Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 23.10.2017
Canções de Partimpim viram peça incrível sobre medo do desconhecido
Disco premiado de Adriana Calcanhotto inspira consagrado trio de dramaturgos a escrever o ótimo infantil Lá Dentro Tem Coisa
A partir de uma ideia do ator e empreendedor cultural Felipe Lima, as canções do conhecido álbum Partimpim, de Adriana Calcanhotto (Grammy Latino de melhor CD infantil), inspiraram os autores do espetáculo Lá Dentro Tem Coisa a criar um enredo que se integrasse às letras do disco. O resultado é de inegável qualidade – nem poderia ser diferente, já que os dramaturgos são ninguém menos do que Adriana Falcão, Rafael Gomes e Vinícius Calderoni, todos os três com uma carreira já bastante reconhecida no teatro. Que maravilha terem seus talentos reunidos em torno de uma obra para crianças. O teatro infantojuvenil precisa muito desses craques da escrita, gente ponta-firme que sabe escrever para todas as idades.
O espetáculo – dirigido por Renato Linhares – é, por assim dizer, um filhote temporão do famoso e laureado livro Mania de Explicação(2002), de Adriana Falcão, que depois também virou peça de teatro (2014), escrita por ela em parceria com Luiz Estellita Lins. O mesmo espírito de curiosidade da perguntadeira menina protagonista, Isabel, reaparece aqui revisto e renovado – com uma significativa diferença, porém. A garota irrequieta virou duas em Lá Dentro Tem Coisa: Isa e Bel, uma branca (Estrela Blanco) e outra negra (Luellen de Castro) – e, na verdade, ela é uma só, mas dividida diante do espelho.
Quando eu vi, em 2015, o musical Mas por quê??! – A História de Elvis, outra pérola dirigida por Linhares e com texto dos parceiros Gomes & Calderoni, também já havia notado e apontado as semelhanças com a obra de Adriana Falcão. Agora, em Lá Dentro Tem Coisa, a menina real e seu reflexo, Isa e Bel, ‘separam-se’ justamente na fase da “dor de crescimento” ou, melhor dizendo, às portas do momento de transição da infância para a pré-adolescência, em que imperam medos e inseguranças. Isso possibilita uma farra de sentidos, uma profusão de jogos cênicos, metáforas inventivas, verdadeiras estripulias com as palavras – bem ao estilo já consagrado da escritora Adriana Falcão, agora com o reforço de Gomes/Calderoni, dupla que também domina com maestria a musicalidade inerente ao texto teatral.
É uma delícia ouvir o texto do espetáculo, todo cheio de frases de duplo e até triplo sentido, brincadeiras beirando o nonsense, afagos poético-filosóficos na imaginação sem limites da plateia mirim. Peças assim – com esse tipo de jogos de palavras – precisam ser reverenciadas e perpetuadas, pelo que contêm de estímulo à fantasia e à inteligência das crianças.
Ao completar 9 anos, a menina Isabel ganha de presente dos pais a chance de sair de casa sozinha pela primeira vez na vida. Ela escolhe onde ir: uma livraria, já que, como ela diz à mãe, o que mais gosta na vida é de… histórias. Uma criança que escolhe de presente de aniversário ir sozinha a uma livraria – não é um enredo encantador e tão necessário nos dias de hoje, para aguçar a vontade de ler entre a geração atual?
O elenco é todo entrosado, harmonioso, carismático, sem exceção. A direção de Renato Linhares valorizou cada um, buscando força principalmente no jogo de duplos, ou seja, na dinâmica de ‘personagens em par’ proporcionada pela esperta dramaturgia: Isa e Bel, Pai e Mãe (Leonardo Senna e Julia Gorman) e Medo e Coragem (Leo Bahia e Simone Mazzer). Todos os seis atores estão muito bem, mas ter Leo e Simone na mesma peça é luxo dos luxos, garantia de momentos muito especiais. São dois intérpretes de forças descomunais, esbanjando expressividade e que cantam divinamente.
Por falar em música, a direção musical de Felipe Habib foi fundamental para o sucesso da empreitada, já que se trata da viagem de transformar um disco em peça de teatro. Com o auxílio do assistente Gustavo Salgado, Habib criou arranjos incríveis e bem diferenciados para as canções originais. É lindo ouvir essas transformações e como elas se deram bem em cena, executadas ao vivo por Evelyne Garcia e Gustavo Salgado (piano e acordeão), Bartolo (guitarra e sintetizadores) e Marcelo Callado (bateria e percussão). Uma ‘banda’ como o projeto merecia.
Por fim, quero falar de figurino, cenografia e luz. Os figurinos de Thanara Schönardie foram muito apropriadamente criados explorando a ideia das três duplas de personagens. A coerência domina nas cores e texturas, a cada par de atores. A direção de arte é assinada por Vik Muniz, com cenário criado por Bia Junqueira – Arquitetura do Efêmero. São basicamente nuvens suspensas no palco, feitas de materiais como papelão e papel laminado. O grande lance dessas nuvens é o movimento e o seu casamento perfeito com o design de luz (a cargo de Tomás Ribas). Basta tocá-las e o balanço que elas fazem no ar ganha uma eloquência visual inacreditável, em harmonia com os tons e cores propostos pela iluminação durante o espetáculo todo. Puro acerto.
Questões, escolhas, tantas coisas pedindo para ser decididas, medo do desconhecido, frios na barriga, emoções, descobertas, bifurcações, caminhos, atitudes – tem (tanta) coisa lá dentro da gente, tem (tanta) coisa lá dentro desta peça… Em cartaz desde 2 de setembro, falta só mais um fim de semana no Rio, no Teatro dos Quatro, mas parece que novas temporadas virão no ano que vem, a confirmar. Tomara.
Serviço
Local: Teatro dos Quatro (Rua Marquês de São Vicente, 52 – Shopping da Gávea)
Tel.: (21) 2239-1095
Quando: Sábados e domingos, às 17h
Ingressos: R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia)
Duração: 60 minutos
Classificação: Livre
Temporada: De 02.09 a 29.10.2017