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Pediram-me que escrevesse algo sobre o teatro que tem como público-alvo as crianças.

Tentei então rememorar algumas experiências como espectadora em diferentes fases da vida: a primeira fascinação pelas matinês aos domingos num teatro na Galeria Esky, na Tijuca, onde hoje não restou sequer o cinema, segundo me disseram. A casa do cenário de O filhote do Espantalho tinha – oh! Maravilha! – porta e janela praticáveis. O tesouro da gruta de Ali Babá, feito de bolas de Natal que faiscavam em todas as direções e me hipnotizava. E o figurino de uma personagem-margarida superpunha à malha de trabalho um saiote de enormes pétalas que iam sendo retiradas uma a uma no ritmo dos padecimentos da pobre flor…

Depois, já em meados dos anos 60, excursões mais arrojadas, de bonde, até o centro da cidade, meus irmãos reclamando da decepcionante falta de cenários de alguns espetáculos. Eu, firme: não me importava o despojamento do palco, uma história estava ali sendo contada por meio de atores e- suprema vantagem sobre os intermináveis Guaranis que devíamos ler no colégio – sem descrições de paisagem, fauna e flora.

Criança, naquela época, circulava também pelos musicais e pelos clássicos: lembro de ter visto uma montagem de A Megera Domada e Procópio, com ponto eletrônico, num Molière. Saudosas matinês das quintas-feiras…

Fim dos anos 60, um hiato: interessada já no teatro para gente grande, sem nenhum motivo que me levasse para o meio da gurizada, não sei bem o que se passou então na cena teatral para crianças.

Os anos 70 me encontram na Escola de Teatro. Recebo alguns convites para assistir a um ou outro amigo que se iniciava na vida profissional e faço uma descoberta: a discussão da linguagem cênica que o teatro para adultos, preso aos cânones do figurativismo, não estava conseguindo travar estava sendo proposta, em variados matizes, por alguns espetáculos ditos para crianças. A sensação que me ficou das montagens que mais me marcaram nessa época foi a de uma aliança extremamente produtiva entre a concretude cênica e a fantasia, capaz de transformar tudo o que toca.

Desconfiada da memória, procurei notícias sobre aquele período. Não estava enganada – realmente a linearidade da trama e a simbologia maniqueísta das peças infantis convencionais estavam sendo colocadas em questão. Nos jornais da época se evidencia o papel que, do ponto de vista da crítica teatral, o panorama político-ideológico da ditadura militar exerceu na busca por modos de contestação do autoritarismo e do imobilismo reinantes no teatro e na vida.

A sabedoria dos grupos de teatro mais instigantes que, naquele momento, se dedicavam ao público infantil foi operar no âmbito dos próprios elementos do espetáculo. Seu embate imediato era com a linguagem de que se vinham servindo e com as formas de produção capazes de assegurar a criação e a veiculação de seu trabalho.

Lembro-me, por exemplo, de que Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo, do Grupo Ventoforte, dirigido por Ilo Krugli, foi apresentado no Museu de Arte Moderna do Rio tanto em horário vespertino quanto em horário noturno, com pequenas modificações, num protesto contra a catalogação que distinguia os espetáculos segundo a faixa etária a que se destinavam.

Alguns anos depois, Bia Lessa radicalizava a discussão apresentando Meu Amigo Pintor, de Lygia Bojunga Nunes, tal e qual, à tarde e à noite.

A partir dos anos 70, o melhor teatro coloca em cena a operação artística que sobrepõe e refrata significados, transformando-os, integrando-os em teias onde eles passam a funcionar com outras valências.

Como não lembrar, já nos anos 80, de A Terra dos Meninos Pelados, dirigido por Bia Lessa e Tonico Pereira, a partir do texto de Graciliano Ramos, e que tão bem lida com a ideia de plurissignificação e de transformação incessante dos elementos cênicos?

O teatro dito para crianças e jovens tem continuado, com a maior competência, a discutir seu fazer e diviso nele uma série de características de textos contemporâneos, como a revalorização do acaso e do nexo aparentemente arbitrário que engata personagens e aventuras, que aparece, por exemplo, em Ludi na TV, de Luciana Sandroni, com direção de Dudu Sandroni, parece manter viva a mesma preocupação que, nos anos 70, levou o teatro para crianças a colocar em discussão o seu fazer.

As reminiscências estão chegando cada vez mais perto e, como não pretendo abandonar o terreno da invenção, fico por aqui, sem esquecer que lembrar é sonhar com o aval do tempo.

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Fátima Saad
Dramaturg da Cia. Teatro do Pequeno Gesto, tradutora e editora da Revista Folhetim.