibilidade de envolvimento do público com o ato de contar histórias, para sempre.

Bem, talvez não para sempre! Hoje já se nota a grande procura dos professores às oficinas de contadores de histórias, uma pausa para refletir sobre as possibilidades de dispor como ferramenta pedagógica a arte da narração de histórias. Mas essa prática milenar sempre foi, na sua essência, diferente da educação formal, movida pelo afeto: a mãe adormecendo seu filho, a avó numa tarde de domingo, ou, perto do fogo, família unida recordando as origens. Mas nem todos nós tivemos a sorte de ter por perto uma Dona Benta ou uma Tia Nastácia para contar-nos histórias, criando um vazio que abre espaço para visões preconceituosas sobre o ato de contar.

Entendemos então, que a “contação de histórias” (como têm sido chamadas as organizadas sessões de contos) não pertence só ao espaço da educação, por isso não só os professores buscam as oficinas. Também atores, bibliotecários, agentes de leitura, animadores culturais, ou simplesmente avôs e avós têm encontrado nas oficinas lições transformadoras de suas práticas. Seja na sala de aula, em casa ou no palco de um teatro, o contar histórias envolve motivações que têm de ser compreendidas. Não será a primeira vez que se fala da responsabilidade que envolve a “arte para crianças”. Responsabilidade esta que, muitas vezes, passa ao largo da indústria do entretenimento dirigido a crianças. E é assim com o teatro infantil, levado a ser chamado de “pecinha” ou “teatrinho”, por ser ele porta-voz de tantos “inhos” e “inhas” que teimam em aparecer nos seus diálogos, criando um abismo entre o adulto e a criança.

Lembro-me bem, quando eu ainda era somente criança – pois nunca deixamos de ser, mesmo nos tornando outras coisas com o tempo – sabia ler pelo tom de voz quando o que era dito pelos adultos dizia respeito a mim. Claro que nem sempre era o que mais me interessava no discurso dos maiores. Conto isso para voltar à professora dos nossos primeiros parágrafos. Ela, instintivamente, pensa que seu tom de voz infantilizado e sua postura corporal, generosamente a fazem descer os degraus da comunicação, aproximando-a da alma infantil. Idéia equivocada e niveladora. Nesse momento, desperdiça a mestra a possibilidade de fazer a criança subir os mesmos degraus, apurando seus ouvidos e preparando-a para receber uma voz mais consistente, que torna esse contado muito mais sério e interessante. Só deste modo cria-se um elo legítimo entre narrador e ouvinte. Elo este que não deve ser vertical, e sim horizontal, unindo professor e aluno no mesmo encantamento. Quem não se lembra de um professor inesquecível? É só puxar pela memória o fio das vozes que nos constituem, e encontraremos lá o afeto daquela voz que, junto com tantas outras, nos transformam em uma biblioteca viva.

As histórias ouvidas na infância são os nossos primeiros livros. São elas que despertam a curiosidade, a sede de conhecimento e a mais importante das lições: o desejo de ser “feliz para sempre”. Lições estas que não estão no conteúdo de nenhuma disciplina. Fazem parte da vida.

Assim chegamos na mais eficiente função da arte de contar histórias: a Promoção da Leitura. Leitura, na concepção mais ampla e profunda da palavra. Chave para se quebrar o preconceito que ainda nos induz a olhar o universo infantil como uma coisa à parte. Ora, se voltarmos no tempo, à origem do que chamamos hoje “contação de histórias” (como têm sido chamadas as organizadas sessões de contos), veremos que em volta das fogueiras, os contos tradicionais eram partilhados por todos, sem distinção: crianças, adultos e velhos. O professor-leitor sabe que, mesmo sendo classificadas de infantis, as histórias guardam conteúdos profundos que fazem parte de todos nós. O professor que não é um leitor insiste em ler com o que ele acredita serem os olhos da criança, pensando sempre no repasse e nunca com os seus próprios olhos, sua própria opinião. Ele já está viciado em ler apenas o que lhe está à mão, sempre, buscando o que vem ao encontro do calendário escolar: histórias de coelhinhos para a Páscoa, do soldadinho no Dia da Pátria e, assim, repetir o mesmo procedimento no Dia do Índio, na Semana do Folclore etc. Ahhh! O educador no Brasil! Sempre obrigado a se resignar com as pífias narrações dos livros didáticos!

O contador de histórias é sempre um investigador. O prazer de descobrir uma história e a eleger para reunir todos em volta da fogueira pela mesma emoção, isso sim gera encantamento. O momento do contar histórias não pode ter nada a ver com o didático, mesmo que a história escolhida se preste a desdobramentos posteriores. Neste momento o professor vai abandonar o estigmatizado papel de educador e estabelecer um momento de verdade com a sua turma. Sua voz não é mais a que ensina: agora ela convida para o teatro do imaginar.

Criar uma atmosfera de fantasia e concentração é pré-requisito para o espetáculo que vai começar. Como num teatro, espectadores com olhos e ouvidos atentos, à espera do terceiro sinal. Se estiver com livro na mão, há que ter mãos de fada para manuseá-lo, tratá-lo como um tesouro. O abrir de cada página deve ser como o abrir da cortina para o início do espetáculo. E se escolher contar sem o livro, endossando a sua própria voz como portadora da boa nova, há que saber dar as pausas com tranquilidade, não esquecer o prazer e o afeto, e saber conduzir com o olhar e ser conduzido pela atenção de seu público, estando sempre pronto para o inesperado. Há que entender que o olhar e o gesto podem dizer tanto ou mais que as palavras e saber criar imagens. Ao contrário do teatro, onde a ação dramática acontece na frente de nossos olhos, no ouvir histórias é dentro da nossa imaginação que está o palco. E cada ouvinte lançará mão de seus acervos para compor suas próprias imagens, seu cenário, seus atores e sua pessoal emoção. Aí reside a grandeza do ato de contar histórias. Uma experiência que é a um só tempo, coletiva e individual.

Mas as lições não se esgotam nunca! A cada nova história, a cada novo público, o contar histórias torna-se uma experiência mais rica e mais humana, válida para todos que desejam, seja no palco ou numa sala de aula, resgatar o antigo e mágico poder do “Era uma vez”.

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José Mauro Brant
Ator e cantor, Rio de Janeiro

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 7º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2003).