Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 22.08.2019

Fotos: Camila Picolo

Maria, João e uma tocante travessia que remete à fome no mundo

Cia. Arthur-Arnaldo, com direção de Soledad Yunge, monta versão da clássica história dos Irmãos Grimm com delicada ênfase no tema da falta de comida na dura realidade dos refugiados

Abençoados sejam os clássicos. Que o teatro para crianças e jovens nunca abandone os contos universais tradicionais, aproveitando deles tudo o que embutem de inspiração e culto à imaginação. O fantasioso, o simbólico, o arquetípico. Um conto de fadas oferece significados em muitos níveis diferentes e enriquece a existência da criança de diversos modos.

De origem alemã e recolhido pelos Irmãos Grimm em publicação de 1812, o conto João e Maria (Hansel and Gretel) já ganhou diversas adaptações para as mais diversas linguagens artísticas. A história tal como a conhecemos é uma versão amenizada, feita para não chocar a classe média do século 19. A trama original carregava mais nas tintas das agruras de se viver na Idade Média, por causa da fome e da falta de comida. As próprias mães daquela época (e não madrastas) abandonavam seus filhos, por não terem como alimentá-los.

Portanto, são perfeitamente compreensíveis as escolhas cênicas, estéticas e dramatúrgicas desta montagem da premiada Cia. Arthur-Arnaldo, produzida originalmente para o 23.o Cultura Inglesa Festival, com direção de Soledad Yunge, e batizada de A Travessia de Maria e seu irmão João. Que escolhas são essas a que me refiro? A peça fala quase o tempo todo de comida. Tudo remete à alimentação. Foi uma decisão inteligente e coerente, tomada pelo time de adaptadoras: Carú Lima, as duas atrizes do espetáculo (Júlia Novaes e Luisa Taborda) e a própria diretora Soledad Yunge. Elas se inspiraram livremente no reconto feito em 2014 pelo inglês Neil Gaiman (Sandman, Coraline), em que a fome é causada pela guerra e as duas crianças são refugiadas. (A palavra ‘travessia’, muito apropriadamente escolhida para o título desta versão da companhia paulistana, tem tudo a ver com isso.)

A predominância do teatro narrativo e da contação de histórias foi outra escolha acertada. Os bonecos, acompanhando a proposta de alusão à falta de comida no mundo, são feitos de pão, massa de pão (panificação a cargo de Carla Zocchio, da Pão da Bola). E há uma incrível galinha feita só com cascas de ovos. A casinha de doces da bruxa também é outra solução de puro encantamento – a casa em miniatura fica suspensa no palco, com muita delicadeza, sem exageros, sem excessos de cor, um bom gosto incrível do cenógrafo Rafael Souza Lopes e das aderecistas Fátima Lima e Paula Galasso. Na ficha, há também um crédito de co-criação do cenário para o Estúdio Lava (Júlia Reis e Lucas Bueno). O fato é que o belo impera, sem grandes arroubos, graças também às contribuições precisas da luz de Junior Docini e dos figurinos de Rogério Romualdo. Ah, e não posso deixar de citar a trilha envolvente e original de Pedro Cury, que pontua tudo com emoção na medida certa, tarefa de certa forma difícil em uma peça feita de muita narração em off.

Maria e João às vezes são representados pelos bonecos, às vezes corporificam-se nas atrizes-manipuladoras. A partir da metade do espetáculo, Júlia e Luisa alternam-se para interpretar a bruxa da casinha de doces. São cenas muito bem pensadas, em que você pode piamente acreditar que são três atrizes, e não duas, no elenco, de tão dinâmico e azeitado que é o jogo entre a dupla em cena. Ao final, quando Maria e João derrotam a bruxa, diz a história que há um tesouro que as crianças acabam levando pra casa dos pais, ou seja, um final feliz. Nesta versão, o tesouro são mudas de plantas alimentícias – coroando a decisão da dramaturgia de falar da importância de se ter o que comer nesse mundo cada vez mais devastado e inóspito.

Meu último comentário diz respeito ao culto ao afeto, de que a peça não abre mão desde o primeiro minuto. Expressar afeto é tudo o que de mais temos precisado nesses tempos bicudos para cultura do País. É lindo como as duas atrizes começam o espetáculo de mãos dadas e, mais ainda, quando encerram também de mãos dadas, mas agora com algumas crianças da plateia levadas ao palco para a cena final. De arrepiar. Ninguém solta a mão de ninguém. O teatro para crianças e jovens feito pela Cia. Arthur-Arnaldo nos enternece com essa lição de simplicidade e solidariedade. Prestigiem!

Serviço

Local: Teatro Cacilda Becker
Endereço: Rua Tito, 295 (Lapa), São Paulo
Telefones: 11 3864 4513 / 98639 0874
Quando: Sábados e domingos, às 16h
Duração: 55 minutos
Classificação indicativa: Livre
Ingressos: R$ 16,00 inteira / R$ 8,00 (meia)
Temporada: De 3 de agosto a 1.º de setembro de 2019

Fotos: Camila Picolo