Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 25.03.1978

 

Barra

Uma cidade imaginária de vidro, trapos, isopor 

Neste ano não pude acompanhar de perto o Festival Brasileiro de Teatro de Bonecos, realizado em Petrópolis e Nogueira e encerrado terça-feira. Consegui, entretanto, passar um dia inteiro no Festival, o que me permitiu assistir a três espetáculos – dois estrangeiros e um brasileiro. Pela ordem vi, inicialmente, Kakareko Boneko, de Marcondes Mesqueu, com o Grupo Asfalto Ponto de Partida, do Rio. Em seguida, o trabalho que mais me impressionou: Le Magicien dês Couleurs, de Serge Rouest e Pato, com a Compagnie Serge Rouest (França). Esta encenação, de grande força poética, talvez seja apresentada aqui no Rio, em curtíssima temporada. Caso isso aconteça, não percam este show de inteligência e técnica. Finalmente, à noite, assisti ao já antológico Teatro de Java, de sombras, de quem ouço falar desde pequeno. Confesso meu deslumbramento pela técnica do manipulador, mas confesso, também, minha reação à linguagem estática, à monotonia visual do espetáculo.

Dos três, Kakareko Boneko, será o único comentado, pois será visto pela plateia carioca (fiquem atentos ao Rio-Show, pois Kakareko Boneko será apresentado também em dias úteis, sempre de graça, pois é realizado em praça pública).

A ideia básica do trabalho encontra-se no refrão musical: quem quiser boneco, faça de cacareco. O que importa é passar, para a criança, as mil e uma possibilidades criativas que existem em pedaços de madeira, isopor, jornais, trapos, vidros de plásticos etc. O que importa é levar a criança a descobrir o poder que existe em suas mãos e em sua sensibilidade para transformar matérias, dar vida ao que era considerado lixo há apenas cinco minutos atrás. O que importa é colocar, de repente, adultos e crianças, pais e filhos, irmanados num ato criativo simples e cotidiano; é fazer ver que na sala ou na varanda ou no quintal ou no quarto é possível construir uma cidade e seus habitantes, bastando apenas lixo e imaginação. Na proposta do grupo Asfalto Ponto de Partida, a trama não tem outra importância a não ser a de deflagrar o processo criativo junto à plateia. A cidade de Kakarópolis desapareceu, mas, como restam num saco os destroços de seus habitantes, o público é considerado a transformar os pedaços em novos bonecos e é convidado a refazer a cidade,

Partindo de uma boa ideia, duas falhas prejudicam seu melhor aproveitamento. Primeiro não saber continuar. Faz-se a cidade com seus habitantes – e daí? Partindo do criado pela plateia, se o grupo desenvolvesse então uma nova trama, talvez houvesse mais enriquecimento, com uma ligação entre o “ato de fazer” e o “ato de dar vida” aos personagens. A segunda falha está na falta de técnica específica para o domínio de uma plateia numa praça pública. Esse domínio impediria a visível dispersão, desinteresse e cansaço facilmente observável em diversas crianças. Um melhor domínio do espaço, ênfases cênicas nos momentos básicos, uma participação da música mais efetiva em nível de comunicação – tudo isso permitiria uma experiência mais ousada, mais envolvente e que não permanecesse apenas no nível de “uma boa ideia realizada mais ou menos”.